Valter Hugo Mãe

Isabel de Sá


Rubrica "Cidadania Impura", de Valter Hugo Mãe.

Brava numa estética tremendista e disfórica, irónica sem trégua e aludindo tantas vezes ao feio para traçar distância entre si e os projectos de vida puramente burgueses e castradores, a poesia de Isabel de Sá torna-se para mim a mais importante escrita por uma mulher em Portugal no tempo da democracia.

No arranque da democracia em Portugal, a figura de Isabel de Sá estabelece nas Belas Artes do Porto, a par de Graça Martins, uma resistência feminina muito única. Caracterizada pela incondicional crítica aos poderes masculinos instalados, sejam políticos, clericais ou artísticos, a obra de Isabel de Sá começa por ser a de uma mulher que não presta vassalagem aos medos tradicionais exigindo uma libertação incondicional. Brava numa estética tremendista e disfórica, irónica sem trégua e aludindo tantas vezes ao feio para traçar distância entre si e os projectos de vida puramente burgueses e castradores, a poesia de Isabel de Sá torna-se para mim a mais importante escrita por uma mulher em Portugal no tempo da democracia. O modo como radicaliza a liberdade, ironizando-a, duvidando de todas as suas próprias conquistas, desprezando tudo, inclusive seu lugar, faz com que seja a figura mais indisciplinada e inclassificável, a poeta mais forte e mais sem par da contemporaneidade nacional.

Importa pouco que a poesia seja diálogo de uma confrangedora minoria, a maravilha não precisa de multidões para o ser, e a obra de arte sabe esperar para sempre catando lentamente aqueles que a poderão entender. No processo de afirmação das autorias femininas num teatro iminentemente social, onde a poesia portuguesa pôde contar com a luta fundamental de Maria Teresa Horta, a Isabel de Sá é igual ao que atinge o sistema silente mas sem piedade. Numa surdina, distante dos centros de maior visibilidade, frequentemente esquecida ou manifestamente preterida em favor de poetas mais capazes de agradar as medianias, a obra da autora de Esmoriz é uma enfermidade necessária porque se atém à denúncia do carácter torpe da humanidade, uma e outra vez alcandorada em boas intenções e uma e outra vez desfeita na sua própria porcaria.

Não é comum que a obra de uma autora, cujo trabalho começa nos anos de 1970, se revista de uma repulsa tão grande pelas convenções, ao ponto de usar o abjecto, o grotesco, enquanto frontalidade em que tudo se diz. As pessoas como criminosas, necrófilas, irremediavelmente falhadas e condenadas, onde tudo é de validade dúbia e nada valerá a pena, nem a poesia, é o estado de espírito que atravessa a universalidade da obra de Isabel de Sá, reunida agora num irrepreensível volume intitulado “Semente em solo adverso”. A chancela é da Officium Lectionis, de José Rui Teixeira, e é online que se encontra à venda. Não estou convencido de que vá, mais uma vez, chegar a muita gente, mas estou convencido de que a Isabel de Sá continuará nas bibliotecas mais rigorosas, entre os leitores mais rigorosos, a ensinar como a ingenuidade não é do seu interesse, e como isto de se ser humano é sobrevalorizado obscenamente.

“Antes que a escuridão / seja plena / e a tua herança / sacrificar cada sílaba, / espalha as lembranças / sobre o linho / que há-de envolver-te / o corpo.” É o ofício. Lidar com as lembranças, oferecê-las ao esquecimento. Educação pura.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)