Artistas reconhecem interesse acrescido por parte do público e não têm dúvidas de que a pandemia - e a ânsia de convívio e liberdade que ela despertou - tem culpas no cartório. Mas os muitos espetáculos em stand by, as poupanças prévias e as próprias técnicas de marketing também entram na equação. Ainda assim, quase ninguém acredita que esta avidez de sair e ir a eventos se eternize.
Há quase dez anos, dois médicos, um informático, um engenheiro e um professor de Música juntaram-se para atuar, por mera carolice, num sarau de ballet da irmã de um deles, no Teatro Académico de Gil Vicente, em Coimbra. Era para ter sido um episódio isolado, mas a experiência foi tão positiva que acabou a fazer-se coisa séria. No final desse mesmo ano, já com um sexto elemento, outro médico, ganhava forma o primeiro tema original da banda (cujo nome, Quatro e Meia, terá sido escolhido minutos antes da participação no tal sarau). Quatro anos mais tarde, nascia o primeiro álbum de originais, “Pontos nos is”. Tanto esse, como “O tempo vai esperar”, que surgiu três anos depois, atingiram o top de vendas nas respetivas semanas de lançamento. E o sucesso seguiu por aí fora. Encheram os coliseus, o Campo Pequeno, o Tivoli, a Super Bock Arena – Pavilhão Rosa Mota (ainda que, nessa altura, à custa da pandemia, só fosse permitida metade da lotação). Até que, em junho deste ano, ousaram atuar no Estádio Cidade de Coimbra e superaram as expectativas. Casa cheia, 19 mil pessoas a vê-los, uma vitória em toda a linha. “Acho que o facto de jogarmos em casa [a banda é natural de Coimbra] também ajudou”, atira Tiago Nogueira, um dos seis elementos do grupo.
Mas encontra outras possíveis causas para a enchente. A emergência sanitária serve de base a uma boa parte delas. “Notámos de facto um crescimento, entre aquilo que se verificava antes da pandemia e aquilo que verificamos agora. Não tenho uma explicação para isso, mas tenho uma opinião: o facto de durante muito tempo não ter havido concertos e de agora as pessoas terem muita vontade de aproveitar tudo, bem como a mudança radical e súbita que fez muita gente perguntar-se se vai durar muito tempo e alimentou a ideia de que as oportunidades são para se agarrar. Penso que são fatores que podem pesar nessa ânsia maior de sair.”
De resto, e a avaliar pela experiência dos Quatro e Meia, o confinamento fomentou também mudanças nas próprias bandas. “Num tempo normal, os espetáculos sucedem-se, não há grande tempo para pensar no que se pode melhorar. E este período de paragem deu isso aos artistas: tempo. Tempo para se prepararem para o regresso, para trabalharem a sua forma de comunicar, a forma como fazem os espetáculos, como chegam ao público. Tempo para criar também.” No caso da banda conimbricense, isso foi visível nas músicas novas, que surgiram muito mais rapidamente, mas também nas novas roupagens que deram a temas que já cantavam. “Acho que este crescendo só existiu de forma tão marcada porque houve tempo para o preparar”, sintetiza Tiago, admitindo que são os fãs os primeiros a referir a falta que os concertos lhes faziam. “E há uma ânsia maior por uma recordação física.”
Este entusiasmo acrescido é sentido também por quem anda na estrada há uma vida. “Notamos que realmente há mais gente, mais interesse, mais interatividade também. Notamos que as pessoas tinham mesmo necessidade de nós”, observa Rui Reininho, vocalista dos GNR. E se é certo que parte dos espetáculos que têm dado são de reposição de datas – sendo que, em muitos casos, os bilhetes até já estavam pré-comprados -, o músico encontra ainda uma outra explicação para o fenómeno, que tem tudo a ver com o momento que vivemos. “É um escape também. Nós fazemos zapping e ou vemos incêndios, ou ouvimos falar de Zaporíjia [central nuclear situada na Ucrânia], ou de guerras. Neste contexto, um concerto continua a ser um momento de rara beleza que dá às pessoas a possibilidade de se alhearem de tudo isso.”
As notícias dos últimos tempos, da música às romarias e festas populares, parecem confirmar a realidade testemunhada por Tiago Nogueira e Rui Reininho. Festivais a abarrotar, mais de 200 mil bilhetes para os Coldplay a voar no espaço de horas, dez mil ingressos em pré-venda para o concerto de Harry Styles a desaparecerem em 15 minutos, recordes de visitantes batidos na Expofacic, em Cantanhede, na Fatacil, em Lagoa (Algarve), na Viagem Medieval de Santa Maria da Feira, na romaria da Senhora d’Agonia, em Viana do Castelo, enchentes na Noite Branca, em Braga, nas Festas do Mar, em Cascais, no Festival da Sardinha de Portimão. Só para citar alguns exemplos.
Avidez de momentos. E de exclusividade
Multidões em boa parte justificadas pela sede da vida social que nos fugiu durante meses a fio. Assim entende Emídio Sousa, presidente da Câmara de Santa Maria da Feira que, juntamente com a empresa municipal Feira Viva, é responsável pela viagem medieval que anualmente decorre na cidade. E que este ano, após dois de interregno, registou cerca de 700 mil visitantes, “mais 20% do que em 2019”, estima o autarca. “Estivemos dois anos sem eventos, enclausurados. As pessoas sentiam muita necessidade de conviver, de ir para a rua, estavam ávidas de dar abraços, de estarem juntas, de beber um copo sem a restrição da máscara, sem o olhar desconfiado. Depois, acho que a pandemia também trouxe alguma poupança. Foram dois anos sem fazer férias, sem sair de casa. Isso deu alguma folga financeira que permitiu que as pessoas pudessem descomprimir e gastar mais um bocadinho.” Emídio Sousa aponta ainda a própria “nostalgia do evento”. “É a velha história de só darmos valor quando sentimos falta.” Manuel Vitorino, vereador da Cultura da Câmara de Viana do Castelo e presidente da Vianafestas, sentiu o mesmo na romaria de Nossa Senhora d’Agonia, que este ano terá contado com mais de 1,25 milhões de visitantes (a que se somaram 2,5 milhões de visualizações nas várias plataformas online). “Há uma razão fundamental que tem a ver com o sentido antropológico da festa, de ser um tempo de reencontro e harmonia. Por outro lado, uma vontade muito grande de voltar à normalidade, de celebrar a vida, de reencontrar amigos, também potenciada pelo regresso de muitos emigrantes.”
Cathia Chumbo, psicóloga clínica, concorda que há uma “necessidade de compensarmos o tempo perdido, os contactos restringidos e principalmente a sensação ao nível da privação de liberdade”, situação que lhe parece “transversal à população em geral”. “Penso que a população foi confrontada com uma série de limites e privações pelos quais nunca imaginou passar, o que nos faz pensar se esta necessidade de libertação, exploração e avidez de socialização está relacionada com um mecanismo de compensação pela experiência a que fomos sujeitos ou se por outro lado se deve a algum medo perante o futuro.” A teoria é corroborada pelos relatos que lhe vão chegando ao consultório: “Grande parte dos pacientes ainda refere a pandemia como base para a adoção de determinados hábitos e alteração de rotinas. Até aqueles que não tinham como hábito viajar, este ano assumiram essa necessidade. Não só pelo confinamento a que fomos sujeitos, mas muitas vezes pelo medo de ‘morrer sem ter vivido’. Muitos tiveram contacto com esta realidade de perto, o que os fez reconsiderar as suas prioridades, do ponto de vista do quotidiano, horários de trabalho, tempo de lazer e família.” A especialista lembra também que o ser humano possui uma necessidade inata de “controlar o meio externo e influenciá-lo”. “E o facto de os indivíduos terem sido privados deste controlo sobre o meio leva-os agora a quererem assumi-lo desenfreadamente”, sublinha, preenchendo os calendários com saídas. “As emoções estão ao rubro e denota-se alguma dificuldade em parar, pelo que se oscila entre picos de adrenalina [festas e convívios] e momentos em que a paragem é descrita como um ‘tédio absoluto’ por muitos.”
A constatação parece explicar esta aparente febre por fazer tudo e estar em todo o lado, com reflexo óbvio nos eventos de cariz social e cultural. Mas a realidade é ampla e altamente heterogénea. E é preciso olhar com prudência para este pretenso crescimento, pôr as coisas em perspetiva, dissecar fenómenos de cariz distinto, deixar que o tempo ajude a fazer uma leitura mais cuidada destes tempos de aparente fulgor exacerbado. De volta à música, Álvaro Covões, diretor da promotora Everything is New, responsável pela organização do festival NOS Alive e pela vinda de Coldplay e Harry Styles a Portugal, resiste, por isso, a falar num crescimento exponencial. “É verdade que sinto uma vontade maior de ver espetáculos, mas há aqui várias questões a ter em conta. Desde logo, o facto de muitos destes espetáculos serem espetáculos adiados, para os quais os bilhetes já estavam comprados. Depois, claro, a vontade intrínseca de as pessoas estarem juntas, porque o ser humano é um animal de relacionamento e não de isolamento. E ainda o facto de, além do que foi adiado, terem aparecido mais espetáculos e mais artistas. Mas só vamos ter a certeza disto tudo quando saírem as estatísticas da Cultura [do INE] relativas a este ano.”
Seja qual for o resultado, há uma nota que deixa de antemão. “Quando olhamos para os números dos últimos anos, vemos que se vendem poucos bilhetes para espetáculos em Portugal. Em 2019, por exemplo, foram seis milhões. Portugal tem dos hábitos culturais mais baixos da Europa. Ora, como os números são maus, é fácil crescer.” Quanto ao êxito de eventos como os concertos dos Coldplay e de Harry Styles, ou mesmo dos festivais, entende que não são sinal de nenhuma mudança significativa. “Em relação aos festivais é preciso não embandeirar em arco, porque a verdade é que nunca estivemos tanto tempo a vender um festival. Quanto a esses dois concertos, é verdade que vendemos 260 mil bilhetes no espaço de uma semana, mas é preciso ver que falamos de dois fenómenos. Os Coldplay, por exemplo, são um um fenómeno global, de dimensão estratosférica, que acontece de 20 em 20 anos. Estão a fazer uma coisa inédita que é bater recordes em todo o lado. Claro que quando a oferta passa por nomes assim, os números vão aumentar.”
Também Nuno Cardoso, diretor artístico do Teatro Nacional de São João, no Porto, revela “reservas em tirar conclusões diretamente ligadas ao fim das restrições”. “A leitura não pode ser feita a quente”, avisa. No caso do teatro que dirige, nota que a partir de maio, tiveram sempre “casa cheia”, com o mês de junho, em particular, a ser “extraordinário”. “Mas a verdade é que de cada vez que reabrimos houve uma adesão muito grande. Penso que a oferta cultural em termos de pandemia foi lida pelo público como um utensílio para viver melhor. Houve uma certa adesão catártica a estes projetos.”
Mudança estrutural terá de esperar
Na leitura dos recentes acontecimentos, entra ainda uma nuance fundamental, que se prende com as técnicas de marketing adotadas pelos promotores. Beatriz Casais, docente de Marketing e Estratégia na Escola de Economia e Gestão da Universidade do Minho, chama a atenção para isso mesmo. “A noção de que há uma grande ânsia por participar em eventos faz com que os promotores de eventos apostem em situações de exclusividade, que por sua vez geram um aumento de preços. Se falamos de algo que não parece muito acessível, há um comportamento de êxtase associado ao consumo, à ideia de conseguir um lugar mais exclusivo. Isso explica esta procura por bilhetes de forma frenética.” A especialista aponta o caso concreto dos Coldplay. “É um bom exemplo. A noção de que só existiriam X lugares disponíveis [inicialmente foi apenas anunciada uma data para o concerto, mas à medida que os ingressos iam esgotando acabaram por ser anunciadas mais três] criou uma corrida maior às bilheteiras.”
Pedro Teixeira da Mota e Carlos Coutinho Vilhena, protagonistas do espetáculo de stand-up comedy “Conversas de Miguel”, que já este ano esgotou quatro vezes o Campo Pequeno e três a Super Bock Arena, acrescentam ainda um outro fator para este aparente interesse redobrado por determinados eventos. “No nosso caso, não conseguimos perceber se os nossos números de vendas aumentaram por causa desse efeito de as pessoas quererem muito sair ou se foi simplesmente porque só nesta fase é que começámos a dar saltos maiores, a atuar em salas que levam mais gente. Mas algo que me parece importante é que hoje em dia, através das redes sociais, os conteúdos circulam muito mais rápido e chegam a mais pessoas. Num dos nossos espetáculos, eu caí da cadeira e num instante o vídeo já estava a circular no TikTok. Isso ajudou a chamar mais gente”, entende Carlos. Pedro concorda. De volta aos Coldplay: “Uns dias antes de os bilhetes serem postos à venda, começaram a circular uma série de vídeos dos espetáculos deles e acho que isso foi aquele fator extra para levar as pessoas a querem ir. É o chamado FOMO [Fear of Missing Out, ou o medo de ficar de fora]. E neste cenário o TikTok é um fator maior.”
Note-se que esta aparente disponibilidade reforçada para investir em espetáculos parece, pelo menos num primeiro momento, resistir à inflação galopante e à expectativa de uma recessão mais do que anunciada. Normal? Helena Santos, professora em Faculdade de Economia da Universidade do Porto e especialista em Sociologia e Economia da Cultura, olha para esta pretensa despreocupação como “um ar dos tempos”. “Com isto da pandemia, das alterações climáticas, da guerra, as pessoas, sobretudo das gerações mais jovens, tendem a não estar para se privar de determinada possibilidade de fazerem coisas ou de realizarem projetos porque não têm garantias de futuro. E isso pode explicar uma diminuta preocupação em poupar para os tempos que aí vêm.” Quanto à avidez por dados eventos que tem marcado os últimos tempos, confessa que não vê aí “nada de extraordinário”. “Não podemos pensar que estas enchentes se vão traduzir em públicos regulares, em transformação de gostos, etc. Parece-me claramente uma fase.”
Paula Abreu, professora de Sociologia na Universidade de Coimbra, também especialista em Sociologia da Cultura, partilha do pessimismo da colega. “Tenho muitas dúvidas que isso signifique a longo prazo uma alteração do perfil da participação cultural. As pessoas estão mais disponíveis, mas durante quanto tempo? Ainda por cima, a crise social e económica vai-se acentuar e as pessoas terão de fazer escolhas. Penso que esta fase foi muito importante para a indústria cultural e para as instituições, mas não acho que isto signifique que há uma mudança de fundo.”