Rui Cardoso Martins

Matar o teu pai


Crónica "Levante-se o réu", por Rui Cardoso Martins.

O amor e o ódio, numa família, são uma escada comprida que se pode subir e descer.

Estava a assistir à sentença de Helena, a mãe de Felícia, e a forma como ela escutava a leitura como se fosse feita de madeira, parada no tempo, só à espera de sair do tribunal e de poder ir à sua vida. Eu pensava nos degraus todos que a mulher pisou para chegar ali. Helena, arguida, preferiu não falar sobre a acusação contra si. E também a filha, Felícia, não falou no julgamento que ela mesmo iniciara. Houve em tempos, claro, uma queixa grave que chegou à Polícia e ao Ministério Público. Mas a jovem, um ano depois, entalada entre as violências da mãe e do pai – e por essa condição testemunha com salvaguarda -, pediu para não dizer mais nada sobre o assunto. Assim, o único que falou no julgamento foi Joaquim, o ofendido, a alegada vítima de ameaça agravada, mas este só abriu a boca para desculpar a ex-mulher e libertar a família de mais uma tristeza e um embaraço públicos.

Helena e Joaquim casaram em 2004 e “em data não apurada de 2020 cessaram o relacionamento amoroso e a coabitação”. O divórcio concretizou-se em Janeiro do ano seguinte. Mas os dois mantiveram, por assim dizer, um relacionamento odioso.

No dia 24 de Agosto de 2021, descrevia a acusação, Felícia estava em casa da mãe. “Num contexto de discussão, a arguida, com foros de seriedade, declarou aos gritos que a Felícia podia ir ter com o ofendido e que podia dizer ao ofendido que ela dizia que as coisas não iam ficar assim e que o ia matar.” Estes formalismos acusatórios perdem em elegância literária e em impacto emocional, mas as palavras de Helena podem ser traduzidas em discurso directo.

– Diz ao teu pai que o vou matar!

E foi isso mesmo que rapariga repetiu nessa mesma noite a Joaquim, por telefone. “A mãe disse para te dizer que te vai matar.” A juíza continuava a reproduzir, numa serena ladainha, as palavras jurídicas que lhe tinham chegado no processo:

– A arguida sabia que a filha, por ligação filial, iria contar essas expressões ao progenitor e não podia ignorar que as expressões iriam causar medo e inquietação no íntimo do mesmo.

Mas que sabemos nós do íntimo de um homem que ouve estas palavras da mãe da sua filha, repetidas em aflição pela própria filha? Joaquim usou a inteligência e, em tribunal, encontrou forma de, dizendo a verdade, salvar a ex-mulher. A juíza resumiu o que disse Joaquim.

– Foi um período em que o casal, ele e a arguida, andava desavindo. Conhece a arguida e, a ter dito algumas palavras foi, como o próprio disse, da boca para fora. Ele não correu, nem sentiu nenhum perigo.

Helena foi absolvida, disse obrigado à juíza e saiu da sala com pressa, compôs com o dedo a franja dourada, saiu da cerca dos réus, tinha de ir trabalhar. Matar o teu progenitor da boca para fora e agora matar a consequência criminal de um amor que tropeçou e rolou escadas abaixo. Não houve – permitam-me que tente um pouco de juridiquês – qualquer comoção ou alívio aparentes no íntimo da mesma.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)