Valter Hugo Mãe

Francesinha 70 anos


Rubrica "Cidadania Impura", de Valter Hugo Mãe.

A memória conta que foi na Regaleira que um empregado, regressado de França, inventou o prato que se viria a tornar o pecado mais saboroso da cidade do Porto. E conta que fará, neste mês de Novembro, 70 anos que isso se deu. Preocupado com os desperdícios de cerveja, com o lombo que se desfazia e talvez se tornasse deselegante para a refeição mais decorosa, a invenção da francesinha por Daniel David Silva terá tido inspiração nas mulheres francesas que lhe terão parecido “picantes”.

A Regaleira, que abriu em 1934, está em festa e há festa um pouco por toda a parte na cidade, com o ritual obrigatório de afligir a dieta com uma francesinha. O Porto é lugar de tertúlia, de café. São resistentes os encontros que não sucumbem a coisa nenhuma. Lembro de reparar com espanto em como mantemos tertúlias antigas, espaços onde o debate é pressuposto e onde todos os planos se conjecturam e testam, por oposição a cidades maiores que parecem ter mudado tudo para instituições formais, eventos cheios de agenda e etiquetas. No Porto, creio, ainda é do povo o poder, no sentido em que muito pouco se tolera ou silencia. Tudo é passível de ser denunciado mais depressa e mais contundentemente.

Vejo desta forma o sucesso de uma refeição que rapidamente saiu do restaurante e chegou a todos os tascos e cantos onde se mate a fome. A francesinha é popular, no sentido em que não se rende a peneiras e manias. Podem bem sofisticar-lhe os ingredientes, desde camarão até queijos com gabarito, mas é certo que o seu radical é entregue a um espírito impertinente e sem longa cerimónia. Estou convencido de que é uma celebração proletária, sensual, humorizada e vocacionada à conversa. Não se come uma francesinha sem beber bastante, não se bebe bastante sem aspirar à companhia e à conversa.

A Regaleira não inventou o Porto, mas foi ao encontro dele em todo o esplendor. O que ofereceu à cidade é um reflexo da sua própria identidade e é isso que sinto que importa celebrar agora.

Tenho todas as reprovações médicas. Sou um fraco do estômago. Pago a gula com severidade. Mas vou fazendo cuidado. O cuidado maior passa por poder, ao menos uma vez por mês, perder-me a comer uma francesinha igual a alguém que tem um acidente por euforia. Que nunca me tirem essa folia. Que nunca mais acabe a francesinha nem a Regaleira nem a ideia de que, enquanto comemos, discutimos tudo e haveremos de ter ideias boas para salvar o Mundo.

Faça-se uma estátua ao Daniel David Silva. Penso ser elementar levantar uma estátua a este homem. Deixou-nos uma maravilha.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)