Endometriose: dores, incompreensão e vergonha

Bárbara Vieira, doente com endometriose, viveu uma adolescência dolorosa. Às vezes, o simples ato de caminhar era um suplício (Foto: Gerardo Santos/Global Imagens)

O testemunho da cantora Anitta veio relembrar a opinião pública de que há uma doença que afeta cerca de 10% das mulheres que é ainda caracterizada por anos de sofrimento e um diagnóstico tardio. O que é, os tratamentos e que esperanças há?

Como a tantas outras raparigas, a menstruação apareceu aos 11 anos. Foi também aí que começaram as dores. Quando estava com o período, não tinha vontade de conviver com os colegas, o simples ato de caminhar era um suplício e as faltas às aulas iam-se acumulando. Os analgésicos passaram a ser, desde cedo, um ritual. E não havia dia em que saísse de casa sem um produto de higiene íntima na mochila – além de fortes, as hemorragias vinham, por vezes, sem aviso. A mãe, a avó, as tias e até o médico de família diziam que era normal. “Também eu tinha dores.” “Faz parte de ser mulher.” “Tens de aguentar.” A adolescência descrita como dolorosa e incompreendida é contada por Bárbara Vieira. Mas é também relatada, palavra por palavra, por Susana Monteiro. Um cenário comum a muitas mulheres.

As dores, a desvalorização e a falta de respostas têm um nome. Endometriose. Na maior parte dos casos o nome é dado quando a mulher carrega dez anos de queixas – o tempo médio de diagnóstico desde o início dos sintomas. “Um dos fatores para esta demora é desvalorização, tanto pela própria como pela família”, começa por explicar Filipa Osório. A ginecologista, especialista em endometriose, lembra que a incompreensão acontece “nas primeiras manifestações ao médico”.

Mas, afinal, o que é a endometriose? Todos os meses, as pessoas com útero passam por um processo de crescimento de células na cavidade uterina. Depois, as mesmas descamam. É o que se chama menstruação. A endometriose é uma doença crónica (ou seja, sem cura, mas para a qual existe tratamento eficaz ao nível dos sintomas), que se caracteriza pela migração destas células em crescimento para fora do útero. A dor é tal, descreve a médica, que evacuar, urinar, ter relações sexuais, caminhar ou apenas sentar podem ser ações difíceis.

Apesar de o aparecimento mais frequente ser junto ao útero e aos ovários, os nódulos podem surgir em qualquer parte do corpo. Para exemplificar a extensão do problema, Filipa Osório relata o caso de uma paciente cujo tecido do endométrio cresce na pleura (membrana fina que reveste os pulmões), causando repetidos pneumotórax [problema pulmonar que pode causar intensa dificuldade em respirar]. Pela variedade de locais em que ocorre e pelas dúvidas ainda existentes entre a comunidade médica sobre a causa, a endometriose é acompanhada por uma equipa multidisciplinar.

Além do crescimento de nódulos e das dores, a infertilidade é outro ponto comum que, segundo a ginecologista Filipa Osório, afeta cerca de um quarto das mulheres com endometriose.

Foi no momento em que decidiu ser mãe que Bárbara Vieira, de 43 anos, ouviu a palavra “endometriose” pela primeira vez. “Fui a um ginecologista aos 21 anos que disse que as dores e hemorragias eram normais. Aos 29 fui operada para retirar uns pólipos nos ovários e ninguém colocou a hipótese de ser outro problema. Foi só aos 30, num exame físico para o tratamento da infertilidade, que, por apalpação, um médico disse que eu tinha endometriose.” Disse, mas não explicou o que era. Bárbara chegou a casa com mais dúvidas do que respostas e decidiu procurar informações.

Encontrou um especialista que validou todas as queixas que vinha a fazer desde a adolescência. Sentiu-se emocionada, conta. Quando a doença foi corretamente diagnosticada, 19 anos depois do aparecimento dos primeiros sintomas, a condição já era grave. Bárbara tinha um tumor retovaginal e foi operada de urgência. Desde aí, seguiram-se mais duas operações, uma para retirar nódulos e a mais recente, no ano passado, para retirar o útero – pois, além de endometriose, Bárbara Vieira tem também uma variação chamada adenomiose, que é a criação de nódulos dentro do próprio útero, comprometendo a saúde do mesmo.

É possível controlar a dor

Hoje vive com a qualidade de vida que nunca teve, mas Bárbara Vieira não conseguiu concretizar o desejo de ser mãe. Partilhando o seu testemunho, ouvindo e aconselhando, luta para que cada vez menos mulheres tenham de passar pelo mesmo. A médica Filipa Osório realça que “um diagnóstico ao fim de um ou dois anos do início dos sintomas é crucial para controlar a doença numa fase inicial”, o que seria benéfico “em termos de desenvolvimento da gravidade, envolvimento de órgãos e controlo da fertilidade”. Depois de identificada a doença, os sintomas provocados pela endometriose podem ser tratados pela toma de pílulas específicas, por bloqueadores dos ovários, que geram uma espécie de menopausa precoce e, assim, cessam a menstruação; ou, em certos casos, terapias cirúrgicas, tanto para retirar nódulos, como o próprio útero.

Testemunhos como o de Bárbara e o de Susana são fundamentais. Recentemente, a endometriose surgiu como tema nos meios de comunicação e nas redes sociais depois de a cantora brasileira Anitta ter anunciado uma pausa nos concertos para ser operada. A artista recebeu o diagnóstico de endometriose após nove anos de dores incapacitantes. Susana Fonseca, criadora e presidente da MulherEndo – Associação Portuguesa de Apoio a Mulheres com Endometriose, acredita nas consequências positivas dos casos mediáticos. Ainda assim, aponta falhas na forma como o assunto é tratado. “O que estamos a assistir com a Anitta é diferente, porque a sociedade não compreende que muitas mulheres têm de usar ‘uma capa’ para conseguirem fazer o seu dia a dia e parecerem felizes.” A doença está a ser amplamente divulgada mas, continua a dirigente, “está também a ser desvalorizada”, em parte, devido à sexualização da endometriose. “Li em muitas notícias que é o problema que provoca dores nas relações sexuais”, lamenta Bárbara Vieira. “É muito mais do que isso.” Ao contrário do que é, por vezes, descrito e apesar de ser um problema com uma cadência cíclica, a endometriose não provoca dores apenas durante o período da menstruação.

A artista brasileira Anitta de 29 anos pôs a endometriose na agenda mundial após revelar que ia suspender concertos para se submeter a uma cirurgia (Foto: EPA/Nina Prommer)

O trabalho da MulherEndo começou a ser desenvolvido no dia em que Susana Fonseca soube que tinha a doença, após 14 anos de queixas, incompreensão e vergonha. Os objetivos da associação passam “pelo apoio direto a pacientes com esclarecimento de dúvidas, encaminhamento para especialistas e partilha de informação científica”. Através de um trabalho próximo com o poder político, procuram que haja “uma maior sensibilização sobre o tema” e, consequentemente, “respostas mais eficazes do Serviço Nacional de Saúde”.

Chegam ao contacto de Susana Fonseca, e de tantas outras voluntárias, todo o tipo de dúvidas: pacientes já diagnosticadas que precisam de aprender mais sobre a doença ou que não se sentem bem acompanhadas e “meninas e senhoras que têm todos os sintomas mas que ainda não receberam um diagnóstico”.

Susana Monteiro foi uma das mulheres que pediu ajuda. Nesse dia, sentiu-se de tal forma apoiada que se inscreveu como sócia da MulherEndo. Em adolescente, chegou a desejar ser “menino”. Já adulta, as dores eram tantas que pensou se valeria a pena continuar a sofrer. A história repete-se com tantas outras mulheres: anos de queixas desvalorizadas e um diagnóstico tardio. A resposta chegou por pesquisa própria. Certa noite, encolhida na casa de banho para aliviar as dores lancinantes, pesquisou na Internet: “Dor retal e vaginal depois da menstruação”. “Ou era cancro ou era endometriose”, lembra-se de ler no ecrã do telemóvel. Foi com essa palavra que encontrou a associação e, finalmente, aos 38 anos, obteve uma explicação para o sofrimento pelo que passava. “Ouvi e li tantos testemunhos de mulheres que descreviam tal e qual a minha vida, e nem sequer me conheciam.” Se não tivesse pesquisado acredita que, hoje, ainda viveria com dor.

Compreensão é um sentimento generalizado quando as doentes com endometriose encontram uma resposta. É também generalizada a mensagem que querem passar: “A dor não é normal”. “Se nos queixamos que dói o estômago ou o ouvido, o médico manda fazer um exame. Porque é que quando uma mulher entra no consultório com dor menstrual é considerado normal?”, pergunta Susana Monteiro. “Eu tive vergonha, mas agora quero ajudar a que outras não sintam. Falem. Peçam ajuda. Há solução.”

Petição Pública:“Estratégia Nacional de Combate à endometriose e adenomiose”

Foi entregue uma petição pública na Assembleia da República pela MulherEndo que aguarda discussão no plenário. Nela são propostos os seguintes pontos:

  • Criação e instituição do Dia Nacional da Endometriose e Adenomiose; – Instituição de estatuto de doença crónica para pacientes com diagnóstico de endometriose e/ou adenomiose;
  • Inclusão da endometriose e adenomiose na lista de doenças graves que permitem o alargamento da idade para recurso à procriação medicamente assistida;
  • Implementação da possibilidade de recolha de ovócitos em pacientes com diagnóstico de endometriose;
  • Criação da licença menstrual para pacientes com diagnóstico de endometriose e/ou adenomiose;
  • Inclusão dos progestagénios na lista de medicamentos que podem ser objeto de comparticipação;
  • Aprovação de recomendação ao Ministério da Saúde para a criação de uma comissão de trabalho.