Joel Neto

Este é o meu corpo


Rubrica "Pai aos 50", de Joel Neto.

Era divertido, o meu avô. E bom para mim. E era um homem físico, apesar da fraca figura.

Dois terços do que sei sobre a vida, aprendi-o com o meu avô José Guilherme: vendo-o trabalhar na oficina de marcenaria, ajudando-o a tratar das gueixas que mantinha nos cerrados da mata, sentando-me ao seu lado enquanto ele esperava com a calibre 20 os coelhos que lhe namoravam as couves. Ou talvez não tenha aprendido tanto, mas ao menos descobri que existia e podia aprendê-lo. E o outro terço vai igualmente beber ali – porque também se aprendia com José Guilherme que há mais coisas do que aquelas que conheceremos, mas entretanto podemos tentar localizá-las.

O meu avô José Guilherme, sobre quem escrevo bastante, era um homem especial. Era pequeno e colérico, e não estou certo de que os seus destemperamentos – ou o seu paradoxal conservadorismo – não tenham desencadeado neuroses pelas quais ainda hoje pagamos todos. Mas gostava de transformar o Mundo. Inventava coisas e, se não as inventasse ele, trazia-as do passado – de outras ilhas, de algum livro. Tocava saxofone (mal, mas com entusiasmo). Construía charadas. Cozinhava, embora modestamente. Falava-me dos pássaros e das estrelas. E, principalmente, fazia toda a sorte de trabalhos manuais.

Com ele aprendi a abrir os regos em que se semeiam as batatas e a reerguer um muro de pedra que a chuva e o vento tenham demolido. Com ele aprendi a aplainar uma tábua de criptoméria e a fazer, com uma simples cana de bambu, castanholas e pífaros estridentes. Com ele aprendi a cozinhar uma açorda refogada e a armar uma sotil para os canários. E, quando no dia seguinte acordava convencido de que já não ia aprender mais, ele mostrava-me como enxertar um castanheiro num carvalho, ou como ordenhar uma vaca, ou como fazer um conjunto de arcos e flechas com os ramos de uma amoreira.

Era divertido, o meu avô. E bom para mim. E era um homem físico, apesar da fraca figura. Tinha sempre no bolso um canivete pronto a cortar, afiar, polir, limpar. E, se eu não conseguir ser mais nada para o meu filho, gostava de ser ao menos isso. Aquele que lhe mostra que, apesar de tudo o que o possa exasperar, continuará a existir a literatura. E, depois, aquele que lhe ensina as virtudes do trabalho físico.

O trabalho físico bate sempre certo. É redentor. Os materiais são previsíveis e as medidas exactas. As próprias flutuações da Natureza têm um fatalismo: os muros que a chuva faz cair tornam a levantar-se e as flores que o frio não deixa nascer neste ano, deixa nascer no próximo. Não há maior liberdade. De resto, é uma organização, o trabalho físico – um ordenamento do Mundo. E é um momento de silêncio: de pensar, e de tirar notas, e de ouvir podcasts (o meu avô ouvia rádio). Além de que é uma perspectiva de sobrevivência. Se um dia chegar o Armagedão, os primeiros a vencer as cavernas serão esses – os do trabalho físico e manual.

Perco a conta ao que já construí e fiz construir para a chegada do meu filho – eu e a Marta. Entretanto, preocupa-me apenas que o meu modelo de ascendência seja o de um avô. Um avô não é um pai nem tem de tomar as decisões difíceis (e impopulares) de um pai. Mas talvez a idade com que chego aqui me ajude a saltar directamente para a segunda oportunidade – aquela em que se corrigem os erros.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)