Rui Cardoso Martins

Legítimos passaportes falsos

(Ilustração: João Vasco Correia)

Crónica "Levante-se o réu", por Rui Cardoso Martins.

A coisa tinha sido há tanto tempo – e em circunstâncias tão brumosas – que o tribunal parecia ter-se comprometido a julgar um fantasma. Mais de dez anos depois, a funcionária do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) estava, como é de compreender, pelo menos dez anos mais velha…

– Para ser sincera, não me lembro.

Mas mostraram-lhe uns papéis por ela assinados no passado, o país estrangeiro onde os seus habitantes fazem as coisas de forma diferente. Era um auto de notícia com os detalhes da detenção de um homem no Aeroporto de Lisboa:

– Acho que era de um indivíduo que ia para Dublin com um passaporte falso. Penso eu, penso eu…

– O nome não lhe diz nada?

– Não. Também não me deram a certeza. Esse senhor estava a tentar atravessar a fronteira com um documento que não era dele.

E que homem era este? Mais de dez anos depois, ninguém sabe onde está, se é vivo, se é morto, se está na Europa, se noutro continente, não foi possível contactá-lo para vir a tribunal dizer como se chama ao certo, ou como falsificou o passaporte para ir para Dublin. Por sinal, saíram agora notícias sobre Portugal manter, em 2022, “a 5.ª posição no ranking dos passaportes mais valiosos do Mundo”, empatado com a Irlanda. Lendo melhor, não é bem assim, o passaporte português permite ao seu detentor visitar 187 países em livre-trânsito, mas há pelo menos 13 países que dão acesso a mais países do Mundo sem visto prévio, por exemplo Alemanha, Finlândia, Itália, Luxemburgo e Espanha, se não quisermos sair da Europa. No topo, Singapura e Japão (192 países).

Lembrei-me dos meus pequenos terrores com a perda do passaporte: no frio da Rússia, onde meti o ridículo papelinho com a hora obrigatória de saída do país e que, em caso de perda, nos pode levar a julgamento criminal e, já agora, que fazer se entretanto entrarem em conflito a Rússia, a Ucrânia, a Europa, os Estados Unidos, o Mundo, como se não bastassem já as guerras dos vírus? Como poderei dizer eu quem sou?

Em Quioto, no Japão, quando na multidão do mercado velho uma criança me puxou a camisola pelas costas e mostrou um cartonado bordeaux na mão… O meu passaporte, que eu perdera à porta de um templo budista ou de uma loja de acariciar ouriços-cacheiros (que negócio, vender festas a um espinhoso mamífero que vive numa casinha com sofá…)

Há muitos anos, em Sarajevo, na cave de dois arranha-céus destruídos à bomba, no pico do Inverno, um dos piores negócios que me propuseram: venda-nos o seu passaporte. Disse que não. Insistiram, com mais escuridão nos olhos: venda-nos o seu passaporte! E depois, como saio eu daqui, que cá me vim meter?! E percebi – para sempre – que aquele cartão grená escuro, fortíssimo, quase à prova de água, com as cores portuguesas, era um tesouro. Falsificado, talvez servisse a alguém para cruzar a fronteira entre liberdade e prisão, vida e morte. Ou para destruir o meu nome e liberdade e vida, que sabemos nós?

Quantos milhões de seres humanos morreram desde sempre por falta de passaporte, de visto, por terem um papel errado nas mãos?

Perder um passaporte em viagem não é o mesmo que perder uma boa luva, já perdi muitas. Tenho duas luvas de couro da mão direita, nenhuma da esquerda. Há semanas, perdi uma carteira nova com todos os meus cartões, todos, todos, todos, ia comer choco frito a Setúbal e deixei a carteira no tejadilho do carro, algures caiu e nenhum dos meus cartões apareceu, nenhum, nenhum, nenhum, e só me acalmava o pensamento: ainda tenho o passaporte, posso sair pela Terra.

Há dias, vi outro julgamento no Campus de Justiça de Lisboa: um homem falsificou carimbos de entrada e saída de um obscuro país que se chama oficialmente, para efeitos diplomáticos, “Reino de España”.

As perícias do SEF e da PJ foram contraditórias na veracidade ou falsidade de alguns dos carimbos do passaporte. Mas, quanto aos carimbos do reino de Espanha, coincidiam ser uma verdadeira falsificação. O homem tinha antecedentes criminais na Bélgica e acabou condenado em 2550 euros.

– Ele sabia que era falso, concluiu a juíza.

Também escondera ter cartão de cidadão português e apresentara errado o nome do próprio pai.

Se lhe perguntassem quem sois vós, talvez um fantasma respondesse: ninguém.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)