As vantagens de aprender a ler expressões

Há ferramentas que permitem decifrar as contrações involuntárias (e supersónicas) dos músculos faciais e pô-las em confronto com o que verbalizamos. Dominá-las pode ser uma mais-valia fundamental, tanto no plano pessoal como profissional.

Mary estava internada numa unidade psiquiátrica, com diagnóstico de perturbação depressiva. A dada altura, foi submetida a uma sessão de avaliação. Jurou que se sentia muito melhor e pediu até para ir passar o fim de semana a casa. O médico consentiu. Mas aquela pretensão perversa haveria de se denunciar ainda antes de cumprida. Num rebate de consciência, confessou que tinha mentido. Não se sentia nada bem, tinha até a intenção de cometer suicídio. Paul Ekman, na altura um jovem psicólogo americano (hoje com 88 anos), já interessado no estudo da relação entre as emoções e as expressões faciais, foi então rever o vídeo da sessão até à exaustão, na perspetiva de tentar perceber como aquela doente tinha mentido de forma tão cabal, sem dar sinal disso. Pelo menos, aparentemente. É que ao fim de centenas de visualizações, Ekman acabou por perceber que, num momento de pausa antes de responder a uma pergunta sobre planos para o futuro, Mary deixou escapar uma expressão facial extraordinariamente rápida, quase impercetível a olho nu, mas ainda assim reveladora de desespero.

Ekman passou os anos que se seguiram a estudar a fundo estas contrações inconscientes e involuntárias dos músculos faciais, que se estima que ocorram em menos de meio segundo, e que revelam o que a pessoa está a sentir, independentemente do que possa verbalizar. As chamadas “microexpressões”. Chegou até a viajar ao interior da vasta floresta da Papua Nova Guiné para analisar um pequena tribo canibal que vivia totalmente isolada da civilização ocidental. Tudo para comprovar a teoria, que até já havia sido enunciada por Charles Darwin uns cem anos antes, de que a expressão facial das emoções tem uma origem biológica e universal. Com base nessa certeza, o psicólogo desenvolveu, juntamente com outro colega, Wallace Friesen, o Facial Action Coding System (FACS), tida como a mais completa ferramenta de investigação sobre o rosto humano. Estávamos então em plena década de 1970. O FACS evoluiria depois para o Emotional Facial Action Coding System (EMFACS), espécie de versão 2.0 que apresenta apenas a codificação dos músculos envolvidos nas sete emoções universais: alegria, tristeza, medo, nojo, surpresa, raiva e desprezo.

E que relevância tem tudo isto no nosso dia a dia? Imensa. Freitas-Magalhães, psicólogo, diretor do Laboratório de Expressão Facial da Emoção da Universidade Fernando Pessoa (FEELab/UFP) e autor de vários livros sobre o assunto, chama a atenção para isso mesmo, salientando que temos “tudo” a ganhar se soubermos descodificar o rosto de quem está diante de nós. “Temos de aprender o alfabeto da face como aprendemos o alfabeto das letras. Na face está tudo o que somos, toda a história da Humanidade”, começa por dizer, explicando depois um dos estudos a que se tem dedicado. “Desenvolvi a teoria, em analogia à abordagem neuronal, da ‘mirror-face’, isto é, o ser humano já nasce com estruturas neuronais de inteligência facial, as quais, no contacto com outros indivíduos, vai pôr em marcha, através de uma processo de interação empática, e, neste, são processados os mecanismos instintivos e cognitivos. Nós já nascemos com um programa facial emocional, o qual, depois, tem de ser executado em função das necessidades do indivíduo.”

O docente universitário recorre até a uma metáfora menos óbvia para explicar esta ligação. “A cabeça é um grande teatro onde o cérebro é o grande ator que se prepara emocionalmente nos camarins para representar os atos e as cenas no palco que é a face. E nós assistimos. É assim que funciona a relação permanente e complexa do cérebro com a face, e, depois, com a emoção exibida. Portanto, pessoal e profissionalmente, quem sabe o alfabeto da face é mais inteligente. E esta é uma lição de milhões de anos.” E aponta um conceito inovador. “Enquanto espécie, apenas aqui chegamos porque soubemos utilizar a face em diversos contextos. E eu a isso chamo-lhe inteligência facial.”

Em 2019, Freitas-Magalhães desenvolveu o conceito de “neuromicroexpressões”, “movimentos faciais, involuntários, muito rápidos”, com duração de cerca de um quarto de segundo, e “um vestígio poderoso e valioso para detetar o fingimento da emoção em diversos contextos psicossociais”. Por exemplo? Na Saúde, na Educação, na Segurança, na Justiça, no Desporto… No fundo, em todas as áreas, depreende-se. É o que chama de “expressões faciais incongruentes”. Simplificando: “Quando alguém está a construir uma emoção que quer mostrar na face, e não é aquela que de facto está a sentir, o cérebro sente-se perdido e deixa vazar marcadores inconsistentes.” Dentro disto, o investigador tem-se dedicado, na última década, a estudar os marcadores da dor humana, podendo garantir que as “neuromicroexpressões” nos dão informação “valiosa” sobre a dor real e a dor simulada. “E tal pode ser decisivo na obtenção de um assertivo diagnóstico. Mas são tantas as aplicações…”

Assimetrias e mudanças na cor de pele

Ao nível do marketing, por exemplo. Ana Paula Cruz, docente do Instituto Português de Administração e Marketing e especialista em comunicação e marca, dá exemplos concretos. “Uns olhos abertos com ar de deslumbramento transmitem uma sensação de felicidade. E espera-se que uma expressão mais emotiva possa também causar uma resposta mais emotiva. Sobretudo nos produtos que têm um fator de diferenciação baixo, é comum tentar explorar-se mais o lado emocional. Já numa campanha de serviços bancários, o que queremos transmitir é a ideia de credibilidade. Portanto, aposta-se mais em expressões associadas ao racional, de seriedade e assertividade, olhares mais intensos, frontais para a câmara, um sorriso mais comedido.” No fundo, o rosto e as suas múltiplas expressões como meio privilegiado para provocar a emoção que se pretende. E uma ação correspondente. E isto é verdadeiro tanto ao nível das campanhas de marketing como da força de vendas. “A diferença é que um criativo de uma campanha não o faz com objetividade. Fá-lo porque é algo que está inculcado culturalmente. Na força de vendas é algo intencional. Aliás, o que a PNL [Programação Neurolinguística] diz é que eu vou modificar o meu comportamento em resposta ao meu interlocutor e tentar a resposta que pretendo no outro através dos meus gestos.”

A PNL, uma ferramenta ligada às áreas da comunicação, desenvolvimento pessoal e psicoterapia, é precisamente outra das áreas em que a questão das expressões faciais (e microexpressões) assume particular relevância. Luzia Wittmann, fundadora e diretora do Instituto Internacional de Programação NeuroLinguística, explica o que está em causa, diferenciando a abordagem da PNL daquela que, ao longo das últimas décadas, foi desenvolvida por Paul Ekman. “Enquanto ele se debruçou sobre as expressões universais que transmitem dadas emoções, a PNL procura identificar aquilo que é a linguagem corporal específica de cada pessoa, porque cada pessoa tem a sua própria linguagem.” Também chamada de sintaxe somática, salienta. Ou seja, o conjunto das expressões faciais e linguagem corporal.

Mas no caso do rosto, que tipo de sinais podem ser, digamos, sintomáticos? “Certas assimetrias, as mudanças na cor da pele. Toda a gente sabe que em dadas situações há pessoas que coram. Mas também há outras que a tonalidade da pele pode, por exemplo, ficar mais clara.” E assim se procura conferir “aquilo que a pessoa está a sentir, independentemente do que está a dizer”. E isto, destaca Luzia Wittmann, pode ser usado desde o coaching à terapia por PNL – “Nem sempre a pessoa tem consciência de que o que está a dizer não é verdade”, defende -, desde o contexto pessoal ao profissional. Aliás, exemplifica, isto até já acontece com relativa naturalidade no contexto de uma relação íntima. “Muitas vezes, a pessoa até chega a casa com um sorriso, mas nós percebemos, pelo comportamento dela, por certos sinais, que se passa algo, que está a esconder alguma coisa. O que defendemos é que podemos aprender a ter uma observação mais cuidada em relação às pessoas com quem não temos esse tipo de confiança. Porque, para lá das expressões universais, cada pessoa tem uma sintaxe somática própria.” E dominá-la pode abrir-nos portas sem fim.