A discriminação já não é, na maioria, direta, mas ainda lá está. É o recrutador que dispensa discretamente um currículo. Alguém que questiona o profissionalismo. Os materiais e comunicados que teimam em estar formatados apenas com o determinante feminino. As exceções à regra também ajudam a traçar o caminho para a equidade de género.
Promotor de eventos. Baby-sitter. Cuidador de terceira idade. Lauro Henrique passou pelas três profissões em Portugal. Em todas encontrou preconceito por ser um homem num meio dominado pelas mulheres. As dificuldades surgiram de diferentes formas e em diversos níveis. Ora num comentário direto. Ora num emprego que teimava em não se manter. Ora numa divisão de tarefas injusta. Esta é a história de um sonho em português que nunca se realizou e que terminou forçado a emigrar.
No Brasil, ainda adolescente, cuidou da avó quando esta adoeceu com cancro. Foi nesse ano que despertou em Lauro a vontade de cuidar dos outros. Percebeu aí que não podia fazer nada mais da vida, diz, o que o empurrou para um curso de enfermagem. Mas a história que se seguiu não deixou marcas positivas, pelo contrário.
O primeiro contacto com a saúde em Portugal aconteceu em dois lares de idosos. Num, não ficou mais do que um dia. “Fui rejeitado pelos utentes assim que me conheceram.” Nem mulheres nem homens aceitavam que fosse um homem a dar-lhes banho, a despi-los, a movê-los. A rejeição chegou até às famílias, que ameaçaram o lar com a retirada dos idosos da instituição caso o novo funcionário não fosse dispensado. E assim foi. No outro, Lauro foi convidado a sair. Aqui, a rejeição partiu da própria equipa, totalmente feminina, que via uma ameaça à sua segurança trabalhar com um homem. Mas o técnico de assistência pessoal também não estava contente com o trabalho, já que foi contratado para auxiliar, como qualquer outra funcionária da instituição, mas a divisão de tarefas não ditava assim. Para a administração, Lauro estava no lar para “carregar peso” e era alocado apenas para fazer o transporte dos utentes da cama para a cadeira, ou vice-versa. “O preconceito ficou nas entrelinhas”, lamenta. Em nenhum deles o profissionalismo de Lauro foi colocado em causa, apenas o género.
Mas a história não fica por aí. Depois de ter passado também, como auxiliar de terceira idade, pela Cruz Vermelha Portuguesa e pelo Hospital de Braga, onde foi elogiado e acolhido, a história voltou a manchar-se de negro. No Centro de Apoio à Vida Independente (CAVI) realizou mais um curso na área e, daí, surgiu a oportunidade de dar apoio a uma pessoa com autismo. Segundo os técnicos, médicos e psicólogos do centro, Lauro era a pessoa indicada para o trabalho, mas a família auxiliada não ficou com a mesma ideia. “Não me aceitaram por ser homem, por ser casado com um homem e por ser brasileiro.” Aí, recorda, sentiu todos os preconceitos. Explicitamente. Ouviu que os “gays não prestam”. Sofreu acusações de roubo. Foi ameaçado que se abusasse do jovem, seria morto. “Queremos uma mulher aqui” – a frase repetia-se diariamente. O que seria contrato de um ano durou apenas um mês.
Lauro assegura que o pior veio depois. Com a pressão psicológica sofrida, entrou numa depressão profunda. Ficou sem emprego e sem dinheiro. O marido deixou de trabalhar por umas semanas para o apoiar. Só a ideia de voltar a estar sozinho com um utente e a possibilidade de toda a “tortura” se repetir deixavam-no em pânico. A situação melhorou quando, há um mês, decidiu voltar ao primeiro país onde viveu fora do Brasil, a Bélgica. Logo no primeiro dia conseguiu um emprego como baby-sitter, que nunca tinha conseguido em Portugal. Ao mesmo tempo, trabalha também nas limpezas. As duas áreas são, por cá, dominadas por trabalhadoras, mas Lauro garante que, na Bélgica, é diferente. “É tudo mais profissional e não olham ao género para nada.”
Já Diogo Brito, espera-se, não enfrentará a mesma dificuldade na área do cuidado de crianças. Tem 17 anos e concilia o baby-sitting com o Ensino Secundário. Ainda que o futuro seja visto com otimismo, admite que a discriminação está lá. A oportunidade de cuidar de crianças surgiu com um voluntariado organizado pelo colégio que frequenta. Em 20 voluntários, Diogo era o único rapaz. Sentiu a diferença logo aí, mas a situação acentuou-se com a reação dos pais ao novo ajudante da creche. “Deves estar aqui obrigado.” “Mas tu sabes pegar numa criança?” “De certeza que detestas isto.” Por parte dos funcionários – “das funcionárias”, corrige – ou da família, a vontade de ser baby-sitter foi bem recebida. “Todos sabiam o quanto gosto de ajudar a tomar conta da minha irmã.”
Agora enviou currículos para diversas agências de baby-sitting. Ainda não foi contratado por nenhuma, o que, atira, poderá ser pelo género, já que há muitas raparigas da sua idade que conseguem o mesmo trabalho. Mas, apesar de ainda não ter conseguido nenhuma resposta positiva, a discriminação já se fez sentir. “É curioso que no site das agências as palavras estão sempre no feminino.” Procuram alguém cuidadosa, ambiciosa, criativa.
Os dados são claros. São as profissões associadas ao cuidado que mais acumulam profissionais do género feminino. Segundo dados do Instituto Nacional de Estatística, relativos ao ano de 2021, os homens representavam 32%, 34% e 35% dos trabalhadores não qualificados, pessoal administrativo e trabalhadores dos serviços pessoais, de proteção e segurança e vendedores, respetivamente. Dez anos antes, as percentagens fixavam-se nos 26%, 34% e 36%. Ou seja, numa década, a disparidade de género nas profissões não foi atenuada.
Os homens e o cuidado
A mesma conclusão retira o Relatório do Observatório Europeu do Emprego de 2021, intitulado “Disparidades de género e a estrutura de emprego”, afirmando que “as profissões predominantemente exercidas por mulheres são sistematicamente diferentes das profissões predominantemente exercidas por homens”. A maior diferença, refere o estudo, “reside no conteúdo de ‘prestação de cuidados'”. Tal como assinalam os dados portugueses, também na Europa “os empregos não estão a ficar mais mistos em termos de género”. Entre 1998 e 2019, a percentagem de empregos em que nenhum dos géneros é superior a 60% diminuiu de 27% para 18%.
Mas na área do cuidado infantil há ainda mais do que o baby-sitting, já que a disparidade de género acontece também em profissões que exigem nível de educação superior. Se pensarmos num educador de infância, é provável que a primeira imagem que surge seja de uma mulher, batas cor-de-rosa e até uma certa associação à maternidade. Marco Duarte quer quebrar esse estereotipo.
São nove da manhã e os primeiros bebés começam a chegar à creche. Quem os recebe é Marco, sempre com um sorriso rasgado de quem faz daquilo que ama profissão. Nesta turma está há um ano e, por isso, a estranheza inicial dos pais já não se sente. “Nas primeiras vezes que vinha à porta ou que ligava para marcar uma reunião havia um compasso de espera.” Era preciso processar que um homem também sabe cuidar. “Sabemos dar colo, lidar com birras, brincar com as crianças, limpar as lágrimas.” Tudo igual às mulheres, sublinha Marco Duarte, de 31 anos. O maior desejo de Marco é que, um dia, “a educação de infância seja vista como ‘alguém’ que cuida e não como a ‘mulher’ que cuida”.
A dominação feminina nas profissões ligadas ao cuidado está relacionada, indica Ana Brandão, do Departamento de Sociologia da Universidade do Minho, com o facto de as mulheres terem sido “progressivamente remetidas ao espaço doméstico e a todas as tarefas que lhe estão associadas”. A partir da estrutura de casa se fez a estrutura das profissões. “Paralelamente, aos homens foi sendo reservado o espaço público, incluindo as tarefas de defesa e proteção da unidade familiar e da comunidade e a sua representação política.” A sociedade foi evoluindo, adaptando-se às circunstâncias temporais e históricas, mas a “divisão sexual do trabalho acabaria por acentuar-se e consolidar-se”, “reforçando o padrão dismórfico”.
Uma das adaptações referidas pela socióloga é apontada por Luís Ribeiro, presidente da Associação de Profissionais da Educação de Infância (APEI), que destaca a diferença de tratamento existente entre o serviço educativo público e as instituições de cariz privado. Ainda que exista disparidade no número de homens e de mulheres, explicada pelo dirigente pela falta de candidatos do género masculino, “a rede pública oferece uma seleção isenta, não olhando ao sexo”. Já no privado, relata Luís Ribeiro, “há alguém que escolhe” e, muitas vezes, “opta-se pelo género que vai causar menos estranheza e, por isso, não vai repelir nenhum pai ou mãe a inscrever o filho naquele colégio”.
Mas há instituições privadas que começam a trabalhar essa estranheza. O educador de infância Marco Duarte refere o caso de creches que “apostam na variedade de género pela importância acrescida que isso representa”, principalmente, refere, para casais mais jovens ou famílias monoparentais ou homossexuais.
O Marco Duarte adolescente não acreditaria se lhe contassem que, dali a dez anos, estaria feliz numa carreira de cuidado de crianças. Quando a escola secundária que frequentava abriu um curso de apoio à infância, decidiu arriscar. Nunca gostou de “aturar” o irmão mais novo. Também não tinha pegado em nenhum bebé até ali. Ou sequer pensado em trocar uma fralda. Mas no primeiro estágio que frequentou, aos 16 anos de idade, teve a certeza que era aquilo que iria fazer para o resto da vida. E assim foi. Sempre trabalhou na área (na rede pública) e afirma nunca ter sentido discriminação ou obstáculos por ser homem. No entanto, há um preconceito latente “camuflado”. Procurando uma agenda profissional, todas indicam “educadora”. Os manuais, as comunicações internas e os próprios professores e professoras do Ensino Superior referem-se à profissão com o determinante feminino. “São pormenores que marcam uma sociedade.”
Outra marca da sociedade é o número de homens nos cursos ligados às profissões do “cuidado”. Marco Duarte faz as contas. No curso de auxiliar eram três homens em mais de 20 alunos. No Ensino Superior eram apenas cinco numa centena. E os números dismórficos mantêm-se até nas associações. Na APEI, indica Luís Ribeiro, de cinco mil associados, apenas 80 são homens. Por estes números, o presidente consegue extrapolar a situação para a profissão, que, em Portugal, tem cerca de 16 mil educadores de infância no total.
Para além da discriminação dissimulada, Luís Ribeiro encontra outros dois fatores para que a profissão não atraia mais homens: o nível hierárquico desprestigiante, não havendo valorização da profissão de educador de infância e sendo vista como a categoria mais baixa dentro do curso superior; e as questões salariais, argumentado que, a partir dos anos 1990, a rede pública, “a única com atrativo financeiro”, ficou saturada.
Para além de Marco, também Luís é um exemplo na profissão. É o primeiro homem à frente da APEI. “O único problema que pode haver com a candidatura é seres homem”, ouviu na altura em que foi convidado para assumir a direção. Houve resistência por parte de algumas pessoas, mas houve também quem o apoiasse. Já no exercício da profissão, diz, não sentiu nenhum obstáculo. Mas, reafirma, a realidade das instituições públicas, onde sempre trabalhou, é diferente de outras.
A (inexistente) reivindicação
Luís Ribeiro salienta que a dificuldade dos homens na profissão, principalmente ao nível de creche, fez-se sentir em particular durante o século XXI. Apesar de não ser um fenómeno estudado, aponta o caso Casa Pia como um dos marcos para a descredibilização do género masculino no cuidado de crianças.
Porque é que os homens não reivindicam o seu lugar nestas profissões da mesma forma que as mulheres o fazem para profissões consideradas “masculinas”? A socióloga Ana Brandão sustenta que “foram as mulheres que tiveram – e continuam a ter – de lutar pelo acesso ao mercado de trabalho”, não sendo, para os homens, uma questão de “sobrevivência” na sociedade. Além disso, “a feminização de um determinado setor resulta, muitas vezes, da sua desvalorização social”, o que não atrai homens, já que estes “tendem a concentrar-se em áreas com maior prestígio social e melhor remuneradas”.
Lauro Henrique destaca a falta de reivindicação masculina para integrar as profissões de cuidado como um dos principais obstáculos à evolução. “Parece que os homens têm vergonha de falar. Sentem-se menos homens. Sentem-se menos masculinos.” Marco Duarte segue a mesma linha de raciocínio, considerando que o único caminho para “a mudança” é pelo exemplo, como o que estes homens dão. “O estereótipo vai diminuir quando mais homens seguirem o caminho”, trazendo uma imagem de normalidade e de que um homem sabe cuidar do filho ou do irmão mais novo. Também sabe pegar num bebé. Ou sabe até trocar uma fralda (uma das partes favoritas do trabalho de Marco).
Fazer a diferença, flor a flor
João Sampaio concorda com Lauro e Marco e procura fazer a diferença todos os dias para que se chegue à normalização. Como? Oferecendo flores. Cada criança que entra no número 327 da Rua Joaquim Leitão, no Porto, recebe uma flor. João quer incutir o gosto pelas plantas e mostrar que o cuidado não é só para raparigas.
E os adultos também vão mudando a opinião. São cada vez mais as mulheres que o gerente e florista da Santa Flor consegue “convencer” de que uma flor também é uma prenda para um homem. “Ainda há muito a ideia errada de que existem flores de homem ou de mulher, mas o preconceito mais lato de que flores não são para homens já se vai diluindo.”
Desde sempre que João Sampaio viveu no meio das flores, um gosto incutido pela mãe e pela avó. Em criança, a ida à florista era sagrada. Um dia, essa mesma florista a que costumava ir decidiu reformar-se e o jovem de 27 anos aproveitou para manter o local que lhe era querido. Ficou com a loja, renovou-a e a florista que o atendeu por duas décadas está lá hoje como funcionária.
Quando passou para a frente da Santa Flor os comentários fizeram-se sentir. Perguntavam pela patroa sempre que era o rosto masculino que os atendia. Afirmavam que um homem nunca conseguiria fazer um bom arranjo. Mostravam-se surpreendidos por ver a qualidade do trabalho de João. Agora, frisa, os clientes já estão habituados e até preferem o trabalho dele. O sucesso é tal que, no final do verão, vai abrir uma segunda loja, Flores em Foco, também na cidade do Porto. Conta que os currículos que tem recebido mostram um sinal positivo: são igualmente homens e mulheres que procuram um trabalho de florista.
Também para um outro João, mas a viver no interior do país, a prática da normalização é importante. É manicure e faz questão de ser ele a dar o exemplo. As grandes e coloridas unhas de gel que “passeiam” pelas ruas do Fundão não passam despercebidas. São, muitas vezes, olhadas de lado. Mas já conseguiram trazer homens para cuidarem das suas próprias mãos. João Santos sublinha que os clientes do género masculino ainda “procuram algo simples e discreto”, mas que “já é um passo”.
Um passo desde o tempo em que no Ensino Secundário uma professora lhe disse que tinha de tirar as unhas de gel que tinha, porque “não era coisa de homem”. Ou desde que os colegas o olhavam de lado por ir com um estilo aprumado e cuidado para a escola. Ou até desde que os habitantes da aldeia onde vive o criticavam por usar o cabelo “diferente do que estavam habituados a ver”.
O jovem, agora com 20 anos de idade, sempre esteve ligado ao mundo da estética e da moda. Queria ser estilista, mas, com 14 anos, comprou um kit de unhas de gel e percebeu o que iria fazer para o resto da vida. Agora, está a tirar formação para também ele ensinar. Sempre foi o único homem em todos os cursos nos quais participou. Vinca nunca ter sentido preconceito na profissão. “As pessoas perguntavam como é que vim parar a este ramo, mas felizmente nunca ouvi nenhum comentário depreciativo.” Algumas clientes chegavam ao salão pela curiosidade de experimentar o trabalho de um homem. O sonho de vir a ser estilista não ficou perdido, mas, para já, deseja ser falado como “o melhor profissional”, homem ou não, da área.
A importância da formação
“Ainda hoje”, realça Ana Brandão, “os padrões de socialização familiar, escolar e profissional, a cultura popular e a própria organização da vida social assentam na transmissão, explícita ou implicitamente, da ideia de que há tarefas, atividades e profissões masculinas e femininas”. “Isto tem consequências ao nível das escolhas profissionais.”
A normalização é um passo para a equidade. A socióloga alerta para a responsabilidade de cada um. “Na forma como se lida com as questões de género em casa ou no exercício da nossa atividade profissional.” São cada vez mais os homens a partilhar as tarefas domésticas e de cuidado, o que, adianta, se irá refletir na sociedade e na estrutura do emprego. “São modelos importantes e são também resultado do caminho que temos vindo a fazer no sentido da igualdade de género.”
A educação foi considerada por todos estes homens que fazem sucesso rodeados de colegas mulheres como sendo a forma de chegar à equidade. O Observatório Europeu do Emprego de 2021 segue a mesma linha de conclusão, indicando que “a persistência da segregação entre géneros no emprego sugere que é preciso fazer mais”. Mais “através dos sistemas de educação e formação”. A solução passa por “encorajar os homens e as mulheres jovens a exercerem profissões dominadas pelo outro género”.