Margarida Rebelo Pinto

Massa com atum


Rubrica "A vida como ela é", de Margarida Rebelo Pinto.

Entre enviar fraldas, mantimentos e medicamentos e receber refugiados, é fundamental explicar aos nossos filhos com mapas e fotografias o que Hitler e Estaline fizeram ao Mundo, porque sem memória não aprendemos nada.

Qualquer família que se preze tem um grupo de WhatsApp. Na minha, a matriarca tem por hábito enviar mensagens com o número certo do emoji de um pintainho correspondente ao dos membros do clã que inclui filhos, genros, noras, netos, maridos e mulheres dos netos e bisnetos. Já são quatro gerações, pintos e mais pintos, a mais cerebral e organizada entre nós sabe sempre quantos tem debaixo da asa. Ser mãe é ter um coração que cresce, como uma casa mágica que ganha assoalhadas novas. Sempre que se enche de miudagem, todas as crianças que estão sob o nosso teto são um bocadinho nossos filhos. E quando chega a hora do jantar, é massa com atum para toda a gente.

Terá sido este o pensamento de Nataliya Ableyveva quando trouxe até à fronteira os filhos pequenos de Anna Seemyuk, entregues pelo pai que lhe confiou o seu bem mais precioso. Os filhos de Natalyia ficaram na Ucrânia para defender o país do invasor. O abraço das duas mães que o destino uniu é o abraço de todas as mães do Mundo.

As mulheres sempre tiveram um papel apaziguador em conflitos, exceto aquelas que empunham as armas para combater, mano a mano, pela defesa do seu país, que é o mesmo do que lutar pelo futuro dos seus filhos. Fazer tudo pelos nossos é o instinto das mães e dos pais. Nem as mulheres nem os homens querem este conflito que um louco provocou, tão perdido na sua insanidade que não contou que a Europa, tradicionalmente lenta e branda, se unisse de forma rápida e assertiva.

Sou uma pessoa abençoada, porque já passei dos 50 e nunca vivi uma guerra. Os poucos episódios a que assisti não interferiram no meu bem-estar: primos que voltaram de África, uma tia que se casou com um alemão, filho de refugiados da II Guerra Mundial e que comia os restos dos pratos dos filhos quando eram crianças, eternamente ensombrado pelo fantasma da fome. Em livros e em filmes, em documentários e em séries, eu via a guerra pelos olhos de quem a viveu para a contar. A Europa era um continente no qual se viajava sem passaporte e ainda me lembro de vigilância branda nos aeroportos. O Mundo podia ser perigoso, mas a Europa não era. A linha da frente não era aqui.

A guerra é como a doença, pensamos que sabemos como é, mas só quem é infligido por tal tragédia pode explicar o que sente. A guerra é a grande doença da humanidade. E existem mil e uma maneiras de contribuir para ajudar todos os que são apanhados no meio dela. Entre enviar fraldas, mantimentos e medicamentos e receber refugiados, é fundamental explicar aos nossos filhos com mapas e fotografias o que Hitler e Estaline fizeram ao Mundo, porque sem memória não aprendemos nada. Explicar-lhes que nada é adquirido e que a massa com atum na mesa é fruto de vivermos num estado soberano e democrático.

O filósofo Yuval Noah Harari, num artigo publicado no jornal “The Guardian”, afirmou de forma perentória que Putin já perdeu a guerra. Ele evoca que a bravura e o heroísmo dos ucranianos dão coragem aos governos da Europa e dos Estados Unidos e resto do Mundo. Mas Putin está-se nas tintas para as mães e as crianças da Ucrânia e para as palavras de Harari. Será uma guerra longa e devastadora, que unirá a Europa a duríssimas penas.

Impossível não pensar que guerra podia ser nas nossas cidades e pôr em perigo os nossos. Não podemos saber como será, porque a realidade altera-se hora a hora. David matou um urso e um leão antes de vencer Golias. Esperemos que essa história se repita.