Flirt: autoestima, picante extra ou traição?

Catarina Mexia, terapeuta de casal, reconhece que o flirt pode ser, em teoria, benéfico para uma relação

A sedução, enquanto parte integrante da socialização, está-nos no ADN. Mas como se encaixa no contexto de uma relação já estabelecida? Pode ser benéfica? E quais são os limites?

Uma provocação doce, um sorriso furtivo, um monte deles, a atenção constante, as brincadeiras repetidas, um elogio, e depois outro, um piropo até, um olhar intenso, profundo, insistente. Quem nunca flirtou que atire a primeira pedra. “O flirt faz parte da natureza humana”, adverte Ana Carvalheira, psicóloga clínica, sexóloga, investigadora do ISPA – Instituto Universitário. Mas quando enquadrado no contexto de uma relação amorosa já estabelecida e dirigido a um elemento externo a essa mesma relação ganha outros contornos, acicata ciúmes e discussões, levanta questões, tende, com frequência, a ser diabolizado. Uma forma “light” de traição? Ou uma simples massagem ao ego, espécie de certificado de que, mesmo vivendo em compromisso, continuamos a ser vistos e notados, a ter “valor de mercado” (como se há de dizer lá mais para a frente)?

O próprio significado da palavra tende a ser um “statement” redutor. “Ligação amorosa passageira, namorico”, reza o Dicionário Infopédia da Língua Portuguesa, com a chancela da Porto Editora. A definição, em inglês, do dicionário da Oxford será porventura mais certeira. “Comportar-se como se sentisse sexualmente atraído por alguém, mas como uma brincadeira e não com intenções sérias.” Ana Carvalheira destaca precisamente esta questão da intenção. Ou da falta dela. “O flirt é sedução. E por sua vez a sedução é uma espécie de preâmbulo de um jogo amoroso ou erótico. Sendo que uma pessoa pode envolver-se em comportamentos de sedução sem ter a intenção de entrar num jogo amoroso ou erótico.”

Nuno, 34 anos, é um bom exemplo disso. Já teve umas quantas namoradas, flirts, então, nem dá para contar. Mesmo namorando. “O flirt é uma palavra relativa. Para mim, é uma conversa muito animada com alguém, sem intenção de ser mais do que isso, é uma coisa engraçada, é uma forma de quebrar o gelo e criar novas amizades.” E as relações laborais podem representar um campo privilegiado para essa forma de socialização. Nuno lembra-se, por exemplo, da relação “saudável” que criou com uma antiga colega de trabalho. “Ela era um mulherão e eu volta e meia mandava piropos, mas sempre com respeito e porque percebia que ela não se importava. Criámos uma relação de amizade gira, em que conseguíamos falar sobre uma série de assuntos, inclusive sobre sexo, sem tabus. Mas eu não tinha qualquer intenção que aquilo resvalasse para outra coisa e tenho a certeza que ela também não. Até porque éramos ambos comprometidos e quando gostamos da pessoa com quem estamos não faz sentido sequer equacionar que o flirt possa derivar para algo mais.” Nuno admite, sem rodeios, que, aqui e ali, aquelas conversas chegaram a deixá-lo “entusiasmado”. O que acabou por ser proveitoso… para a relação dele. “Era como se acendessem o rastilho. E quando chegava a casa tinha mais vontade de estar com a minha namorada.”

Validação e ameaça

Catarina Mexia, terapeuta de casal, reconhece que o flirt pode ser, em teoria, benéfico para uma relação. “Se as relações estão alicerçadas e ambos os elementos do casal se sentem seguros pode ser algo positivo, pode até ajudar a manter o interesse. Porque nós também gostamos de ter ao nosso lado alguém que está vivo. E sentir que a outra pessoa é capaz de apreciar o que está lá fora pode ser interessante, pode fazer parte do jogo e do picante da relação.” Depois, é a questão da validação, como um “boost” de autoestima. “Tem muito a ver com esta necessidade de nos sentirmos valorizados. E de nos sentirmos vivos. Sobretudo em relações mais longas, quando há filhos, quando há uma série de papéis que se sobrepõem ao papel de marido e mulher, o flirt com terceiros tem este efeito de nos fazer sentir valorizados, de massajar a autoestima. E muitas vezes nem sequer tem o objetivo de concretizar coisa nenhuma.” Como diz Nuno, desempoeirado e com graça: “Quando notas que a outra pessoa repara em ti, que quer flirtar, sentes-te bem. Pensas: ‘Não estou no mercado há tanto tempo e afinal parece que não perdi qualidades’”.

Será isto suficiente para que o flirt com terceiros seja cada vez mais aceite pelos parceiros? Catarina Mexia não consegue responder de forma afirmativa. “Gostava de dizer que sim, que há muitos casais em que estes comportamentos são aceites. Mas na sociedade em que vivemos não é bem assim. Na realidade a forma como olhamos para estas questões ainda é muito fruto de uma corrente tradicional e conservadora que olha para o casamento como algo muito fechado. Aliás, uma das batalhas que travo com os meus casais é para que aceitem que cada um deles pode e deve estar com os seus próprios amigos, sem que esses momentos tenham de ser partilhados. Por isso…” Por isso, não é de estranhar que inúmeras vezes receba no consultório pares em que o flirt é sentido como uma ameaça à relação. “Pessoas que já sentem que já houve ali uma traição.” Aceita, no entanto, que a sua experiência profissional está algo “enviesada”. “Porque à partida quando os casais vêm ter comigo é porque algo correu mal.”

Redes sociais e traição

De resto, as redes sociais e as aplicações de mensagens instantâneas abrem hoje um vastíssimo leque de novos canais e possibilidades de entrar em jogos de sedução. E assim se acrescentam novas nuances às muitas nuances da sedução. Ana Carvalheira dá conta disso mesmo. “O flirt envolve uma componente verbal e não-verbal, é uma conjugação dessas duas componentes. São as palavras, mas também o olhar, os pequenos toques. É tudo o que o corpo transmite. Um simples olhar pode ser muito mais intenso do que quaisquer palavras. E depois há esta nova componente, que se prende com a comunicação anacrónica que as redes sociais permitem e que facilitam o flirt.” Aumentando também o desconforto entre casais, os ciúmes, as acusações de traição.

E por falar em traição, há uma série de questões relevantes que importa colocar. Quão ténue é a fronteira entre um comportamento de sedução e uma transgressão? Como garantir que a primeira não resvala para a segunda? Afinal, quando é que podemos falar de traição? Não há respostas estanques, dependerá sempre da sensibilidade de cada um, dos compromissos assumidos também. Mas há pontos que pode ser interessante considerar. Ana Carvalheira entende que a fronteira se cruza “quando há transgressão e intenção de jogo amoroso e erótico”. “A intenção de trair já é em si mesma uma traição, porque é a intenção que guia os nossos comportamentos”, justifica. Catarina Mexia realça que é importante “respeitar os sinais e limites do outro”. E considera que a traição começa “quando a pessoa está a romper as regras daquilo que foi acordado com o seu companheiro”. “Se está implícito o rompimento do compromisso, se há um segredo, se começa a haver um envolvimento emocional, há um limite que se cruza.” Falar, negociar, perceber os limites do outro é, nesta perspetiva, fundamental. Mas e se os limites do outro forem altamente castradores? Aí, abre-se uma nova problemática. Ana Carvalheira põe o dedo na ferida. “Se é válido pedir ao outro que não tenha nenhum tipo de flirt? Ser é, mas é pouco real. O ser humano é antropologicamente feito para o contacto, para a comunicação, para a interação. E, por conseguinte, para a sedução. Se pedirmos ao outro que não o faça, a dada altura é como viver numa prisão. É o mesmo que perguntar: ‘Olha, queres pôr esta algema e vens comigo para todo o lado?’.”

O flirt em percentagens

76,3%
Pessoas que, segundo um estudo realizado pelo site de encontros www.ashleymadison.com, acabam por ter algum tipo de contacto físico com alguém com quem flirtaram online.

25%
Inquiridos que, questionados pela revista inglesa “Best”, admitiram que serem apreciados por estranhos lhes provoca um aumento do desejo e uma maior atração pelos parceiros.

80%
Casais que não veem mal em que o parceiro elogie alguém do sexo oposto, segundo o mesmo estudo.