Hepatite aguda infantil. De onde vem? Como irá evoluir?

É um assunto prioritário. Por várias razões. Porque se manifesta em bebés e crianças. Porque já obrigou a transplantes de fígado. Porque a causa é desconhecida. Há, porém, uma certeza: não há relação com a vacina da covid-19. Independentemente da origem, os procedimentos não mudam. O que tem de ser feito está a ser feito. Os profissionais de saúde estão atentos.

As campainhas soaram no Reino Unido no início de abril. As notícias de um surto de hepatite aguda em crianças, de causa desconhecida, colocaram a comunidade científica mundial em alerta. Em menos de um mês, cerca de 200 casos, sobretudo em países da Europa, mas também nos Estados Unidos e em Israel. Sabe-se que uma criança morreu, a idade e país não foram divulgados, 17 necessitaram de transplante de fígado, mais de 90% recuperaram espontaneamente. Este era o ponto de situação até quarta-feira passada.

Nesse dia, a Direção-Geral da Saúde (DGS) anunciou quatro casos suspeitos desta hepatite no nosso país, crianças com idades entre os sete meses e os oito anos, nas regiões Norte, Centro, Lisboa e Vale do Tejo, internadas em abril. Nenhuma com complicações graves, todas recuperadas, todas com teste negativo para a covid-19, estando em curso, nesse momento, a avaliação laboratorial complementar e a avaliação epidemiológica – eventualmente conhecidas e divulgadas, entretanto. A DGS adiantava ainda a investigação de fatores epidemiológicos como viagens ou ligações entre casos.

Nessa altura, Portugal já tinha comunicado dois casos às autoridades europeias, de duas crianças com quadro hepático viral sem causa conhecida, sem gravidade, com evolução clínica favorável, assistidas num hospital privado em abril. O bebé de 21 meses, que esteve internado no Hospital de São João, no Porto, inicialmente referenciado como caso suspeito, tinha gripe A e já teve alta hospitalar.

A Sociedade Portuguesa de Pediatria (SPP) admite um aumento de casos, à medida que vão sendo reportados pelos profissionais de saúde, e apela à tranquilidade. “Deve salientar-se que, ao contrário da pandemia de covid-19, em que a doença se alastrou muito rapidamente à população, o número total de casos no Mundo continua a ser muito baixo, pelo que não deve ser motivo para alarme social”, adianta em declarações à “Notícias Magazine”.

A hepatite aguda pediátrica inflama o fígado, prejudica o funcionamento normal deste órgão com tudo o que isso implica, ou seja, filtragem do sangue, processamento de nutrientes, combate a infeções. Manifesta-se sobretudo em idades muito precoces, entre os dois e os cinco anos, tanto em meninos como em meninas, não há uma prevalência de sexo. Qual a causa desta doença? E como irá evoluir? A Organização Mundial da Saúde (OMS) já avisou que este assunto é prioritário e urgente. O Centro Europeu de Controlo e Prevenção de Doenças apela à vigilância destas situações.

A gravidade preocupa, por mais que seja uma pequena percentagem de casos, apesar de a maioria ter resolução espontânea sem que seja necessário um tratamento específico. A causa é desconhecida e, por isso, o Mundo está preocupado. Há várias possibilidades em cima da mesa. Haverá um novo agente patogénico, a reação imunológica a agentes víricos que tinham deixado de circular está a ser mais agressiva, haverá uma concomitância de vírus, haverá fatores tóxicos ou ambientais na equação. Haverá um adenovírus que merece uma atenção especial, esses vírus que causam infeções do sistema respiratório e digestivo, sobretudo em crianças. Será uma infeção viral. Será uma resposta excessiva do sistema imunitário que não está habituado a uma agressão tão forte. A OMS esclareceu, entretanto, não haver relação entre os casos de hepatite reportados e a vacina contra a covid-19 ou o consumo de algum tipo de alimento ou medicação. Vírus que causam as hepatites A, B, C, D e E já estão excluídos, bem como as bactérias que provocam gastroenterite em crianças.

“Parece haver, de facto, uma causa infecciosa, uma causa vírica. Mas ainda não temos robustez para dizer qual é”, partilha Caldas Afonso, pediatra, nefrologista pediátrico, diretor do Centro Materno Infantil do Norte, diretor do curso de Medicina do ICBAS – Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar, no Porto. A maior parte das crianças infetadas com a doença tem menos de cinco anos. Até ao momento, pelo menos 17 necessitaram de transplante de fígado, o tratamento de fim de linha. É uma incidência alta num universo de cerca de 200 casos – serão mais, neste momento. “Há o surgimento, muito recente, de uma forma de hepatite aguda que tem uma gravidade clínica que raramente tínhamos dentro daquilo que é a hepatite que normalmente atinge as crianças”, repara Caldas Afonso. Em 40% dos casos foi detetado um adenovírus que causa constipações. Um dos casos reportados à DGS, até à última quarta-feira, testou positivo para adenovírus e a amostra foi enviada para sequenciação ao Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge.

É preciso continuar a observar, a analisar, a investigar. Alargar ao máximo as possibilidades para que todas as causas sejam observadas à lupa. “Independentemente de qual seja o vírus, é óbvio que é importante ter esse dado, em termos de atitude e procedimentos não vai mudar rigorosamente nada perante uma criança doente”, realça Caldas Afonso. Na prática, portanto, nada muda.

A evolução pouco habitual do surto exige uma procura de fatores e explicações. É precisamente o que está a ser feito. “De momento, a hipótese mais provável, mas ainda não provada, é que a hepatite possa estar associada a infeção por um tipo de adenovírus, vírus que pode causar inflamação hepática, embora habitualmente com menor gravidade”, refere a SPP, que não descarta o desenvolvimento de novas respostas. “Com os avanços do conhecimento sobre os fatores causais, poderão vir a ser propostos novos tratamentos.”

“Temos de admitir que estamos a lidar com um inimigo desconhecido”, observa Rui Tato Marinho, diretor do Programa Nacional para as Hepatites Virais da DGS, professor na Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa. Quando assim é, tudo é esmiuçado. “Temos de ter todas as hipóteses em aberto, temos de as ir trabalhando e avaliando. Uma das hipóteses é ser um vírus, uma das hipóteses é este vírus ser um adenovírus”, comenta. Contudo, o uso das máscaras, os confinamentos sucessivos, os constrangimentos provocados durante a pandemia, tudo tem a sua responsabilidade na quebra de defesas e de imunidade dos mais novos no contacto com os vírus.

Nove em dez casos correm bem

Os sintomas confundem-se com os de outras patologias, são inespecíficos, febre, diarreia, vómitos, alguns só aparecem mais tarde. De qualquer forma, os profissionais de saúde estão sensibilizados para o que se está a passar, para pedir marcadores de inflamação do fígado sempre que se justifique, toda bateria de exames necessária. O que tem de ser feito está a ser feito, segundo Eunice Trindade, pediatra no Hospital de São João, no Porto, gastrenterologista pediátrica. Os alertas partiram de unidades de transplantação e de estruturas de saúde de referência da Europa. E, de imediato, se constituiu uma rede europeia para analisar a doença, recolher todo o material possível, amostras biológicas, reportar casos suspeitos. “Apesar de tudo, continua a ser uma coisa rara. Há um aumento de casos, mas ainda são poucos. O esforço continua a ser feito, em pouco tempo, montou-se uma boa rede de informação”, diz a pediatra.

Rui Tato Marinho também destaca esses fatores. “Em dez casos de hepatite aguda numa criança, nove vão correr bem.” Há equipas a trabalhar diretamente com os serviços de saúde britânicos para perceber com detalhe o que se está a passar. “Neste momento, não é uma epidemia tipo covid-19”, avisa Rui Tato Marinho. “Estamos preocupados e estamos atentos”, adiciona.

No entanto, as circunstâncias chamam a atenção dos holofotes mundiais. “O que fez soar o alarme é, aparentemente, num curto espaço de tempo, ter havido um aumento do número de casos em relação ao que era o histórico de outros anos”, constata Eunice Trindade. “A situação de haver hepatite com evolução que culmina com transplante é uma realidade conhecida.”

Já há alguns avanços. Os vírus têm a sua sazonalidade, a sua época, o adenovírus detetado nas crianças doentes, sobretudo no Reino Unido, anda em circulação na comunidade nesta altura do ano. “A questão é tentar perceber, em quem foi exposto ao vírus, se a resposta imunológica muda ou se a agressividade deste vírus é nova.” Há outras questões em aberto. Uma delas, sublinha Eunice Trindade, é se “diminuindo a circulação do vírus na comunidade”, isso vai ter “impacto na redução do número de novos casos”.

Caldas Afonso recua ao verão do ano passado para lembrar que houve casos de bronquiolite grave em crianças, por vias respiratórias, incomuns nessa época do ano, mais habituais no tempo frio e húmido. Poderá haver semelhanças com o que está a acontecer. “Poderá ser um fenómeno igual a este.”

Contágio, reação, memória imunológica

A idade precoce dos casos, bebés e crianças, não causa surpresa. O primeiro contacto com os vírus, um sistema imunitário ainda pouco desenvolvido, uma memória imunológica em construção. A doença é contagiosa, recomenda-se a higiene das mãos e a etiqueta respiratória completa, cobrir a boca ao tossir, espirrar com lenços.

O discurso, apesar de tudo, é de alguma tranquilidade. Eunice Trindade aconselha os pais a confiar nos profissionais de saúde que sabem como atuar em função da gravidade do quadro clínico que as crianças apresentem. Rui Tato Marinho recomenda calma aos pais e cuidadores. “Não entrar em pânico, levar as crianças ao médico quando não se sentem bem, como habitualmente fazem.”

A DGS criou uma equipa para acompanhar a situação internacional, avaliar o risco nacional, elaborar orientações técnicas para a deteção precoce de eventuais casos de hepatite aguda em crianças no nosso país. Uma task force criada, no final de abril, em articulação com o Programa Nacional para as Hepatites Virais e com a SPP, para atualizar toda a informação em torno do surto mundial. Logo que surgiu o alerta, a SPP, juntamente com as suas sociedades de Gastrenterologia, Hepatologia e Nutrição, Infecciologia, Urgência e Emergência e Cuidados Intensivos, criou um grupo de trabalho para manter atualizada toda a informação disponível e para elaborar linhas orientadoras. O Mundo está atento, Portugal também, e todas as atualizações serão feitas sempre que necessário.

Sintomas e cuidados

Hepatite
É uma inflamação do fígado, órgão fundamental na produção e processamento de diversas substâncias, na digestão de alimentos. Quando inflama, não realiza as suas funções em pleno, e os sintomas manifestam-se. A inflamação pode ser aguda ou crónica.

Sintomas
Olhos e pele amarelados (icterícia), febre, urina escura, perda de apetite, fadiga, náuseas, vómitos, dores abdominais, dores nas articulações, fezes de cor clara.

Dos cerca de 200 casos reportados até meio da semana, 17 necessitaram de transplante de fígado.

A Direção-Geral da Saúde recomenda a higiene das mãos, a etiqueta respiratória, o arejamento e ventilação dos espaços interiores ou a limpeza e desinfeção frequente de equipamentos e superfícies. Caso uma criança apresente sintomas respiratórios e gastrointestinais, deverá evitar, como normalmente, creches ou escolas.

Objetivo
A Organização Mundial de Saúde definiu 2030 como data para eliminar as hepatites víricas, para que deixem de ser um grave problema de saúde pública.