Falar sem agredir é uma arte

A palavra-chave na comunicação não-violenta é “eu”

Não agredir o outro passa, desde logo, pela forma como falamos. A comunicação não-violenta ou consciente é uma ferramenta para ter diálogos mais profundos, estabelecer pontes e tornar claras as necessidades de cada um. Uma interação centrada nos sentimentos, em que ninguém perde. Todos ganham.

Imagine-se (ou observe-se ou recorde-se) um casal a discutir ou um pai zangado com uma criança. O tema é a arrumação, ou melhor, a falta dela. Talvez uma chávena de café vazia esquecida em cima da mesa ou brinquedos espalhados no chão da sala. São conversas que azedam com facilidade e talvez terminem com um dos adultos amuado ou uma birra infantil. Mas serão mesmo estas discussões sobre a chávena de café ou os brinquedos?

O que frequentemente acontece é que uma pessoa tem um pensamento desagradável a propósito do que vê (“Tenho de ser sempre eu a fazer tudo nesta casa!”), sente-se desconsiderada e reage automaticamente com uma queixa (“Nunca fazes nada!”) ou com uma exigência (“Arruma isso, já!”). Do outro lado, há alguém que se sente atacado ou hostilizado (“Nunca nada do que faço está bem!”). Não: estas discussões não são sobre chávenas de café nem sobre brinquedos. São sobre sentimentos.

“Desejo profundamente que as restantes pessoas que vivem em minha casa cooperem comigo e satisfaçam a minha necessidade de organização, mas gero nelas a emoção e, consequentemente, a vontade contrária”, resume Catarina Ferreira, psicóloga, coordenadora executiva e docente no curso Mindfulness e Comunicação Consciente, do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade de Lisboa a propósito deste exemplo. “Estou a criar uma ponte ou uma barreira?”, questiona. “O que aconteceria se pudesse conectar-me com elas, saudá-las […], falar-lhes do meu cansaço, de como para mim é importante ter a sala organizada e pedir-lhes que cooperem comigo?”

Isto é a comunicação não-violenta. Também conhecida como comunicação autêntica, ou comunicação consciente, e foi criada nos anos 1960 por Marshall Rosenberg (1934-2015), um psicólogo americano profundamente inspirado pela filosofia de não-violência (Ainsa) do líder pacifista indiano Mahatma Gandhi. A ideia de Rosenberg era que a comunicação pudesse ser uma forma de “criar pontes e não muros” entre as pessoas. Para isso, defendeu, seria necessário um processo de comunicação capaz de se focar em observações – e não juízos de valor -, que nomeie sentimentos na primeira pessoa, que identifique e comunique as necessidades de cada um e que, então, aponte estratégias ou faça pedidos que lhes possam dar resposta.

Nos exemplos, o problema não são os objetos desarrumados, daí que a solução também não seja apenas colocá-los no sítio. “A chávena de café é só o estímulo, não é o problema. É aquilo que faz com que uma das pessoas se sinta irritada, frustrada ou magoada porque tem uma necessidade – que pode ser de igualdade, de cooperação ou de organização – que não está a ser satisfeita”, explica Luís Carvalho, professor de Comunicação Não-Violenta e Mindfulness, que iniciou a sua formação nos Estados Unidos, em 2010, com Marshall Rosenberg e a sua equipa. Assim, a estratégia mais indicada talvez não seja apenas solicitar que alguém arrume o que deixou fora do sítio, mas antes ter uma conversa sobre o que é realmente importante: a cooperação, o cuidado conjunto da casa, a divisão de responsabilidades.

“Quando alguém fala sobre o que sente e valoriza, o outro terá mais facilidade em compreender e é menos provável que se sinta julgado e atacado”, frisa também Luís Carvalho. Isso é importante porque aumenta a capacidade de empatia, que só conseguimos sentir se não estivermos sob um clima de ameaça ou ataque.

Não-violenta, mas assertiva

O nome comunicação não-violenta pode induzir em erro os mais incautos: o objetivo desta ferramenta não é ser simpático, “bonzinho” ou dissimular pensamentos e emoções. É o oposto: é ser autêntico. “Esta forma de comunicação oferece-nos a possibilidade de sermos mais verdadeiros que nunca e, consequentemente, mais assertivos”, considera Catarina Ferreira. A forma de comunicação que utilizamos habitualmente é que nos impede de o ser: “Criticamos em vez de dizermos que o que o outro disse nos magoou; respondemos em poucas palavras, em vez de expormos os nossos pensamentos ou necessidades; viramos costas sem experimentar compreender verdadeiramente o outro lado”.

Que o diga Paula Arraião, de 50 anos, professora de Biologia e Geologia. A sua vida de todos os dias é colocar-se em frente a várias turmas de 30 alunos, entre o 7.º e o 12.º anos, para os ensinar e para se relacionar com eles. Defende que “educação é comunicação”, por isso, em 2018, decidiu que estava na altura de comunicar melhor. “Tive disciplinas de pedagogia durante o curso, mas, 20 anos depois, senti que precisava de mais ferramentas”, revela a docente. Há três anos, quando viu que no Instituto Superior de Ciências Sociais e Politicas da Universidade de Lisboa estava a arrancar uma formação em Mindfulness e Comunicação Consciente, não hesitou em passar oito sábados a percorrer para trás e para a frente os 90 quilómetros entre a Benedita e Lisboa para poder assistir. Achou que as ferramentas iam ser úteis para as aulas, mas depressa percebeu que a aprendizagem era para a vida. É que “Paulinha”, como todos lhe chamam, quer por feitio, quer por força da socialização, habitou-se a ser sempre demasiado simpática. “A minha preocupação era sempre não desiludir os outros: não desiludir o diretor, os colegas, os alunos, os pais dos alunos, as minhas três filhas. Mas com medo de magoar os outros, magoava-me a mim: ficava cá tudo fechado”, conta.

O problema não era apenas o mal que lhe fazia essa falta de assertividade, mas também aquilo que chama o “efeito panela de pressão”. À força de ir acumulando tanta coisa por dizer, de tempo a tempo, explodia. E aí, era o oposto. Nenhum dos extremos servia os seus melhores interesses nem os dos outros. O impacto da formação, garante, foi enorme: “Foi um divisor de águas na minha vida na escola, mas também em casa, na relação com o meu marido e com as minhas três filhas, duas delas adolescentes. Sei quais são os meus gatilhos e também como evitá-los. Em vez de calar para depois explodir, passei a saber dizer, a cada momento, o que é importante para mim. E isso muda tudo”.

Muda tudo porque as palavras importam, mas o que as empurra para fora são os julgamentos, valores e emoções. E a comunicação não-violenta é, desde logo, sobre prestar atenção ao que precede as palavras. “Uma comunicação eficaz começa neste primeiro passo, num regresso a casa, num estar atento a si e às suas crenças”, diz Catarina Ferreira.

Só assim, explica a psicóloga, é possível identificar e verbalizar como nos sentimos e quais as necessidades presentes por trás deste julgamento ou emoção. O diálogo então deixa de ser uma reação automática e passa a ser orientado para o que importa. “Entre o que acontece e a nossa resposta há um espaço. É o espaço onde reside o nosso livre arbítrio, a nossa liberdade, os nossos valores. Podemos encontrar e dilatar esse espaço. É treinável.”

O sítio de onde vêm as palavras

Para comunicar assim, para encontrar esse espaço, é preciso estar verdadeiramente presente. “E estar presente é identificar os pensamentos que surgem na cabeça, mas também as emoções, que se sentem no corpo”, pormenoriza Allan Sousa, facilitador de Comunicação Consciente e Mindfulness. E demonstra. “Eu, neste momento, estou entusiasmado e alegre. Sinto-o aqui”, partilha, enquanto aponta para o meio do peito. “Então, pergunto-me: o que está a ser nutrido em mim? Qual é a necessidade que está a ser satisfeita nesta conversa? Provavelmente, uma necessidade de partilha ou sentido de contribuição. E, neste caso, estou a usar o processo comigo próprio, mas também o posso usar com o outro, tentando perceber o que está a sentir, com algumas perguntas”, esclarece.

“Nós aprendemos uma linguagem de alienação e desresponsabilização: focamo-nos no que o outro disse, no que o outro fez. E eu, onde fico?”, questiona Allan. “O convite da comunicação não-violenta para criar encontros com mais qualidade, conexão e intimidade é que cada um perceba o que está a sentir e comunique isso ao outro”, sintetiza o facilitador.

Porque até um elogio pode ser violento. Allan Sousa usa um exemplo para o demonstrar: ver um amigo a ajudar um idoso a atravessar a rua e dizer “tu és muito boa pessoa”. “Parece bom, mas é um juízo de valor voltado para o comportamento do outro e estou a fechá-lo numa caixa de onde ele pode ter dificuldade em sair porque quer corresponder a essa imagem. E isso é violento.” Feito em modo de comunicação não-violenta, prossegue, poderia seria algo como: “Quando te vi a ajudar aquele senhor atravessar a rua, fiquei muito contente e percebi que valorizo muito a entreajuda entre as pessoas. Obriga do pelo teu gesto”. Isto é muito diferente: há uma clareza, um contexto e uma partilha, não uma generalização abusiva, um juízo de valor e uma ausência do “eu”.

Foco no eu – e isso não é egoísmo

A palavra-chave na comunicação não-violenta é “eu”. Não tem que ver com egoísmo, mas com o reconhecimento de que os outros não têm uma bola de cristal para saber o que queremos, nem são responsáveis pela forma como nos sentimos. Este processo de autoconsciência é também um processo de responsabilização pelos próprios sentimentos. Porque, como escreveu Marshall Rosenberg, “somos perigosos quando não estamos conscientes da nossa responsabilidade pelo modo como nos comportamos, pensamos e sentimos”.

“Quantos de nós estamos a fazer o que é necessário fazer para nos sentirmos como nos queremos sentir?”, questiona Catarina Ferreira. “As nossas necessidades são nossas, são sempre nossa responsabilidade. E se, em algum momento, acharmos que o outro pode ajudar a satisfazer uma necessidade nossa, então, é nossa obrigação verbalizar isso mesmo, em jeito de pedido e jamais de imposição”, defende a psicóloga.

Olhando para o Mundo e para os outros, com alguma tristeza, Allan Sousa sente que a comunicação é muito baseada em ver quem ganha e quem perde. Um jogo em que cada um quer ter razão. “A comunicação não-violenta é um ganha-ganha: eu consigo perceber os sentimentos e necessidades do outro e o outro consegue perceber os meus. Então, eu ganhei, o outro ganhou e nós os dois – que somos um conjunto, um sistema – também ganhámos.”

Na despedida, cita Rumi, poeta e teólogo persa do século XIII: “Entre o certo e errado existe um espaço, é aí que me vou encontrar contigo.” Esse espaço, assegura, é mágico. “É onde as necessidades e sentimentos de todos são escutados e compreendidos. É o lugar das relações extraordinárias.”