Rui Cardoso Martins

Já nem carro tenho


Crónica "Levante-se o réu", por Rui Cardoso Martins.

A cara de João estava num ponto intermédio, a caminho de outro estado. Não se percebia se estava a inchar, se a desinchar. Também as pernas, ao entrar na sala de audiências, avançaram numa calma hesitante, como se caminhasse em cima de um arame esticado entre dois prédios. Uma vida funambular, tentando chegar em segurança ao outro lado da rua. João nasceu em Lisboa há 45 anos.

– O senhor está aqui porque foi acusado de conduzir um veículo em estado de embriaguez.

No dia 8 de Novembro de 2019, pelas três da manhã, João conduzia um automóvel na Av. Marechal Craveiro Lopes, no sentido Norte-Sul junto à saída da Rotunda Nelson Mandela, em Lisboa. Trazia uma taxa de, “pelo menos, 1,628 gramas de álcool por litro de sangue, depois da dedução de erro máximo admissível”. Houve uma colisão automóvel “com um ferido que careceu de assistência hospitalar”.

– O que é que tem a dizer sobre isto? Foi isto que aconteceu?

– Exactamente, sotora.

Silêncio. Não era só admitir, o tom da voz de João parecia querer reforçar a acusação e, portanto, a sua culpa. Mandou uma pessoa para o hospital nessa madrugada, quase a matou.

– O senhor, ao dizer-me isso, fê-lo livremente, não foi obrigado por ninguém a confessar os factos?

– Não, não.

– Tinha consciência de que estava a circular com esta taxa de álcool no sangue e que ainda por cima foi interveniente num acidente de viação?

– S… sim. Foi uma fase da minha vida muito complicada.

– Que pelos vistos se prolongou para 2021…

– Eu estou a ser acompanhado por um psicólogo, por um psiquiatra, neste momento.

– Mas porquê, o senhor tem problemas de…

– … problemas de álcool.

– Esse tratamento é para a desabituação do consumo de álcool?

– Exactamente. Aliás, já não estou. Já há bastante tempo que não consumo álcool, porque a medicação não o permite.

– Desde quando é que o senhor faz isso?

– Ora… desde… dois, três, quatro, cinco, mais. Não sei precisar.

– Meses…?

Se respondesse minutos, ou horas, seria humor negro. Mas o tempo de João parou algures, não sabe se vai em frente ou volta para trás.

– Meses! Oito, nove meses, será. Eu não sei, não tenho a noção. Há muito, muito tempo.

– Mas em Maio de 2021 não andava a conduzir com álcool?

– Não. Já foi depois disso. Portanto… há um ano, se calhar.

– O senhor andava a conduzir com álcool ao mesmo tempo que fazia o tratamento?!

– Não, não! O meu problema é que eu não tenho…

A juíza interrompia João e mais o baralhava. Atrás dele, uma profunda depressão espreitava. Quase se podia ver, sentada nos seus ombros como um macaquinho preto.

– A pessoa com quem está a ser seguido como se chama?

João disse o nome do psiquiatra.

– Qual é o centro de saúde?

– É o centro de saúde da Lapa, que abrange ali uma série de freguesias, inclusive aquela em que estou a viver agora.

– O senhor disse-me que está desempregado e solteiro.

– Sim, separei-me na altura, isto antes de haver este acidente.

– Mas não era casado…

– Não, vivia maritalmente há 20 anos.

– Então vive com quem?

– Agora vivo sozinho. Numa casa arrendada por um valor …hum… baixo. É por favor, quase…

– Quanto?

– Por cem euros.

– E o senhor vive do quê?

– Do subsídio de desemprego. Uns 600 e poucos euros. Começou em Dezembro, deram-me 720 dias. Dois anos.

O advogado de João tinha uma pergunta:

– O senhor continuou a conduzir?

– Não, não conduzo. Nem tenho carro, tampouco. Nem o poderia fazer, porque estou em tratamento.

Um caminho longo e o desastre a cada esquina.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)