Publicidade Continue a leitura a seguir

Lágrimas na chuva

Publicidade Continue a leitura a seguir

Rubrica "A vida como ela é", de Margarida Rebelo Pinto.

Na minha vida só houve um abraço como o teu, um sonho, um livro, uma aventura sem igual. Já ninguém dança slow, mas a moda pode sempre voltar.

Um rapaz ao piano de risca ao meio e uma apresentadora com um laço ao ombro maior do que uma travessa de bacalhau para 12 pessoas. Podem até pensar que eu sou um pouco triste, mas não há nenhum mal em ser assim. Linda, linda, foi a balada que Armando Gama cantou no Festival da Canção em 1983, apresentado por Valentina Torres, num tempo em que as senhoras iam ao salão do bairro fazer uma mise com 200 rolos na cabeça (eram menos, mas é a imaginação que manda na cabeça dos escritores), para assistir ao grande acontecimento em casa.

Onde estávamos em 1983? Eu apanhava todos os dias o autocarro para a Faculdade de Letras, não longe do liceu onde uma professora de Português me dera um dois no 8.º ano, alegando que eu tinha imaginação a mais. A mesma imaginação que fez de mim escritora e multiplicadora de rolos na cabeça das senhoras do bairro. Na política inventaram o Bloco Central e uma grua gigante conseguiu libertar o Tollan, encalhado no Tejo há três anos. É um ano de greves sucessivas e de forte agitação social, com direito as bombas à porta do Tribunal da Boa Hora e do Ministério do Trabalho.

Também eu sentia uma bomba no coração por me ter apaixonado anos antes por um rapaz de caracóis e olhos grandes que vira apenas uma vez numa festa em casa de amigos e com quem dançara uma mão-cheia de slows. Havia um tempo, um olhar, um sorrir, um começo. Talvez nem estivesse apaixonada, queria apenas estar, coisas de mulheres, como se amor fosse quase tudo. Num reencontro casual, as borboletas voltaram em força e, depois, perderam-se na espuma dos dias. Demorei algum tempo a esquecê-lo. Tudo fica, mesmo quando se acaba, um romance, uma paixão ou um caminho. Hoje, deve ter os caracóis brancos, se é que não os perdeu. Armando casou com Valentina, um cliché romântico que alimentou o imaginário da mulher portuguesa que esfregava à mão os punhos e colarinhos das camisas do marido mergulhadas em Omo. O casamento durou 26 anos, com muitos duetos pelo meio.

Em 1983, o FMI entrou em Portugal para pôr as finanças em ordem, injetando 400 milhões de dólares, obrigando o PS a meter o marxismo na gaveta. E eu a aprender com o Rilke truques para ser escritora. A primeira qualidade do estilo é a clareza. Sonhava em casar, mais tarde do que todas as minhas amigas, primeiro a carreira, depois a família. Também tive vestidos de tafetá com laços gigantes e fiz permanentes como a Valentina. Tom Cruise brilhava nas asas de um caça e Marvin Gaye explodia sensualidade com “Sexual healing”. Andar de avião era um luxo, os juros dos créditos à habitação insustentáveis.

Quase 40 anos depois, vislumbra-se a vaga possibilidade de um novo Bloco Central. Já ninguém faz permanentes, eu mantenho a melhor amiga do liceu, com quem falo todas as semanas. No dia em que o músico partiu, ouvi em loop a sua balada e viajei até à década de 1980, um tempo em que era chique ir almoçar à “Gôndola” na Praça de Espanha, onde a pastorícia vigorava ainda com a candura dos tempos antigos.

Porque será que sofremos deste hábito tão português de ignorar ferozmente os vivos e de exaltarmos com tanto fervor os mortos? Na minha vida só houve um abraço como o teu, um sonho, um livro, uma aventura sem igual. Já ninguém dança slow, mas a moda pode sempre voltar. Basta querer, em memória dos amores adolescentes perdidos no tempo como lágrimas na chuva, resgatados na letra de uma linda balada.