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Escrita à mão. Crónica de uma morte anunciada?

Fotos: AdobeStock

Dantes as crianças pegavam em lápis em tenra idade e começavam a fazer os seus desenhos e “gatafunhos”. Hoje, muitas viram isso substituído pelos ecrãs táteis dos tablets e telemóveis

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As cartas de amor pingadas de lágrimas foram trocadas por emojis no WhatsApp. Os manuscritos rasurados sumiram-se às mãos da Times New Roman do computador. As garatujas infantis passaram do papel para o tablet. Pegar numa caneta e desenhar as letras numa folha de papel ainda importa? Domingo, dia 23 de janeiro, assinalou-se o Dia Mundial da Escrita à Mão.

No dia 23 de novembro de 2021, no número 9 da Avenue Matignon, em Paris (morada da leiloeira Christie’s na capital francesa), um manuscrito foi arrematado em leilão por mais de 13 milhões de euros. O conjunto de 54 páginas manuscritas, em papéis soltos, data de 1913 e 1914 e foi escrito pelos punhos de Albert Einstein e do seu colega e amigo Michele Besso. É um documento com os trabalhos preparatórios para a Teoria da Relatividade Geral, publicada em 1915, e encapsulada na famosa equação E=mc2. Nas palavras do comunicado da leiloeira, o documento oferece uma “fascinante imersão na mente do maior cientista do século XX”.

Ao contrário do texto digital – padronizado, assético, definitivo -, um manuscrito mostra o processo mental, e às vezes emotivo, do seu criador: tem rasuras e correções, erros e notas à margem, o início de raciocínios que são abandonados e substituídos por outros. É um pouco da pessoa e do que ela pensou que chega às nossas mãos, neste caso, mais de cem anos depois. E não há como negar o imenso lirismo que há nisso.

“Não há dúvida de que ler manuscritos dá imensa informação sobre a pessoa. Não porque se possa ver a sua personalidade pelo tipo de letra – essa ciência parece-me pouco segura -, mas pelo conteúdo”, considera Alexandre Castro Caldas, neurologista e diretor do Instituto de Ciências de Saúde da Universidade Católica Portuguesa. E partilha um exemplo seu. “Conheci muito melhor o Egas Moniz lendo os livros da sua biblioteca: ele tomava imensas notas nas margens. Percebe-se que aquele homem não teve duas grandes ideias na vida, mas antes mil. Estava constantemente a anotar nas margens ‘e se?, seguido de hipóteses. O ‘e se?’ era a formulação mais frequente.”

Apesar disso, frisa, o vislumbre para a mente do outro que o manuscrito transporta está no conteúdo e não na forma de escrita em si. “Acredito que vamos deixar de escrever à mão”, vaticina o ex-diretor do Serviço de Neurologia do Hospital de Santa Maria, Lisboa. E apesar de escrever à mão primeiro e só depois passar para o computador, a morte anunciada da escrita caligráfica não o assusta, nem considera que daí venha alguma tragédia. Os receios que as novas possibilidades causam é, aliás, um dos mais velhos problemas do Mundo. “É preciso olhar para a forma como a Humanidade tende a adaptar-se à novidade: Sócrates achava que aprender a escrever era perigoso porque deixávamos de pôr as coisas na cabeça quando as púnhamos no papel, está mais do que visto que não é assim. As pessoas ficaram aflitas com a linha férrea, com medo do mal que lhes faria um comboio a andar a 30 quilómetros por hora e hoje os comboios andam a mais de 300.” Resume assim, sem dramas: “Os humanos adaptam-se às coisas que foram eles que inventaram”.

A escrita, as crianças e a leitura

Dantes as crianças pegavam em lápis em tenra idade e começavam a fazer os seus desenhos e “gatafunhos”. Hoje, muitas viram isso substituído pelos ecrãs táteis dos tablets e telemóveis. A literacia e competência digital são importantes e devem ser valorizadas, claro, mas Mónica Pinto lembra que a “escrita manuscrita envolve uma quantidade de funções cerebrais muito maior do que apenas pressionar teclas”. A quantidade de músculos envolvidos na escrita manual, a adaptação da pega ao instrumento de escrita e a pressão exercida são alguns dos aspetos que levam a que “haja a estimulação de múltiplas áreas cerebrais, tornando o ato da escrita mais físico, multissensorial e multidimensional”.

O que inúmeros estudos mostram de forma consistente é que escrever à mão não é apenas importante do ponto de vista das capacidades de escrita, mas também das de leitura. “Sabemos há 50 anos que escrever à mão potencia a aprendizagem da leitura mais do que treinar só a leitura. E, mesmo hoje, com as novas tecnologias – a utilização do tablet ou teclado – tem havido ampla literatura a mostrar que a aprendizagem usando a escrita à mão tem maior benefício na capacidade de reconhecermos as letras e de lermos palavras”, conta a psicóloga experimental Tânia Fernandes, da Faculdade de Psicologia da Universidade de Lisboa, onde coordena o grupo de investigação “Cognição em Contexto”. E estes resultados de investigação, na sua opinião, têm uma aplicação muito linear: “O treino da escrita à mão, seja em crianças, seja em adultos que estão a aprender a ler, é muito importante e deve ser mantido”.

Várias pesquisas demonstram também que crianças com melhor competência na escrita à mão – escrevem mais depressa e com boa legibilidade – produzem melhores textos. A psicóloga experimental explica-o com uma analogia: o cérebro é como um carro que precisa de combustível, e o seu combustível é a atenção. Se a atenção está focada em como desenhar as letras ou em que sílaba vem a seguir, não está centrada no conteúdo do texto.

O mesmo acontece com a leitura. E dá um exemplo que considera “assustador”: um relatório da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico mostra que o nível de leitura de palavras se correlaciona com produtividade laboral em adultos. “E faz sentido porque um leitor proficiente e rápido, obviamente, gasta menos tempo na leitura e fica com mais tempo para se dedicar a outros processos cognitivos.”

Apesar de tudo, a discussão sobre se vale ou não a pena treinar as crianças na escrita à mão existe. Em países como a Finlândia, por exemplo, desde 2016 que as escolas desinvestiram no ensino da letra cursiva e os alunos passaram a ter mais atividades de digitação em teclado. A investigadora reconhece que o debate é legítimo, mas sublinha que, além da atual investigação mostrar benefícios na escrita à mão, a questão extravasa o campo da Psicologia Experimental: “Penso que a eliminação do treino de escrita caligráfica pelo sistema educativo é perversa, principalmente, quando existem variações socioeconómicas muito grandes”.

Na saúde e na doença

As dificuldades em escrever à mão no adulto podem ser sintomas de doença, grave em muitos casos. Dificuldades ou alterações na escrita, aconselha a neurologista Ana Castro Caldas, devem sempre motivar uma ida ao médico. As causas podem ser muitas. “As pessoas com doença de Parkinson apresentam frequentemente queixas de alteração da escrita, tipicamente, a micrografia ou redução gradual do tamanho da caligrafia”, esclarece a médica coordenadora clínica do CNS – Campus Neurológico, onde trabalha sobretudo com doenças do movimento.

Hã várias doenças que podem impactar a escrita. Uma das mais frequentes é o acidente vascular cerebral (AVC). E uma das mais curiosas é a distonia, caracterizada por “movimentos involuntários tipo contração ou torção dos músculos dos dedos, mão e antebraço”, e que “quando aparecem apenas na escrita, chamam-se cãibra do Escrivão”.

Mas o que se escreve e como se escreve, na ausência de doenças, é, sobretudo, um sinal de saúde e uma forma de a promover. Escrever é terapêutico. A psicóloga clínica Sílvia de Jesus Coutinho, recorda que a psicoterapia foi durante muitos anos considerada a cura através da fala, “já que a linguagem, torna o indizível expresso, o invisível mais visível, o incompreendido mais acessível à mente e passível de ser compreendido”. Mas também a escrita cumpre esse papel. “Muitos estudos confirmam que a escrita pode apresentar um importante papel no decorrer do processo terapêutico: é uma via de externalização para emoções e pensamentos, que tantas vezes bloqueiam as pessoas e que acabam por assumir um impacto nocivo para a sua saúde física e mental.”

O paciente, ou cliente, pode ser convidado a escrever de várias formas: escrita livre diária, um diário de gratidão ou de sonhos e ou até mesmo fazer exercícios mais concretos, como escrever uma carta a alguém. O objetivo, pormenoriza, é ganhar “clareza sobre o seu sentir”, sobre o Mundo e os outros, “colocar tudo em perspetiva”, “ganhar autoconhecimento e reequilíbrio emocional”. E escrever cumpre esse papel mesmo fora do contexto da terapia. Sílvia de Jesus Coutinho exemplifica, citando o “Diário de Anne Frank”, através do qual a menina “conseguia sentir-se menos isolada do Mundo, exteriorizar as suas emoções e obter algum alívio e conforto através do processo de escrita”.

Para a psicóloga e psicoterapeuta, não há nada de errado em escrever tudo isto num computador, mas acredita que a escrita à mão deve ser mantida e elenca várias vantagens: “Estimula a memória e criatividade”, “obriga a um maior exercício de atenção”, “potencia a compreensão” e “é por norma uma escrita mais fluida e mais emotiva”.

Apesar das vantagens, o certo é que a prática está a cair em desuso, sobretudo entre as novas gerações. Um estudo recente no Reino Unido mostra que um terço dos adolescentes do país nunca escreveu uma carta. Os pequenos momentos quotidianos de escrita à mão – atualizar a agenda, deixar um bilhete, fazer a lista de compras – estão a ser substituídos por aplicações de telemóvel. Se a tendência se mantiver, é possível que a escrita à mão venha a ser, daqui a não muito tempo, uma relíquia do passado.