Francis Kéré: o senhor Pritzker 2022

O primeiro africano a vencer o prémio Pritzker foi reconhecido pelo trabalho pioneiro em "arquitetura sustentável" e em terrenos de extrema escassez. Cresceu no Burkina Faso

Projeta futuros, muito mais do que obras. E faz da limitação de recursos o guia da arquitetura dos próximos anos. O burquinês não larga as raízes que o agarram a África e abre portas ao debate sobre modos de construção sustentáveis.

O ano é 2001, a obra é uma escola primária no Gando, a terra que o viu nasceu, no Burkina Faso – lugar sem água potável, eletricidade ou infraestruturas, muito menos arquitetura. Francis Kéré até podia ter arrumado a vida em Berlim, capital germânica onde se fez arquiteto, mas a mente inquieta não quis ficar longe das raízes. Com a Fundação Kéré, que criou em 1998 a pensar na construção da escola em Gando, no direito de todas as crianças a uma sala de aula confortável, angariou fundos ainda estudante e fez nascer o seu primeiro edifício. Construído pelas mãos do povo, com recurso a materiais indígenas, guiados pela cabeça do arquiteto que haveria de vencer agora, 21 anos depois, o prémio Pritzker, o maior da arquitetura mundial. Francis Kéré, 56 anos, não só é o primeiro africano a ganhar o galardão como simboliza uma mudança histórica de paradigma.

Esta escola, o ponto de partida, pode bem resumir a história de quem fez da arquitetura uma forma de generosidade, um trabalho social, de comunidade. De quem entregou à profissão o poder de reduzir desigualdades, de quem constrói com materiais locais nos mais pobres países do Mundo. De quem pensa na limitação de recursos de uma casa, que é Planeta, a sofrer com as alterações climáticas.

A Escola Primária de Gando marca a obra inaugural de Kéré, que defende que todas as crianças têm direito a uma sala de aula confortável

Mas recuemos nesta película que mais parece um filme de Hollywood. Filho primogénito do chefe da aldeia de Gando, Kéré passou de uma infância ocupada a tentar assegurar comida e água para ser o primeiro da comunidade a frequentar a escola, por insistência dos pais. Só que Gando não tinha escola e, aos sete anos, foi para Tenkodogo estudar numa sala de aula encaixada em blocos de cimento sem ventilação nem luz, num sufoco de calor ao lado de mais de cem colegas, horas a fio. O sonho de um dia criar melhores escolas nunca mais o largou. “Como é que podemos eliminar o calor que vem do sol, mas usar a luz a nosso favor?” A resposta Francis Kéré haveria de a descobrir, quando, em 1985, se mudou para Berlim, à boleia de uma bolsa para aprender carpintaria – e aí continuou a estudar até se licenciar em arquitetura, em 2004.

Voltemos à escola primária de Gando (que hoje conta 700 alunos, sala de professores e biblioteca), Kéré sabia exatamente como construí-la, a pensar no clima local, com luz indireta, telhado elevado para permitir a passagem do ar, câmaras de sombra. Juntou o know-how da arquitetura europeia aos saberes tradicionais das gentes locais. E o entusiasmo das pessoas, como disse numa entrevista em 2015, é o maior combustível.

O projeto valeu-lhe o Prémio Aga Khan em 2004 e foi catalisador para tudo o que veio depois. No ano seguinte abria escritório em Berlim. Desde então, fez-se muito mais do que arquiteto: é professor e ativista social. De escolas primárias e secundárias, criou estruturas de saúde, aldeias, não só no Burkina Faso, mas também no Quénia, Moçambique, Uganda. Do amor ao sítio onde nasceu, uma explicação: “Cresci numa comunidade onde não havia jardim de infância, mas onde a comunidade era a nossa família”. Por África, as obras de Francis Kéré, que vive num corre-corre entre Gando e Berlim, permitiram oferecer educação, tratamento médico, emprego. Um futuro para aldeias inteiras. “Considero o meu trabalho um dever para com esta comunidade”, palavras dele.

A estrutura criada pelo arquiteto para o Serpentine Pavilion, Londres, em 2017, tem a forma de uma árvore, com paredes curvas em azul índigo e o telhado elevado, como muitos dos seus edifícios em África

O burquinês e alemão – tem dupla nacionalidade – expandiu fronteiras. Aproveitou os degraus da fama para construir em vários pontos do Mundo. Dinamarca, Alemanha, Itália, Suíça, Reino Unido, Estados Unidos, e assim continuar a angariar fundos para seguir o trabalho em África. Além de edifícios, criou estruturas temporárias como o Serpentine Pavilion 2017, em Londres; ou um pavilhão que recorreu a troncos de madeiras reaproveitados no Centro de Arte Tippet Rise, em Montana; ou torres coloridas para o festival Coachella 2019. Agora, dois edifícios históricos que lhe auguram voos cada vez mais altos: a construção do Parlamento do Burkina Faso, temporariamente interrompida pela atual situação política no país; e o Parlamento do Benim, já em fase avançada.

Mudar o paradigma e Portugal no mapa

Do Pritzker, uma só certeza do arquiteto. “Espero mudar o paradigma, levar as pessoas a sonhar e a arriscar. Não é porque se é rico que se pode desperdiçar material. E não é porque se é pobre que não se tem direito a qualidade. Todos merecem conforto. Estamos todos interligados e o clima, a igualdade e a escassez são preocupações de todos.” Do júri do prémio, mais certezas ainda que apontam Kéré como pioneiro numa “arquitetura sustentável para a terra e para os seus habitantes, em regiões de extrema escassez”. Mais do que um arquiteto, “melhora a vida de inúmeros cidadãos numa zona do Mundo às vezes esquecida”. E da finalidade de responder a necessidades não faz da arquitetura puramente funcional, mas todo o seu contrário, pensa em edifícios que “demonstram beleza, modéstia, ousadia, invenção”, envolvendo os próprios destinatários na construção.

Sarbalé Ke, as torres coloridas projetadas originalmente para o festival Coachella 2019, feitas de aço e painéis triangulares de madeira, fazem referência à forma da árvore africana baobá

Em 2019, novembro, Kéré esteve em Portugal, para inaugurar uma exposição na Exponor, Matosinhos. À Lusa dizia que “a arquitetura tem de mudar”, porque “consome imensos recursos” e “é importante pensar na sustentabilidade”. Curiosamente, Francis Kéré já tem passado várias vezes por terras lusas. Quem o diz é o bastonário da Ordem dos Arquitetos, Gonçalo Byrne. “É um grande entusiasta de Portugal, devo dizer. Conhece relativamente bem o nosso país no campo da arquitetura.”

Para quem o conhece pessoalmente, a felicidade de lhe ver entregue o “Nobel” da disciplina mal cabe em palavras. “É o reconhecimento de um arquiteto que tem sido uma nova referência, com uma abordagem muito particular e uma obra notável.” E do trabalho do homem “curiosíssimo, extremamente otimista, proativo, com uma visão muito estimulante” chegam questões sobre os desafios que se lançam à arquitetura daqui para a frente. Será a construção sustentável um futuro inevitável? O bastonário defende que sim e que já é esse “o caminho que está a ser feito”, até porque “a sustentabilidade tem sido um tema muito presente em muita da arquitetura mundial, é um dado central”.

Xylem foi um pavilhão criado em 2019 no Centro de Arte Tippet Rise em Montana, imerso na Natureza, e feito com madeira de pinhal sustentável

O exemplo óbvio, diz, foi a criação da Nova Bauhaus Europeia, movimento que quer ser a ponte entre a ciência e a tecnologia e o mundo da arte e da cultura, uma força motriz para dar vida ao Acordo Verde Europeu, baseado na sustentabilidade, inclusão e estética. E onde entra, claro está, a arquitetura.

De Siza Vieira a Souto Moura: as novas lutas

No ano passado, Álvaro Siza Vieira, o primeiro Pritzker português (1992) – Portugal já conta dois, Eduardo Souto de Moura venceu o prémio em 2011 -, assumia no Congresso Mundial de Arquitetos, celebrado virtualmente a partir do Rio de Janeiro, que “a arquitetura atravessa um tempo difícil, sujeita a um equívoco bastante generalizado: ser um luxo caro”. Que não é, garantiu. É antes “um serviço que não se satisfaz para além do que lhe compete por formação com menos do que a beleza” e “uma forma de combate à desigualdade”.

Gonçalo Byrne também lhe reconhece essa “dimensão social”, só que admite que “há um problema: a arquitetura não existe se não houver um encomendador, quem promova, seja público ou privado”. E a Ordem muito se tem batido por “salientar o objetivo último da arquitetura, o de contribuir para melhorar as condições de vida das pessoas, feita com estética e qualidade, como Francis Kéré tem feito”. Mas a ideia de luxo colada a “uma sociedade do entretenimento, da opulência, de exclusividade tem ofuscado o objetivo fundamental” de uma profissão “que deve estar ao serviço de toda a gente e contribuir para cidades inclusivas”.

O Léo Doctors’ Housing acolhe médicos e voluntários no Burkina Faso. São cinco residências modulares

É importante recentrar. Souto de Moura dizia no mesmo congresso ter uma visão otimista sobre o papel dos arquitetos neste Mundo em transformação, já que as dificuldades – com o custo da mão de obra e do material a disparar – desafiam os criadores a procurar novas ferramentas, novos materiais, novas linguagens. Talvez o Pritzker atribuído a Francis Kéré seja motor da mudança.

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