Filigrana para curar fraturas

O projeto de biofiligrana pretende testar placas de fixação óssea personalizadas

Placas de fixação óssea, dispositivo médico usado dentro do corpo, podem transformar-se numa peça de joalharia para o doente. Os benefícios na recuperação estão em estudo.

Quando em 2011, a estudar em Londres, Olga Noronha começou a sonhar com o conceito inovador de “joalharia medicamente prescrita”, poucos lhe davam crédito. Nem mesmo o pai, o reputado ortopedista José Carlos Noronha, que talvez até seja o maior impulsionador da loucura de uma jovem designer de joalharia contemporânea em querer unir engenharia, medicina e arte. Os dois pais médicos são explicação que baste: “O meu pai é ortopedista e a minha mãe é médica do trabalho e ajudante do meu pai nas cirurgias. Desde muito pequena que os acompanho, que assisto a cirurgias. Cresci à volta de pacientes. E percebi o quão melhor era a recuperação deles por terem uma relação próxima com o médico”. E até que ponto acrescentar uma dimensão estética aos processos médicos poderia ajudar ainda mais? A artista e investigadora, de 32 anos, está prestes a descobrir a resposta.

Dispositivos médicos, cobertos de joias, que os doentes usam dentro do corpo para recuperar de lesões podem vir a ser uma realidade. Mas é preciso viajar até à capital britânica e rebobinar a fita do tempo para apanhar o fio à meada. Estávamos em 2011, último ano da licenciatura em Design de Joalharia, em Londres, quando a portuense decidiu pegar “em elementos médicos e recontextualizá-los esteticamente para serem mais atrativos”. “Pensando em quem tem medo de agulhas, projetei uma agulha com diamantes que pudesse ser usada na prática clínica.” Acabou por fazer o mestrado em Investigação em Design onde criou o projeto “Joalharia Medicamente Prescrita”. E a isso seguiu-se o doutoramento, ainda em Londres. Passou de agulhas para “colares cervicais, próteses da anca, fios de sutura, placas de fixação óssea”. Uma década a trabalhar afincadamente.

Só que agora a investigação quer sair do papel, ganhar vida. Como? Olga, a viver em Portugal desde 2017, candidatou o projeto a financiamento da Fundação para a Ciência e a Tecnologia. “Achei que nunca ia ganhar, que era um devaneio, tanta gente me achava louca que pensei que isto não ia a lado nenhum.” Conseguiu.

Da ligação emocional às vantagens terapêuticas

O projeto está a arrancar e vai focar-se apenas em placas de fixação óssea, prescritas para curar fraturas, com filigrana. Olga chama-lhe biofiligrana, termo que já registou. “Estas placas ficam por baixo da cútis, aparafusadas a um osso, não podem ser vistas, mas sentem-se ao toque. A ideia é pegar no material preexistente que são placas de metal rígidas e lisas – e que ao fim de um tempo são retiradas do corpo e postas ao lixo, são sucata cirúrgica – e personalizá-las.” Mas se inicialmente, o objetivo era “que o doente criasse uma ligação emocional com este corpo estranho e passasse a sentir que tem valor dentro do seu corpo, em vez de uma artilharia de metal”, aumentando a aceitação, agora é muito mais do que isso. Quando Olga pensou na filigrana, a ideia era a “de renda delicada dentro do corpo”. Mas, afinal, pode mesmo ter benefícios médicos. “Quando fiz os primeiros protótipos e os mostrei ao professor José Simões [especialista em Engenharia Mecânica e diretor da ESAD], um dos meus braços-direitos neste projeto, ele alertou-me para a menor rigidez destas placas e isso poderia significar maior adaptabilidade à geometria do osso.”

Os protótipos vão ser testados em laboratório, onde se vão simular fraturas e cirurgias em modelos anatómicos médicos. “E fazer testes de tração e torção. Teoricamente, há benefícios. A densidade da filigrana e a espessura da placa podem proporcionar uma regeneração mais rápida.”

Uma joia para recordar

O objetivo último é transformar a placa, depois de retirada do corpo, numa joia, o que lhe dá uma segunda vida, em vez do lixo como destino. Será o doente a escolher o que fazer com ela: uma pulseira, um colar, um anel, uma escultura. “Quase como uma memória daquilo que lhe devolveu qualidade de vida”, diz a investigadora.

Olga Noronha, do Porto, divide-se entre a joalharia contemporânea e a investigação

O projeto vai permitir atribuir duas bolsas: engenharia biomecânica e design de joalharia. José Carlos Noronha, o pai de Olga, será o consultor médico. “A pessoa que mais tempo levou a atribuir crédito ao meu projeto não só mo deu, como vai trabalhar para mim.” José Simões (engenharia mecânica), Rafael Coelho (design de produto e interfaces), António Ramos (presidente da Sociedade Portuguesa de Biomecânica), Margarida Azevedo (desenho industrial de equipamento e produto) completam a equipa.