Valter Hugo Mãe

Fantasmas


Rubrica "Cidadania Impura", de Valter Hugo Mãe.

Vivemos num tempo em que nada precisa de ser verdadeiro. Estamos soterrados na mentira e na especulação e, de algum modo, aceitamos que essa será a normalidade.

Pus-me a ver uma série documental acerca de casas assombradas e, mesmo estando certo de que tudo o que ali vai é manipulação para enganar o crédulo, não pude deixar de adormecer cheio de ideias medricas e suspeitas em relação ao silêncio e à escuridão.

Até hoje, conheci muita gente que contou com honestidade seus episódios sem explicação, mas nunca encontrei alguém que me parecesse credível no exercício da mediunidade. Tenho tido a impressão de que os médiuns que aparecem podem até ser feitos de muita ternura mas quase sempre se sustentam numa vontade descontrolada de chamar a atenção ou ganhar dinheiro. Assim, colecciono com curiosidade as bizarrias das pessoas comuns, mas não me convenço de que existem pessoas capazes de ver ou escutar espíritos e, por isso, capazes de provar que a vida segue para depois da morte.

Uma vez, disseram-me que minha atenção ao tema é a expectativa de que algum dia os mortos me respondam, ainda que eu nem dê conta de estar a fazer uma pergunta. Talvez a atenção poética com que podemos viver seja uma auscultação ao território que haveria de ser de um Deus. Não estou certo de ser esse o ponto. Muita coisa se pôs inexplicável na minha vida e aceito isso, mas claro que tenho curiosidade e tendência para pensar que há uma inteligência no que aparenta ser sem alma. Talvez seja apenas o destino dos corpos, algo da condição orgânica e da imaginação da Natureza.

Sonhei que havia mortos pela casa observando meu sono, à espera. Sonhei que tinha de lhes falar e que vinham de muitas épocas. Quinhentos anos de mortos que se distinguiam uns dos outros pelo aperaltado e se assemelhavam no silêncio e na sabedoria. Os mortos devem saber todos a mesma coisa. Serão eruditos. Senti no sonho, e sonhei muitas vezes com isso pela vida fora.

Na Netflix a série grava vozes e tudo. E os especialistas bravos ficam, afinal, cheios de medo de qualquer suposta manifestação espiritual. Que trafulhice. Vivemos num tempo em que nada precisa de ser verdadeiro. Estamos soterrados na mentira e na especulação e, de algum modo, aceitamos que essa será a normalidade. Tenho saudades da ciência de programas antigos, que perguntavam sem fazer demasiado teatro. Perguntavam diante do enigma e lidavam como gente adulta com o que o enigma oferecia de resposta. Hoje, tenho a impressão de que tudo sucumbe ao disfarce. Tudo se prejudica pelo aparato da mentira que já ninguém acusa. Não sei nem como, neste contexto, haveria eu de passar uma noite inteira em sono de fogo, ardendo no purgatório sinistro dos mortos da minha velha casa. Haja paciência.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)