Valter Hugo Mãe

Francisco Laranjo


Rubrica "Cidadania Impura", de Valter Hugo Mãe.

Quem não encontrou o Francisco Laranjo dificilmente poderá conceber a sua cordialidade. A maneira quase antiga que tinha de abeirar alguém, cheio de cumprimentos e cuidados, agradecendo e fazendo reconhecimentos com alegria e humor.

Acabo de saber da morte de Francisco Laranjo. O país perde agora um dos seus mais cordiais homens, um artista singular que, aos meus olhos, estudou a paciência da Natureza, o modo como a mancha decide sua própria forma e a beleza vem do que aceita seu erro.

Partilhámos o fascínio pelo Japão. O educado das pessoas e a resistência perante a corrupção de todos os materiais. Quero dizer, admirávamos como os japoneses exigem sempre a qualidade orgânica dos materiais, a veracidade, para alcançarem um resultado que seja de puro equilíbrio com o que a Natureza matura e admite. O trabalho de Francisco Laranjo reflecte largamente sobre isso. Seus gestos são invariavelmente ao serviço de um acaso que se predispõe. Está diante do papel e move-se como se induzisse a tinta à liberdade de um curso de água. Era como um pintor que se retira para deixar que as próprias matérias se lembrem de suas essências e debatam entre si a forma final. E o que vemos em suas obras é o mesmo que pode haver na inteligência de uma paisagem, de um charco, dos lagos de Quioto, da alvorada, da velocidade da asa.

Quem não encontrou o Francisco Laranjo dificilmente poderá conceber a sua cordialidade. A maneira quase antiga que tinha de abeirar alguém, cheio de cumprimentos e cuidados, agradecendo e fazendo reconhecimentos com alegria e humor. Não era de outro mundo, era tão deste Mundo que parecia ter a maior das inteligências: a de não adiar uma declaração de amizade ou afecto. Sinto bem que, se não nos vai dizer mais nada, nos disse exactamente aquilo que importava, não perdeu tempo, não descurou o tempo, não deu nada de barato.

Penso no seu ateliê elegantíssimo. Nos livros arrumados que ele dizia estarem demasiado à sorte, coisa que não é verdade. E penso nas obras, como pareciam esperar ali com calma. Alguns ateliês são educadíssimos à custa do espírito educadíssimo dos seus artistas. Penso nas conversas que tivemos ali, e no modo como esperávamos também pelas tintas secando, a coisa tão rápida da aguarela que não obedece, apenas escolhe a quem quer corresponder. Eu sou da opinião que o Francisco Laranjo fez um pacto com o Deus das substâncias líquidas e conseguiu dele uma erudição admirável. Víamos os papéis secando como se pudessem chegar vozes da distância das manchas, ao fundo, onde parecia acabar ou começar o Mundo inteiro.

Que tragédia, não termos o Francisco Laranjo nas nossas festas todas. Que tragédia, não termos mais o Francisco Laranjo. Embora saiba bem que ele estará sempre como memória grata, bela, do que foi e será a alegria nas nossas festas todas.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)