Esta pesca já não é para velhos

O estereótipo do pescador envelhecido, pobre e analfabeto está a ser quebrado pelos jovens que assumem o leme e se lançam ao mar. Dizem-se apaixonados pela arte e sonham fazer vida dentro do barco. António, João e Miguel seguiram o legado da família e das vilas piscatórias onde vivem. Diogo é uma exceção à regra.

Não tem um pai que sai de madrugada para pescar. Não teve um avô que o levasse ao mar ainda criança. Não viveu rodeado de pescadores. Desafiou a lógica de legado familiar que a profissão tem e, aos 24 anos, lançou-se às redes. Passado um ano comprou embarcação própria. Agora, não se vê a fazer mais nada. E nem o cheiro intenso, as ondas agitadas e a jornada de trabalho que começa ainda antes de o Sol nascer param o orgulho que Diogo Lopes sente por ter começado do zero.

A conversa alonga-se. Hoje não vai ao mar – uma exceção, pois a maioria dos dias começa por volta das três da manhã – e é fora da doca, mas sempre perto da água, que Diogo Lopes se senta para contar o que é, afinal, a vida de pescador. Se tivesse saído para uma madrugada na faina, estaria de volta pelas 14 horas. Mas o trabalho não acaba por aí. Pisa terra firme e segue para a lota, uns metros à frente. Vende o polvo que apanhou e depois, numa correria entre armazéns e lojas, trata de comprar sal, isco e combustível. A embarcação “Velho abelha”, com a mesma idade que o jovem mestre, é a única companhia de trabalho. Diogo Lopes vai pescar sozinho. “Sozinho salvo seja, há sempre muita gente no cais”, corrige.

Nascido e criado em Lagoa, no Algarve, a ligação à água vem de longe. Foi atleta de alta competição de canoagem desde os 11 anos, sagrando-se campeão europeu e vice-campeão do Mundo. O sonho desportivo teve de terminar devido à falta de apoios e à vida que o obrigava a ajudar a família. A mãe era caixa num supermercado. O pai morreu quando Diogo tinha 12 anos. Há ainda dois irmãos mais novos para criar. Desde pequeno que estudava, competia e trabalhava sempre que sobrava tempo. Até aparecer a pesca.

Sem família no setor piscatório, o algarvio nunca pensou estar entre redes, peixes e barcos. Fez formação no setor mais proeminente na região onde vive: o turismo. Depois de concluir o Curso de Gestão Hoteleira, tirou a carta de barco para iniciar carreira no setor turístico, convencido de que seria para sempre. O “para sempre” durou três anos, até que uma pandemia levou a principal fonte de rendimento da região do Algarve. Sem trabalho no turismo ou na hotelaria, aflito, aceitou a sugestão de um amigo, que lhe falou da pesca. E lá foi.

Começou, no meio de muitos homens e confusão, na pesca do cerco (conhecida como pesca da sardinha). Nunca pensou desistir, mas as primeiras semanas puseram-no à prova. O barco ia e vinha nas ondas, abanava, tinha um cheiro intenso e não faltavam gritos de um lado para o outro. Agora, já habituado, afirma que será para sempre, nesta profissão que lhe traz independência financeira, disponibilidade horária e muitos sorrisos.

Aos 25 anos e sem familiares no setor, Diogo Lopes comprou a embarcação “Velho abelha” e começou a pescar sozinho
(Foto: Carlos Vidigal JR/Global Imagens)

Foi também a sazonalidade dos empregos na região costeira de Sesimbra que empurrou António Salter, de 23 anos, para a pesca. “Aqui a malta faz o verão nos restaurantes e nos hotéis e depois chega ao inverno e leva um pontapé.” Passou por restaurantes, talhos e pela construção civil. A vida do mar foi a única onde encontrou estabilidade. “Para constituir família até é melhor ser pescador. Não trabalho ao fim de semana, nos feriados, nas festividades e chego a casa cedo.”

À imagem de muitos jovens da região, tirou o curso profissional de restauração. Seguindo o legado familiar, pelo qual até a mãe já andou ao mar, tirou a cédula marítima aos 15 anos. “Supostamente não era para fazer disto vida.” Mas fez. E agora já tem a carta de mestre.

Futuro garantido

António Salter reconhece o envelhecimento e a falta de mão de obra no setor das pescas, mas garante que a profissão tem futuro. “Os mais velhos hão de ir para a terra da verdade e quem está cá é que vai ganhar, porque a pesca é um setor primário e quem quiser peixe vai comprar ao preço que estiver.” Os últimos dados disponibilizados pelo Instituto Nacional de Estatística (INE), referentes a 2020, dão conta de mais de 15 mil pescadores matriculados. Desde 1982, na altura com perto de 48 mil inscritos, a tendência é de queda.

Com um estilo que lhe denuncia a juventude, de boné e casaco de marca, António Salter diz querer “limpar” a imagem do pescador miserável. Segundo ele, é o que impede mais jovens de sonhar com a pesca como futuro. “Em quatro anos, não posso falar mal.” Não tem problemas em referir valores e assume que, apesar de estar dependente das condições atmosféricas – “A Natureza é o nosso patrão”, frisa -, em apenas uma semana consegue “tirar” um ordenado. Também já teve semanas em que ganhou 20 ou 30 euros, mas “umas dão para as outras”. A chave para o sucesso, confidencia, é “ter juízo”. E não ter a vida a girar apenas à volta do barco. O jovem de Sesimbra quer mostrar-se muito mais do que apenas “o pescador”. Gosta de jantar fora, conviver com amigos e dançar. Os fins de dia são passados na Associação Tripa Cagueira, onde respira carnaval e animação.

É aos nove anos que surge a primeira memória. Na aiola desde a qual conta hoje a sua história, sentado no casco de madeira verde e vermelho, foi muitas vezes às lulas, com o pai. Também na infância recorda que ia ao mar com o avô. Mas pescar “a sério” foi aos 20 anos. Vómitos, enjoos e o corpo fraco. Mas nem a má experiência inicial o fez duvidar. Deixou a “Jaime e Lucinda” da infância e atualmente trabalha na embarcação “João Alexandre”, juntamente com um tio.

António entra nos números do INE que mostram que 22, 1% da população piscatória tem menos de 35 anos. O problema do envelhecimento não é exclusivo da pesca, mas, aqui, parece que a situação se agrava. Porquê? João Marques, criado nas Caxinas e pescador na Póvoa de Varzim, terras vizinhas, pergunta e responde: a má imagem atribuída à vida da pesca não lhe dá esperanças para que novas caras integrem a profissão. “O que se criou foi que o pescador é um miserável.” Até dentro da própria comunidade, desabafa. “O pessoal às vezes fala pior do que realmente é e essa ideia não atrai jovens – diz-se logo que se trabalha muito e não se ganha nada.” Aos 30 anos, com casa e carro próprios e uma família com dois filhos, diz ser a prova de que não é verdade. “A pesca já não é o que era.” O trabalho mais físico, árduo e perigoso tem sido diminuído ao longo dos anos com a modernização das embarcações.

Desde criança que António Salter vai ao mar com o avô e o pai. Encontrou na pesca a estabilidade que o turismo não proporcionava
(Foto: Carlos Pimentel/Global Imagens)

Apesar da idade jovem, as três décadas de vida de João já lhe permitem sentir diferenças na mão de obra piscatória. “Chegávamos com o barco, e havia sempre dois ou três rapazes a pedir vaga. Agora não. Se aparecesse algum para trabalhar, dava-nos jeito.” É hoje o responsável pela embarcação que emprega o primo, o pai e mais dois homens. O barco foi comprado pelo avô quando João era ainda criança. Passou depois para o tio, que faleceu recentemente, o que obrigou João, em circunstâncias desagradáveis, a “subir” a mestre. Manchado por uma perda precoce, o sonho de criança realizou-se.

Explica que a “vida de mar”, como lhe chama, não é só atirar a rede e pescar. Sentado num cobre, uma “armadilha” de metal lançada ao mar na pesca artesanal, vai trocando impressões com a família de pescadores, que também está pela doca. Devido a uma avaria no motor, há três semanas que nenhum destes homens vai ao mar. Por isso, há trabalho em terra. João Marques diz que falta conhecimento da diversidade da profissão. “Há muito para fazer” e a solução para divulgar, aponta, é ser possível estagiar. “Sem cédula marítima não posso levar alguém a experimentar e ninguém vai querer perder tempo a estudar para uma coisa com a qual nunca teve contacto.” Mudar a forma como se tira a certificação é outra das propostas do jovem cheio de ideias – “As coisas práticas aprendem-se no barco e não dentro de uma sala de aula”.

Manuel Marques, presidente da Associação de Pescadores do Norte, sediada nas Caxinas, Vila do Conde, vê com bons olhos a ideia de se poder experimentar a atividade, tal como acontece nos “trabalhos terrestres”. Outra das apostas do dirigente é criar formação profissional na área. “Como não aprendes nada da pesca na escola, quando acabas os estudos vais para medicina, biologia, arquitetura, engenharia. Para a pesca não há nenhum curso superior ou profissional.”

A diminuição da frota e, simultaneamente, a sua modernização é mais uma das lutas da associação. Tudo a pensar no futuro. “Eu acredito que daqui a frente, se as embarcações se renovarem, vão ter condições atrativas para jovens pescadores.” Neste momento descreve e lamenta o panorama obsoleto, que não chama juventude. Este é um tópico particularmente especial para a presidência de Manuel Marques, o corpo dirigente associativo mais jovem no setor.

Não quebrar o legado

Jovens como João Marques são, na esmagadora maioria das vezes, atraídos pela história de pais, tios e avós. “No meu pensamento é um trabalho familiar.” Desde criança que vai ao mar no mesmo barco, que nem sempre foi branco com as riscas coloridas que o distinguem: já levou algumas pinturas desde a primeira viagem de João, por volta dos quatro anos. E nem um susto, há quatro anos, o parou. Uma onda inesperada bateu mais forte no casco e, mal apoiado, caiu ao mar. “Não me saía uma palavra da boca, mas troquei de roupa e continuei.” É ao recordar esta história que o pai, também João Marques, não resiste em aproximar-se. “Não queria esta vida para ele. Já lhe disse.” Mas o orgulho, esse, não o esconde, quando vê o filho ao leme.

E João Marques gostava de passar o legado. “Se for a pesca o futuro dos meus filhos, porque não?” Aos cinco anos, o mais velho já andou na embarcação. Assim, são quatro as gerações que já passaram por aquelas tábuas de madeira. “O futuro tem de ser continuar com isto.” E isso cabe aos mais jovens, como João. “Se a pesca desistir, eu vou ter de desistir também. Até lá, cá ficarei.”

A história de Miguel Vicente, de 21 anos, é semelhante à de António: estudou para pastelaria e cozinha, tinha ligação familiar ao mar e aproveitou a falta de trabalho e a instabilidade do setor turístico para experimentar a pesca. Experimentou e ficou surpreendido, pela positiva. “O meu pai passava-me uma ideia de que era pior do que realmente é. Ainda se pensa que é como antigamente, que as pessoas são brutas, carrancudas e que não ajudam.” Nada disso, sublinha. O jovem sesimbrense só vê vantagem na profissão. “Podes trabalhar mais um bocado, mas és bem recompensado monetariamente. E não é uma vida assim tão dura como toda a gente pensa.” Miguel até já sente saudades. Foi operado a um problema de saúde e está parado há duas semanas. A voz sai-lhe com um suspiro: “Quero o mar, já estou a dar em maluco”.

Miguel Batista afirma que a vida no mar “não é para quem quer, é para quem gosta”, dizendo-se apaixonado pela profissão
(Foto: Carlos Pimentel/Global Imagens)

Não é apenas a pesca que tem algo a oferecer, também os jovens trazem algo para a profissão. Para Miguel, a maior vantagem é a inovação. Para provar o seu ponto de vista, recorda uma história do pai. “Os antigos não gostavam muito de pescar no fundo, diziam que lá não se apanhava nada, e houve uma vez que o meu pai experimentou e o meu avô chamou-lhe maluco.” Nesse mesmo dia, provou que uma nova cabeça traz também novas ideias e o pai de Miguel chegou à doca com um lance “que deixou todos de boca aberta”. Agora, passadas três décadas, é o pai que é ajudado, quando Miguel dá uma mão com as novas tecnologias que vão chegando à profissão.

A espiral da burocracia

O envelhecimento da profissão é reconhecido pelas entidades oficiais, mas as ajudas parecem não estar alinhadas com o problema. São 6,1 mil milhões de euros que o Fundo Europeu dos Assuntos Marítimo, das Pescas e da Aquicultura (FEAMPA) tem destinados ao setor até 2027 para a Europa – a verba destinada a Portugal ainda não está definida -, focando na “pesca sustentável” e na “salvaguarda das comunidades piscatórias”, lê-se nos objetivos. Mas a única medida que consta no programa destinada em particular ao emprego jovem é o apoio na compra da primeira embarcação, medida que, ainda que sem sucesso, já esteve presente no programa do Mar 2020. No total foram recebidas apenas oito candidaturas. Em resposta à “Notícias Magazine”, o Ministério da Agricultura e Alimentação, atualmente responsável pelas pescas, sublinha que o novo programa apresenta melhorias (o apoio passou de 25% do valor da embarcação para 40%) e que a ação nacional está limitada pelas diretrizes europeias. “O diagnóstico sobre a pouca adesão da medida é conhecido. Porém, as disposições aplicáveis não podem ser alteradas unilateralmente por Portugal, sendo necessária uma renegociação a nível da União Europeia.”

Ainda que o dirigente associativo Manuel Marques assuma que reconhece o esforço do Governo português para acolher as preocupações de quem está no ativo, afirma que a única medida dirigida aos jovens não é realista. “Não adianta eu dizer ‘Compra um barco e depois safa-te’ se a pesca não é sustentável. Não se pode viver de esmolas.”

O Ministério da Agricultura e Alimentação responde que “a renovação de gerações não passa exclusivamente pelos apoios ao arranque da atividade”, garantindo que outras medidas abrangentes a toda a população piscatória são também aplicáveis às novas gerações. Ainda assim, não existe um plano estratégico focado na captação de mão de obra jovem. No entanto, a vislumbrar um futuro como o que João e Manuel Marques propõem, o gabinete responsável pelas pescas refere que, no FEAMPA, se prevê “o financiamento de estágios a bordo de navios de pesca, que potenciem a atratividade do setor e a empregabilidade”.

Diogo Lopes é um dos raros casos em que um jovem se lança ao desconhecido. Comprou a embarcação aos 25 anos, sem conhecer o apoio referido. “Há muitas ajudas, mas são coisas que se vão ouvindo.” Uns comentários aqui, outros acolá, o apoio do qual Diogo Lopes poderia ter usufruído, por a sua situação e a embarcação encaixarem nas regras iniciais de candidatura, não chegou aos ouvidos do lagoense. “Não estão feitos para serem utilizados”, desabafa. “É bom para alguém que queira investir, com um projeto, mas não é adequado a quem quer trabalhar, a quem está aqui, no terreno.”

Apesar da falta de proximidade governativa que sente, Diogo Lopes apressa-se a pintar a imagem tão brilhante quanto o seu barco nas margens da foz do rio Arade. Vale a pena viver do mar. “Ser pescador é sinónimo de liberdade.” É trabalhoso, duro até, diz, mas ser livre é a sensação impagável pela qual Diogo correu atrás toda a vida.