Lego, o brinquedo mais universal do mundo, faz 90 anos

Foi há 90 anos que um carpinteiro na Dinamarca começou a produzir brinquedos de madeira. Depois de carros e aviões, surgiram os pequenos blocos encaixáveis que todos conhecem. Chama-se Lego, que, em dinamarquês, significa “brincar bem”, e une construtores e colecionadores de todo o Mundo. E de todas as idades.

Estávamos em 1958. Na Dinamarca era patenteado o bloco encaixável que ainda hoje é um sucesso no mundo da brincadeira. Quatro anos mais tarde, em Sintra, nascia Pedro Nascimento. Os dois acontecimentos, separados por três mil quilómetros, parecem não se relacionar, mas desenganemo-nos. Aos cinco anos de idade, o pequeno Pedro recebeu o primeiro Lego (de muitos que se seguiriam). Hoje, não consegue avaliar a coleção que tem, mas garante que já investiu muito mais do que qualquer valor que se possa imaginar num primeiro momento. Nas suas construções somam-se agora a Fundação Champalimaud, o Terreiro do Paço, um tapete de Arraiolos, entre outros. São (muitos) milhões de peças.

Mas voltemos à primeira construção de Pedro. Era 1967 e uma tia encontrou uns blocos infantis de construção perfeitos para quem começaria, não tardava, a escola primária. Ofereceu-a ao sobrinho. Passaram 55 anos e a caixa de peças azuis – 2×2, Pedro faz questão de detalhar – é religiosamente guardada numa vitrina, atualmente construída como um foguetão. À vista, mas não ao alcance. Já que Pedro Nascimento não deixa que ninguém se aproxime dos blocos que começaram a sua grande paixão.

Além de colecionador, Pedro Nascimento é construtor de Lego. Tem cidades, edifícios, maquetes e até retratos
(Foto: André Luís Alves/Global Imagens)

As tardes no final das aulas eram passadas em frente à montra da loja Jodi, em Sintra, mesmo em frente à casa dos pais. Quando não se sabia de Pedro, era certo que o pequeno por ali andaria. Dessa altura, colecionou catálogos. Travou amizade com a funcionária. Quando todos iam jogar à bola, recorda Pedro Nascimento, ia para casa brincar com os seus Lego, que passaram a ser o único item da lista de desejos para aniversários, Natais ou qualquer evento do qual poderia resultar uma prenda.

Viver o Lego na vida adulta

As coloridas (e divertidas) construções, já em adulto, iam contrastando com a vida de Comando das Forças Armadas. “No período de descanso de um dos destacamentos que tive, parei numa loja de brinquedos e comprei um set de ambulância da Lego”, lembra. Quando começou a construir a estrutura na camarata, os colegas de missão gozaram com ele. “Mas hoje pagam para ver as minhas exposições.”

Depois da vida de Comando, Pedro esteve em lojas de brinquedos, foi segurança particular e montou uma carpintaria. Hoje é construtor e colecionador a tempo inteiro. E poderá até dizer-se que é um apregoador da marca, já que, confidencia, todos à sua volta recebem sets da Lego. Oferece caixas de construção em aniversários, em Natais, em casamentos, em batizados. “E quando dizem que não gostam, é quando eu tenho mais vontade de oferecer.”

A fenómenos como o de Pedro, Beatriz Casais chama de colecionismo e contaminação, conceitos extensamente trabalhados pela Lego. A professora de Marketing e Estratégia da Escola de Economia e Gestão da Universidade do Minho explica que, “pela associação a memórias, sensações e à história do produto”, o consumidor é incentivado a manter-se fiel à marca, tornando-se uma “love brand2 (traduzido para português como “marca amada”). “Os consumidores adoram a marca, que faz parte do imaginário de infância, cresce com cada um, acompanhando até na idade adulta, e que passa de geração em geração, criando, mais do que uma relação funcional, uma relação emocional.” Tudo isto sem barreiras geográficas, linguísticas ou de idade.

Da brincadeira à aprendizagem

À semelhança de quase todos os pontos do Mundo, em Portugal é possível encontrar colecionadores, fãs e construtores de norte a sul. Em Braga, centenas de quilómetros acima de onde vive Pedro Nascimento, está Jorge Reis, que acumula todas as categorias descritas. A história da ligação à marca quase não precisa de ser contada, bastaria recapitular os parágrafos anteriores.

Jorge Reis é professor do Ensino Básico e utiliza o Lego como método de aprendizagem
(Foto: André Rolo/Global Imagens)

A mãe, professora, ofereceu-lhe o primeiro conjunto de Lego aos três anos. Ainda hoje mantém os sete primeiros conjuntos que recebeu cuidadosamente guardados. “Só se perderam as caixas e as instruções.” De resto, diz, a casa transformou-se num museu. Mas o primeiro Lego não foi o único marcante.

Já com 24 anos, a avó pergunta a Jorge o que este quer de prenda de conclusão do curso superior. O jovem, recém-licenciado em Educação Visual e Tecnológica, que, por falta de condições financeiras para adquirir sets, apenas colecionava catálogos, pediu uma das revoluções da marca: um Lego com base mecânica. Era um dos conjuntos lançados no final dos anos 1980 e, puxando pela memória, Jorge sabe ainda o preço. Foram mil escudos (cerca de cinco euros).

(Foto: André Rolo/Global Imagens)

Passados quase 30 anos, aplica o que aprendeu com aquele set de mecânica da Lego na sua profissão. É professor e assegura ter sido um dos primeiros docentes no país a utilizar a Lego como método de ensino. “Demonstro aos alunos, através da construção, como se ultrapassam dificuldades.”

Benefícios para o desenvolvimento

Para Teresa Freire, professora e investigadora na área da Psicologia do Desenvolvimento, brincar com Lego é a atividade mais completa da infância. Através da criatividade é desenvolvida a capacidade de resolução de problemas, o pensamento ativo e crítico, a ação na sociedade e o conhecimento próprio e do outro. “São desenvolvidas competências sociais e emocionais, podendo, em contexto escolar, levar ao incentivo do estudo, à colaboração entre pares e até à redução do bullying.”

A educação sempre foi, aliás, um dos pilares da marca. Em 1980 é criada a Lego Education, o programa que pretende incentivar o ensino através das peças encaixáveis. Atualmente, há quatro sets destinados à educação de diferentes faixas etárias. Todas procuram demonstrar o funcionamento da física e da mecânica, assentando na criatividade e na diversão.

Mas, antes disso, tal como o fascínio de Pedro e Jorge por construções Lego, a marca foi crescendo gradualmente. Começou como uma pequena empresa de brinquedos de madeira, em 1932. Estávamos em Billund, bem no centro da Dinamarca. Era certo que o nome teria de estar relacionado com a brincadeira. “Brincar bem”, lembra-se o criador, que em dinamarquês se escreve “leg godt”. Bastou juntar as duas palavras. O que Ole Kirk Kristiansen não sabia é que, em latim, “Lego” significa “juntar”. O que, mais tarde, com a primeira peça de encaixar, se viria a tornar uma feliz coincidência.

Ultrapassadas crises, rejeições por parte de compradores e vendedores e até um incêndio, 26 anos mais tarde é patenteada a peça de tubos encaixáveis. Agora, celebrados 90 anos do nascimento da Lego, está à frente da marca Thomas Kirk Kristiansen, bisneto do fundador, Ole.

Passar o testemunho

Não é apenas na liderança da empresa que o legado passa de geração em geração. Também os fãs são responsáveis por transmitir a paixão aos mais novos – o tal efeito de contaminação. Foi o que aconteceu com Rita Nunes, de 19 anos, que, ao lado do pai, é colecionadora e construtora. Mas, ao contrário da maioria dos aficionados pela marca, a história de Rita com a Lego começa sem entusiasmo.

Um circo foi o primeiro projeto próprio de Rita Nunes. Tem também uma feira popular, um jardim zoológico e uma cidade Natal
(Foto: Paulo Spranger/Global Imagens)

Pelo gosto que tinha nas construções Lego desde infância, o pai de Rita Nunes decidiu oferecer-lhe o primeiro conjunto, deveria ela ter pouco mais de três anos. Não gostou. E aquela caixa lá ficou parada. Até que, aos seis anos, Rita pediu uma ambulância da Lego. Regressou então àquele primeiro presente e nunca mais parou. Começou a criar cidades, pensadas, planeadas e construídas por si e pelo pai, e a primeira exposição surgiu logo aos 11 anos de idade, nas Caldas da Rainha.

Rita trabalha atualmente em quatro projetos: um circo, uma feira popular, um jardim zoológico e uma cidade Natal. Este último, com um carinho especial, já que na casa dos Nunes a tradição da árvore natalícia foi trocada por uma construção Lego no meio da sala de estar. Com direito a ruas, carros, personagens, lojas, enfeites, luzes, renas e até o Pai Natal.

Legos da coleção de Rita Nunes
(Foto: Paulo Spranger/Global Imagens)

Atleta de golfe federada e estudante universitária, Rita Nunes lamenta que o tempo que tem dedicado para a brincadeira já não seja o mesmo. Mas o fascínio, assegura, não acaba. No futuro, a jovem residente em Sintra sonha que uma das suas criações seja reconhecida e vendida pela própria marca. “Já comecei um projeto de um edifício há uns anos, mas tem estado parado. Assim que tiver tempo voltarei a pôr mãos à construção e, um dia, vou propor à Lego vender o meu set.”

Sonhar com um futuro recheado de peças

Cheio de sonhos está também Miguel Pimentel Miranda. Tem 14 anos, mas não nos deixemos enganar pela sua idade – é o jovem português mais reconhecido neste mundo de fãs de Lego. Como já vem sendo costume nestes testemunhos, a história repete-se: o pai ofereceu o primeiro Lego e a paixão começou.

A primeira exposição foi no Museu Terras de Miranda, aos dez anos de idade, mas a mais importante de todas é recente. “A minha força”, chama-se, e é uma homenagem à avó. Logo depois de ter sido convidado a expor no Museu do Brinquedo, em Ponte de Lima, Miguel entristeceu com a notícia de um diagnóstico de saúde grave à avó. O jovem brigantino lembrou-se imediatamente da frase que ouvia repetidamente: “És a minha força”. Estava decidida a temática de mais uma exposição, inicialmente prevista para um mês, mas que, devido à grande adesão, foi estendida.

O jovem quer continuar a expor, sonha ser reconhecido oficialmente pela marca e confidencia que o próximo objetivo será visitar a mais recente loja Lego, em Lisboa. Abriu no início de setembro, no Centro Comercial Colombo, e é a primeira loja oficial em Portugal e a maior da Europa Ocidental.

Legos da coleção de Miguel Pimentel Miranda
(Foto: Rui Manuel Ferreira/Global Imagens)

Em casa estão também expostas coleções. E o seu grande orgulho: um estádio de futebol pensado e construído do zero pelo Miguel, com todos os detalhes a que tem direito. Bancadas, adeptos, balizas, bar, bola. Há um quarto dedicado aos Lego de Miguel, que acabam por se espalhar também pelos corredores, pela sala e pela garagem. Miguel Pimentel Miranda faz questão de mostrar o primeiro de todos – um atrelado com duas motas construído de uma só vez aos dois anos de idade e, desde então, exposto na vitrina à entrada de casa.

Apesar de ainda estar na adolescência, pela dedicação que Miguel Pimentel Miranda entrega ao colecionismo e à construção, entra já na categoria de AFOL – Adult Fan of Lego (adulto fã de Lego, em português). Esta é uma das designações oficiais do Mundo da marca de construções, mas há muitas mais. “Moc”, do inglês “My Own Creations” (as minhas próprias criações), serve para designar as construções pensadas pelos fãs. Já “sets” são as construções para as quais a “box” – ou “caixa” – está destinada. Entre tantas outras.

Mais do que um hobby

Pedro Nascimento, além de colecionador de sets, é especialista em MOC. Tem projetos que chegam aos 18 metros quadrados, que concilia com alguns trabalhos para venda, como retratos, maquetes e réplicas de edifícios.

Beatriz Casais, especialista em Marketing, salienta que uma das chaves do sucesso da Lego foi o desenvolvimento do mercado e a intensificação do uso, ou seja, expandir as construções aos adultos.”“Se um produto for utilizado por mais pessoas com objetivos diferentes, vou ter mais vendas e mais presença no mercado.” Presença essa, destaca Beatriz Casais, que, associada ao facto de esta ser uma “love brand”, leva ao que é chamado de “marca genérica”.

Legos da coleção de Pedro Nascimento
(Foto: André Luís Alves/Global Imagens)

“Geralmente são a primeira marca de uma determinada categoria, neste caso peças que se encaixam, e que, pela sua notoriedade e reconhecimento, dão nome a todo o conjunto.” Ou seja, não dizemos “vou brincar com as peças que se encaixam”, mas antes “vou brincar com Lego”, mesmo que a marca que utilizamos não seja, de facto, a Lego.

No caso dos adultos, os benefícios de brincar com Lego repetem-se, esclarece a psicóloga Teresa Freire. “Utilizadas em contexto profissional, estas construções levam a que os trabalhadores consigam pensar mais além do que fazem atualmente, procurando métodos e soluções diferentes (e mais eficazes) para o mesmo objetivo.”

Jorge Reis, tal como tantos outros AFOL espalhados pelo Mundo, é a prova de que a comunicação da marca é eficaz. Aos 51 anos, o professor ainda tem muitos sonhos. “Idealizo ter um espaço próprio. Fazer do Lego a minha terapia. Ter um museu meu. Cobrar bilhete. Ganhar ainda mais dinheiro com esta paixão.” Ou isso, ou acabar com tudo. Mas só ao público. “Talvez um dia feche todas as minhas peças de Lego numa casa e passe o resto dos meus dias lá, a aproveitar a alegria de brincar, sozinho.”

Legos da coleção de Pedro Nascimento
(Foto: André Luís Alves/Global Imagens)

O mesmo sentimento é partilhado pelo sintrense Pedro Nascimento. “A Lego é um prazer, mas também uma solidão.” Quer esteja triste, feliz, aborrecido ou zangado, Pedro considera que as construções nunca são um fardo ou um emprego. São uma brincadeira. “Tenho 60 anos e gosto de brincar.” E assim continuará, pelo menos, até aos 90, tal como a Lego.


Curiosidades

8,06 biliões de euros
de receita da Lego em 2021. Um aumento de 27% relativamente ao ano anterior

10 Legoland
espalhados pelo Mundo, dois deles nos Estados Unidos da América. Na Europa, há parques temáticos da Lego na Alemanha, na Dinamarca e no Reino Unido

19 816 sets
é o maior registo existente de Lego, feito pela associação Rebrickable, mas pensa-se que poderão ser muitos mais, ainda por identificar


Cronologia

1932
O carpinteiro Ole Kirk Christiansen abre uma fábrica de brinquedos de madeira

1934
Surge o nome “Lego”

1958
Patenteado o sistema de blocos com tubos encaixáveis

1968
Abre a Legoland Billund, na Dinamarca

1980
É criado o Lego Education

1998
Primeiro Lego programável (Lego Mindstorms)

2014
Filme Lego

2020
Quarta geração à frente da Lego (Thomas Kirk Kristiansen)

2022
Primeira loja Lego certificada em Portugal (Lisboa)