Fernando Pimenta: “Nunca digo queria. Digo sempre quero”

"Era pouco mais do que bebé e os meus avós já me levavam para o campo. Foram um bom exemplo. Ensinaram-me que o fruto dá muito trabalho", recorda Fernando Pimenta

Herdou do Minho a paixão pelo arroz de sarrabulho e a urgência de dizer o que pensa, “por vezes um bocadinho à bruta”. De antes quebrar que torcer, enfrentou o poder federativo, disposto a pagar o preço. Perdeu a bolsa, mas venceu o braço de ferro com a autoridade de quem conquista medalhas atrás de medalhas. De lealdades, mantém o treinador que lhe apresentou a modalidade há duas décadas. Muito competitivo desde o primeiro dia num caiaque, acaba de ganhar quatro medalhas de ouro na Taça do Mundo de Poznan, Polónia. A menos de um mês dos 33 anos, Fernando Pimenta, prata e bronze olímpico, não desiste, nem desistirá tão cedo - quer o primeiro lugar do pódio, nos próximos Jogos.

Vila de Avis, Alentejo. São oito e meia da manhã. Fernando Pimenta tem apenas meia hora antes de começar os trabalhos do dia. Foi por isso uma conversa partida ao meio. Não há atrasos nos treinos, sagrados, do canoísta. Um quarto de hora antes das nove, deixa o hotel a caminho da barragem do Maranhão, construída sobre a ribeira de Seda. Uma das maiores do norte alentejano, é palco preferido de equipas nacionais e internacionais de remo e canoagem. Em dias de sorte grande, caiaques convivem com milhafres-pretos, andorinhas-das-rochas, garças e rolas-turcas.

Promete estar de volta às 10.30 horas. Fernando Pimenta não terá o carisma físico de outros atletas. Não evita, pelo contrário, dá a ideia de que sublinha, o sotaque minhoto cerrado, que talvez o afaste de algumas campanhas publicitárias. Mas há em tudo o que diz honestidade e paixão. Assume o que pensa sobre o desporto nacional. Aponta lacunas e soluções. Corta a direito, de sorriso aberto. Guarda a energia do miúdo arisco.

Regressa do treino duas horas e meia depois. Atrasado, mas disponível para uma longa conversa. Depois de um almoço rápido, mete-se à estrada, a caminho de Pedras Rubras, para apanhar um colega argentino. “Vem de propósito para treinar comigo.” Apesar de ser nada fácil a vida de um canoísta.

Mostre-me as palmas das mãos.
Cheias de calos de pegar na pagaia (remo duplo). Os pés estão iguais.

Imagino que ao fim de tantos anos, já não fiquem em ferida.
Ficam. Quando os calos caem ficam feridas abertas. No inverno, há treinos em que deixámos de as sentir. E, quando começamos a senti-las de novo, temos muitas dores. Mas pior é o rabo, desculpe a palavra. A pele queima, fica em carne viva, cria bolha. Dói muito e não há maneira de contornar isto. Andamos sempre em cima daquela ferida, a massacrá-la duas e três vezes por dia sem forma de nos protegermos. Já tentei pomadas, esponjas, nada resolve. São feridas que nunca cicatrizam. Enfim, faz parte.

Não é fácil estar entre os melhores do Mundo.
Nada fácil. Mas aprendi cedo com os meus avós que nada é fácil. Era pouco mais do que bebé e já me levavam com eles para o campo. Foram um bom exemplo. Ensinaram-me que o fruto dá muito trabalho.

Podiam ser mãos de cavador ou de um operário da construção civil. Apesar de tudo, é melhor ser canoísta.
A canoagem deu-me uma vida melhor, é verdade, se bem que depende do ponto de vista. O que é a minha vida? A minha vida é levar o meu corpo ao limite. Ora isso não dá grande saúde. E depois há o permanente afastamento da família. Ainda esta semana falhei uma data muito importante. Os 18 anos do meu irmão, que é também meu afilhado.

Qual é a ordem do treinador Hélio Lucas Araújo que mais detesta?
Treinos de natação. Pela monotonia e pela temperatura da água. Dizem que é aquecida, mas não parece. Custa-me sempre entrar. Detesto água fria.

Estranho para quem trabalha em água. Muito fria no inverno.
O melhor é não pensar muito. Ir e pronto.

Nunca disse ao treinador “hoje não”?
(Ri). Nunca.

Nem uma vez?
Esqueça. Nem quando estamos doentes. A preparação não pode ser interrompida. Nem pensar.

Como é então um dia normal?
Posso treinar uma, duas, três e até quatro vezes por dia. Corrida, treino de resistência na água, ginásio e, de novo, corrida, por exemplo.

Se não fosse atleta teria ido por que caminho?
Gosto de agricultura, gosto muito de cozinha, mas julgo que teria escolhido alguma coisa ligada às pessoas, à empatia. Alguma coisa que tivesse a ver com ajudar os outros. Cresci num quartel de bombeiros: o meu pai é bombeiro, o meu irmão é bombeiro, a minha irmã é bombeira. Bombeiro não seria, mas talvez polícia.

Por que não bombeiro?
Duvido que tivesse feitio. Uma vez acompanhei o meu pai numa emergência. Estávamos a meio da refeição, deixámos tudo para ir a correr, e no fim ainda ouvimos críticas. As pessoas esquecem-se que o meu pai é, como muitos outros, voluntário, disponível a qualquer hora do dia e da noite. Aquela ingratidão chateou-me de tal maneira que nunca mais. Lido mesmo muito mal com a ingratidão.

De que maneira demonstra a irritação?
Ando a aprender a gerir essas situações e nesse processo percebi que o silêncio pode ser uma resposta muito forte. Mas a minha natureza é responder de imediato. Não falto à educação, digo sempre bom dia e boa tarde, mesmo a quem já me tentou “fazer a cama”, mas sou de resposta pronta. Sou minhoto.

Que mais tem do Minho?
Tudo. Sou dos sete costados. No Minho não temos medo de dizer o que pensamos, por vezes até um bocadinho à bruta. Reconhecemos os nossos defeitos, mas o Minho é o melhor.

Fale-me da sua infância em Ponte de Lima.
Nessa altura a minha mãe era operária têxtil, o meu pai trabalhava numa oficina e os meus avós eram lavradores. Trabalhavam muito para que nada nos faltasse. Foi uma infância feliz.

Assumia o papel de irmão mais velho?
A minha irmã é mais nova cinco anos e o meu irmão 15. Fui quase tutor dele. Mas até se portavam bem.

O Fernando portava-se bem?
Era bastante reguila, sempre muito ativo e mexido. Trepar a árvores e rapinar frutinha era coisa que fazia com muita regularidade. Era também muito distraído, chegava muitas vezes atrasado e a minha avó dava-me nas orelhas. Mas o meu maior medo era quando a minha mãe chamava “Ó Ismael”. Ui.

Não é um nome vulgar.
Foi escolhido por uma prima, a razão desconheço. Mas, por acaso, gosto muito do meu segundo nome. Precisamente por não ser vulgar.

Aos quatro anos começou a praticar desporto. Porquê a natação?
Por ter energia a mais, não conseguir estar quieto. A natação foi para ver se acalmava um pouco e ajudar na postura. De início achei muita piada, mas com o tempo foi-se tornando monótono. Um tanque, volta, um tanque, volta. Sempre o mesmo.

Foi por isso que passou para a canoagem?
Em 2001 surgiu a oportunidade de me inscrever nas férias desportivas da canoagem. Tudo começou aí, sim.

Há alguma razão para escolher desportos individuais?
São muito mais desafiantes, põem-nos verdadeiramente à prova. Gosto do facto de o nosso desempenho não estar dependente do de outros.

Incomoda-o quando alguém “estraga” o seu trabalho?
Fico frustrado e chateado, mas nunca muito stressado. Tento que a pessoa, numa próxima, faça melhor.

Tem noção de que é muito competitivo?
(Ri) Se tenho. E também sei que o empenho no perfeccionismo nem sempre é bem visto por quem não gosta de ser desafiado. Quando vejo que Portugal desceu no ranking de competitividade fico incomodado. Não gosto. Por que não havemos de estar entre os melhores, ou de ser mesmo os melhores? Já tive o privilégio de trabalhar com equipas de canoagem espanholas e alemãs e vou vendo a forma como pensam. E como reagem. Querem e fazem. Eu sou assim: nunca digo queria. Digo sempre quero.

Quando começa a perceber que a canoagem vai ser o resto a sua vida?
Não vai muito tempo. Comecei a pensar nisso em 2009 e 2010 e, com certeza, apenas em 2012, depois da medalha olímpica nos Jogos de Londres.

O que trouxe à canoagem para lá das medalhas?
Boa disposição e amizade. Há muitos colegas que vêm treinar comigo. Espanhóis e até um búlgaro. E se recebo bem sou bem recebido. Os alemães, por exemplo, são muito reservados, mas eu consegui treinar com a equipa deles, na casa deles.

Em que medida as medalhas – sobretudo as olímpicas – o transformaram?
Deixam-me orgulhoso e bastante feliz, mas sobretudo dão-me ainda mais ambição.

Tem a prata (Londres, com Emanuel Silva) e bronze (Tóquio 2020) em Jogos Olímpicos. Falta-lhe o ouro porquê, se já venceu os melhores em campeonatos e taças do Mundo?
Porque ainda não mo deixaram ganhar. Podemos estar muito bem preparados, física e psicologicamente e aquele não ser o nosso dia. Ainda agora, na Taça do Mundo, atingi um marco histórico na canoagem, e julgo até que no desporto uma vez que ganhei quatro medalhas de ouro em distâncias diferentes, porque, para além de toda a minha preparação, era aquele o meu dia.

Ainda não desistiu do ouro olímpico? Tem 32 anos.
Não desisti, nem desistirei tão depressa. Acredito que hei de conseguir. Só se tiver uma lesão. Felizmente, não tenho tido.

Até agora falámos de medalhas. Vamos falar de insucessos. Como reage quando corre tudo corre mal, como por exemplo nos Jogos do Rio de Janeiro?
Nesse caso, a chorar baba e ranho. Foi um dos anos em que fiz maiores sacríficos. Em todos os campos: familiar, pessoal e até financeiro, com algum investimento próprio para que nada faltasse à preparação. Imagine agora, depois disto, ficar de fora das medalhas por um fator externo e que não pude controlar. Custa muito.

Nada o consolou?
Ouvir a alguns colegas que se tudo tivesse corrido normalmente eu era o mais sério candidato ao ouro ajudou alguma coisa. Mas ainda hoje me custa pensar nisto. Fico sempre angustiado. Nesses Jogos aprendi muito.

Acabou por conhecer melhor os portugueses?
A alguns, sim. Certos meios de comunicação social fizeram de mim alvo de chacota. Alguns portugueses deram-se ao trabalho de me enviar mensagens a fazer pouco, a gozar. Que as folhas das árvores tinham sido uma desculpa. Não foi desculpa: foi a verdade. De tal maneira que, juntamente com a Alemanha, a Eslováquia e a Dinamarca, apresentámos queixa. Dos oito finalistas, quatro subscreveram o protesto que só não obrigou à repetição a prova porque entrou tarde de mais. Mas não há melhor forma de demonstrar que foram motivos alheios a mim do que os resultados que obtive a partir daí: medalhas em todos os europeus, mundiais e taças do Mundo. E nos Jogos de Tóquio.

O que o faz chorar?
Na altura chorei de raiva e frustração. Mas nem sou muito de chorar. Só com a família. O que me comove? Olhar para a margem e ver o meu avô a acompanhar a prova.

Só de o dizer fica comovido.
É uma imagem forte.

Uma frase que se aplique à sua natureza.
Antes partido em dois de que dobrado em 3. Antes partir que torcer.

Bom feitiozinho.
Tem de ser, que isto não é fácil (ri).

Grande dose de teimosia?
Se não a tivesse não estava aqui.

A Federação Portuguesa de Canoagem que o diga. Não é a primeira vez que lhe bate o pé.
E paguei o preço. Tive dois processos, em 2009 e 2013, e a bolsa suspensa duas vezes, mas tinha de ser. Eram muitas jogadas nas minhas costas. Não podia aceitar isso nem as ideias do selecionador. Em 2013, no final de um campeonato da Europa, acabado de me sagrar vice-campeão europeu em equipa e individual, bem quentinho e embalado, aproveitei a presença dos jornalistas e disse o que tinha a dizer: que a federação só contava comigo para o Mundial seguinte se, primeiro, eu pudesse competir a nível individual, segundo, se pudesse trabalhar a tempo inteiro com o meu treinador. Já em 2009 tinham tentado impedir-me de competir a nível individual.

“Não falto à educação, mesmo a quem já me tentou “fazer a cama”, mas sou de resposta pronta. Sou minhoto”, garante Fernando Pimenta

Que explicação tem para isso?
Há pessoas que só sabem lidar com os outros se os tiverem sob controlo. Os ariscos não são bem-vindos. Chegaram ao ponto de me convocar para reuniões em que colegas e treinadores da federação me tentaram persuadir a competir só por equipas. Para não me cansar, diziam eles.

O Fernando?
Limitei-me a sorrir e a abanar a cabeça. Todos perceberam que essa insistência era um caminho sem saída. Gosto muito de fazer tripulação e nunca fechei essa porta, mas só podendo competir individualmente.

Sabia os riscos que corria? Se não ganhasse provas individuais estava perdido.
Em 2014, quando comecei a preparação a tempo inteiro com o meu treinador, corri esse risco, mas gosto de correr riscos. Gosto de desafios e quanto mais difíceis melhor. Não esqueço as vezes que vi os meus avós chorarem, com medo. Medo de que me destruíssem a vida e a minha carreira desportiva. Os meus pais andavam com medo de que eu perdesse a cabeça. Ou que abandonasse a canoagem.

O que lhes dizia?
Que estava a lutar por um direito meu, básico, que é poder competir a nível individual e ter o meu treinador. E que essa luta merecia que fosse até as últimas consequências. Em momentos mais em baixo, lembrava-me sempre dos meus avós e da tristeza que lhes causei nessa altura. E pensava “não, isto tem de valer a pena. A luta que tive tem de valer a pena para valer a pena”.

A relação com a federação está pacificada?
A nova direção percebeu o atleta que tem nas mãos. Deram-me a possibilidade de trabalhar a tempo inteiro com o meu treinador, sabendo que sou o mais profissional possível em todas as competições.

A Margarida, três anos, tem o seu feitio?
Uma mistura do pai e da mãe. Vai ser explosivo.

A mãe também é canoísta. Gostavam que a vossa filha seguisse os vossos passos?
Desporto, sim; canoagem, não.

Já a levaram num caiaque?
Ainda não. Temos de arranjar maneira de que seja uma má experiência. (ri)

Vai obrigá-la a estudar? O Fernando desistiu.
Fiz o 12.º ano, estudei Desporto e depois estive em Fisioterapia em Coimbra. Fiz só um ano. Não consegui adaptar-me às aulas matinais e treinos ao fim do dia. Regressei a Ponte de Lima e inscrevi-me em reabilitação psicomotora, mas só fiz os primeiros semestres. Não consegui conciliar o estudo com a alta competição. Passava muito tempo fora.

Olha muito para trás?
Olho muito para a frente.

Arrepende-se de alguma coisa?
Não me arrependo de nada.

Muitos anos de carreira, o mesmo treinador. É raro.
Conhecemo-nos de cor e temos tudo definido. Por vezes, divergimos no ponto de vista, mas a decisão final é sempre a dele. Só tenho de confiar no que ele planifica. Ele pede-me opinião, é verdade, mas no fim é o que ele quiser.

Como acha que é visto no meio olímpico?
Por ser sempre frontal e dizer o que penso, talvez alguns me achem arrogante. Há quem confunda as duas coisas. Mas também há quem me diga que se há um atleta que pode exigir melhores condições para o desporto, esse atleta sou eu. Porque eu ganho.

Tenta ser um exemplo?
Tento ser. Fazendo tudo o mais corretamente possível.

Já não é a primeira vez que reivindica melhores condições para os atletas olímpicos. Comparando com as condições de atletas de outros países. Viajam em primeira, as famílias acompanham-nos, levam com eles os caiaques.
Já dormi no chão do avião.

O que lhe tem feito mais falta?
Uma fundação que zelasse pelo atleta de forma integrada, por exemplo dando apoio às famílias. Os meus colegas de Espanha, em estágios olímpicos, realizem-se onde se realizarem, podem ver as famílias. Não têm de se preocupar se estão bem, se estão mal. Hoje, que se fala muito de direitos e de igualdade – e muito bem -, o que eu vejo em Portugal não é isso. Vejo as minhas colegas com muita dificuldade em conciliar a maternidade com os estágios. O erário público disponibiliza 0,048% para o Desporto. Se todos sabemos que a prática do exercício físico ajuda à saúde, por que não passar a ter 0,1%? Não é 1. É 0,1.

O apoio às famílias, o conforto das viagens, faria muita diferença?
Muita diferença. É claro que quando dizemos que estamos em pé de desigualdade com alguns países, podem responder-nos que em relação a muitos outros somos favorecidos. Mas, então, eu pergunto: que Desporto queremos ter? Se queremos títulos mundiais e olímpicos, temos de nos aproximar dos países que melhores condições dão. Neste momento, os espanhóis estão a fazer “copy paste” do tudo o que a Alemanha faz no desporto. É so fazer “copy paste”.

Dava um bom sindicalista.
(Ri) Tenho pena que nem todos os meus colegas estejam envolvidos. Há uns tempos, integrei a comissão de atletas olímpicos que se reuniu com uma comissão da Assembleia da República para apresentar algumas medidas que atletas e Comité Olímpico entendem ser prioritárias. Poucos colegas se manifestaram. Recebi muitas mensagens privadas de apoio, mas dar a cara, zero. Talvez por medo de represálias.

Ainda acaba na política. Local, por exemplo.
Para já, não.

Para já?
Vejo-me a desenvolver as minhas ideias, isso sim. A criar uma fundação que dê apoio às famílias dos atletas. Criar comissões para o durante e o pós- carreira. Fala-se muito bem em equipas multidisciplinares, felizmente no Benfica tenho acedido a elas, mas o COP tem dificuldades financeiras.

O que significou no seu percurso o contrato com o Benfica?
Pude dizer ok, agora sim, sou profissional. Ganhei outra segurança, deu-me a possibilidade de investir na minha própria casa, de pensar que pelo menos durante um tempo tenho algum desafogo financeiro. E não imagina a estabilidade emocional que isso dá. Às vezes basta o desabafo de um familiar para estragar um treino.

Tem o Benfica, tem o COP, tem patrocínios. Não se pode queixar.
A curto prazo tenho tudo, sim.

Nunca deixou o Minho. Está convencido de que conseguiria mais patrocínios se vivesse no Porto ou em Lisboa?
Acho que sim. Se calhar tinha mais um ou outro patrocinador, faria mais uma ou outra campanha, estaria presente em eventos que dão mais visibilidade, ganharia mais dinheiro.

O sotaque tão cerrado afasta-o de algumas campanhas?
Espero bem que não. O meu sotaque é o meu sotaque. Sai mesmo assim e nunca mudarei.

Nunca prescindiu de viver em Ponte de Lima, desde logo porque tem excelentes condições naturais de treino. É por isso?
E também porque fiz lá os meus investimentos. Um apartamento e, recentemente, um terreno onde queremos construir, mal tenhamos margem de manobra, a nossa casa.

E é uma figura carismática da vila?
Sim, sem dúvida. Isso é bom e importante. O carinho ajuda muito.

Está preparado para o futuro?
O imobiliário é para consumo próprio. Tenho ideia de alguns negócios, um restaurante, por exemplo, mas sempre passo a passo. E, como já disse, quero também dar o meu contributo ao desporto nacional.

Quando pensa abandonar?
Não penso e não quero saber disso. Aí sim, vou ficar muito deprimido. Sei que vai ser a pior fase. Não estou a ver-me sem competir. Sem esta adrenalina. Esta vontade de rebentar nas competições.

Quais são as suas referências desportivas?
Todos os atletas com medalhas olímpicas. E Cristiano Ronaldo. Um atleta que deu tudo e mais alguma coisa e que, mesmo assim, é alvo de crítica fácil.

Porque será?
Por vezes penso se não será um pouco de inveja. Qual é o português que não gostava de ter os carros todos que ele tem na garagem? De, sem fazer nada, poder gastar até ao final da vida 50 mil euros por dia, sabendo que nunca nada faltará à sua família? Se dissermos que não gostaríamos, não estamos a ser verdadeiros. Mas ele tem isso porque fez muitos sacrifícios. Não desiste enquanto há coisas para conquistar. É um líder. Ainda agora no Manchester. Como ele não se levantou para ir buscar sobremesa, olha lá se alguém o fez (ri).

Já o Fernando ia.
Ia. Se bem que ao jantar era capaz de prescindir. A menos que fosse o leite-creme da minha mãe. Com limão.

Sabe fazer?
Não sei, mas não há de ser difícil.

O que sabe fazer?
O mais difícil é decidir o que vamos fazer. Faço muito bem panquecas com a aveia da Gold Nutrition – já agora aproveito, pois é um dos meus patrocinadores – e um bolo de canela com um ovo.

Um ovo?
Um bolo divinal. Mas a receita está nos deuses. Quem ma passou foi o meu pai. Também é o único bolo que sabe fazer.

Se diz que é bom… Os minhotos são gastrónomos exigentes.
Nisso já não consigo defender só o Minho. No nosso país come-se bem em todo o lado. Posso defender o leite-creme à moda de Ponte de Lima e o arroz de sarrabulho, mas no resto do país também se come muito bem.

Fale-me agora das referências pessoais.
Os meus pais e os meus avós, as pessoas que de forma humilde trabalharam e me apoiaram. Durante muito tempo não tive patrocínios. Fui pai… trocinado.

Ainda está triste por não ter sido recebido pelo presidente da República, após a medalha de Tóquio?
Isso foi uma facada. Os meus colegas medalhados foram recebidos – e muito bem – e eu não. Fiquei magoado. Se foi por já ter comendas, continuo a não perceber. Não era preciso darem-me nada. Não me davam nada, mas recebiam-me. Bastava um abraço. Nem uma cartinha. E mesmo o Governo: não é com twittes que se agradece, porque não é no Twitter que alcanço os resultados. Estou a ser o mais sincero possível. Não vou dizer que não ligo a isso porque ligo.

Começamos com as mãos calejadas. Vamos fechar com a pressão a que estão sujeitos. Há vários atletas a denunciarem a linha ténue que separa a alta competição da depressão.
Esse é um tema muito importante. Devemos estar muitos gratos à Vanessa (Fernandes), uma grande atleta, que com imensa coragem contou o seu caso. Um atleta de alta competição vive realmente esse perigo. Ouvimos o que disse a ginasta Biles. Tenho a sorte de ninguém me obrigar a conquistar resultados e são poucos os que me podem exigir que ganhe. Mas a pressão existe sempre.

Em competição, o falhanço de um atleta é público.
Numa modalidade individual ainda mais. Toda a gente vive sob pressão, mas há profissões em que se hoje corre mal, amanhã correrá melhor. Connosco, não. No dia da final, à hora marcada, tenho de estar na largada. Tenho apenas aqueles mil metros para demonstrar o que eu estou a valer. A segunda chance só chegará quatro anos depois.