Francis Kéré: “Alguns dos meus heróis da arquitetura são portugueses”

O primeiro africano a vencer o prémio Pritzker foi reconhecido pelo trabalho pioneiro em "arquitetura sustentável" e em terrenos de extrema escassez. Cresceu no Burkina Faso

O primeiro africano a vencer o Prémio Pritzker é amante de Portugal e das suas gentes. De Siza Vieira a Souto de Moura, é aqui que poisam muitas das inspirações do burquinês que está nas bocas do Mundo. Em entrevista à "Notícias Magazine", diz querer alertar para um Planeta com recursos finitos e motivar jovens arquitetos a seguir-lhe as pisadas.

Nasceu no Burkina Faso, um dos mais pobres países do Mundo e com baixos níveis de acesso à educação. Como é que acabou em Berlim a estudar arquitetura?
Vim para a Alemanha com uma bolsa de estudos, para seguir a minha formação como carpinteiro. Nessa altura, percebi que podia aprender muito mais do que isso. E fiz tudo o que estava ao meu alcance para ir mais longe. Aprendi alemão e consegui fazer o ensino secundário em cinco anos através de aulas noturnas, para poder depois estudar arquitetura. Durante o dia fazia biscates, fui estafeta de bicicleta, fiz trabalhos de construção, vendi livros para ganhar a vida e conseguir sustentar-me.

Fez da arquitetura uma forma de generosidade e um trabalho social, ao construir escolas e estruturas de saúde em países pobres. Criou a Fundação Kéré em 1998, ainda assim, como consegue angariar fundos para tudo isto?
O trabalho que faço com a Fundação Kéré é financiado através da angariação de fundos. Começou com pequenas doações de colegas estudantes e de pessoas que punham moedas em caixinhas que fui deixando em livrarias de Berlim. Como o trabalho [a construção da escola primária em Gando, no Burkina Faso] ganhou um reconhecimento fantástico, mais tarde consegui atrair doadores importantes que financiaram uma parte significativa de alguns edifícios. Ainda trabalhamos com base neste tipo de doações. Desta forma, a Fundação Kéré tem conseguido construir infraestruturas de educação em Gando. No entanto, as escolas e centros de saúde que construímos noutros lugares são feitas por outras organizações e o meu gabinete de arquitetura Kéré Architecture presta os serviços de planeamento. Muitas vezes pro bono. Tem sido maravilhoso para mim ver que muitas destas organizações se adaptaram à forma de trabalhar que seguimos em Gando. Ou seja, começar com um edifício e depois ir adicionando conforme as necessidades mudam ou o financiamento chega. O segredo é começar pequeno para que os doadores tenham provas de que o que fazemos funciona e, depois, essa confiança pode ajudar a conseguir mais financiamento.

Qual foi a sensação de receber o Pritzker? Foi uma surpresa? Acredita que este é um verdadeiro sinal da mudança de paradigma do prémio?
Fiquei surpreendido e ainda hoje não consigo acreditar. Que honra. Que oportunidade. Que responsabilidade! Se isso significa uma mudança de paradigma, teremos de esperar para ver. Mas tenho esperança que inspire jovens arquitetos a avançar nesta direção também. E que se perceba que a beleza do design e o uso consciente dos recursos não se excluem mutuamente.

O seu trabalho é muito focado no uso de materiais locais e na sustentabilidade. Este é o único caminho possível para a arquitetura no futuro?
Vejo-me como alguém que aproveita a matéria existente. Trabalho com o que está disponível, abundante e que é conhecido em cada local. E, sim, se quisermos continuar a construir e a criar arquitetura, temos de estar cientes de que os recursos são escassos e finitos. Se a arquitetura não mudar o seu caminho voluntariamente, então um dia a falta de material vai forçar a mudança, quer queiramos quer não.

Esteve em Portugal em novembro de 2019, quando abriu uma exposição na Exponor, em Matosinhos. Qual é a sua opinião sobre a arquitetura portuguesa? Tem algum projeto planeado para Portugal?
Adoro a arquitetura portuguesa. É muito ambiciosa e alguns dos meus maiores heróis são portugueses. Admiro muito a escola do Porto, porque há uma camaradagem intergeracional. Admiro Álvaro Siza e tenho orgulho em chamar amigo a Eduardo Souto de Moura. Além disso, ensinei com Carrilho da Graça e com os irmãos Aires Mateus. Tenho muito amor pelo povo português e pela sua arquitetura. Quanto a projetos, não tenho nenhum em andamento, mas tenho um grande amigo e apoiante do meu trabalho social, José Maria, um empreendedor visionário, que tem algumas ideias, só precisamos de as explorar e ver como podemos trazê-las à plena fruição.

Para um arquiteto que acabou de vencer um Pritzker: como é que é a sua casa ideal?
Um lugar para onde adoro ir, onde gosto de estar e que me dá aquela sensação e energia que diz: “Vai conquistar o mundo e depois volta a casa, recarrega e aí vamos a mais uma ronda”.

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