Valter Hugo Mãe

Marcelo no Brasil pelos livros


Rubrica "Cidadania Impura", de Valter Hugo Mãe.

Depois de Bolsonaro ter declarado, com horror, que se Lula ganhar haverá de transformar os campos de tiro em bibliotecas, Marcelo elogia o livro e o conhecimento com a naturalidade dos sãos, relegando sem sobressalto o homólogo brasileiro para o domínio da insanidade.

Passa mais de uma semana desde a visita de Marcelo Rebelo de Sousa ao Brasil pela ocasião da Bienal Internacional do Livro de São Paulo, que vendeu 660 mil entradas e se tornou a de maior receita de sempre. Tendo Portugal como país convidado, num ano em que se assinalam os dois séculos de independência do Brasil, admiti já que foram as participações de figuras indígenas que mais se revelaram urgentes e parece-me que, se houvesse coragem, as nações indígenas brasileiras deveriam ter sido elas mesmas as convidadas de honra, colocadas ao centro da questão fundamental de identificar o país com suas raízes mais genuínas e justas. De todo o modo, há uma beleza em convidar Portugal que tem que ver com a expectativa de produzir uma sanação da atrocidade do passado. Uma oportunidade, sempre complexa e melindrosa, de reconhecer que o processo de ocupação do território foi feito pela matança e escravidão de milhões ao longo de séculos.

Mais de uma semana depois da passagem do presidente da República de Portugal por São Paulo, são ainda frequentes as conversas acerca da maravilha de um magistrado máximo da nossa nação ser leitor, culto, simpático, educado. Depois de Bolsonaro ter declarado, com horror, que se Lula ganhar haverá de transformar os campos de tiro em bibliotecas, Marcelo elogia o livro e o conhecimento com a naturalidade dos sãos, relegando sem sobressalto o homólogo brasileiro para o domínio da insanidade.

Subitamente, corre por toda a parte a ideia de que Marcelo devia mudar-se para presidente do Brasil, numa inusitada anedota que é tão compreensível quanto incómoda para a ansiosa celebração da independência. De certo modo, a convicção de haver aqui um governo putre, feito de um despreparo, humilhando-se e humilhando o país constantemente, acarreta a mais grave das piadas, a de que até o ex-colono valeria mais na frente dos destinos do país.

A graça é toda de Marcelo Rebelo de Sousa. A sua popularidade sincera, o jeito de se manter um cidadão sem arrogâncias e a bravura de se aproximar de qualquer um acabou por se impor num cenário de polarização absurda onde ninguém parece aceitar comunicar.

A representação portuguesa na Bienal foi muito feliz. Os esforços resultaram numa prestação com brio que tenho podido ver impactar em tantas pessoas que ainda me buscam comentando como encontraram caminho para mais livros portugueses.

Por estes dias, um anestesista estuprou uma mulher numa sala de parto. O Brasil está em choque com as imagens do crime e segue o silêncio da Presidência. O filho do presidente fez aniversário e o seu bolo imitava uma arma numa caixa. O clima do estupro e da morte parece ser ao gosto do governo. Não admira que Marcelo seja como se o Harry Styles viesse por aqui.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)