Empresas que reforçam salários para os trabalhadores enfrentarem a crise

Pagam suplementos extraordinários, oferecem vouchers para bens essenciais, sobem o salário mínimo de entrada, antecipam o subsídio de Natal ou aumentam o de alimentação. Algumas empresas em Portugal, sobretudo as gigantes, estão a ligar o motor da responsabilidade social e a dar apoios aos trabalhadores para fazer face ao aumento do custo de vida. E preveem um futuro com um papel cada vez mais ativo.

No GPS dita-se “Gouvinhas”, freguesia da vila de Sabrosa, a trepar o rio Douro. E nas contas somam-se 140 hectares de vinha, de onde saem vinhos do Douro (também produzem azeite e em 2023 vem o vinho do Porto). Aqui, bem no interior do país, em Trás-os-Montes, talvez não fosse expectável encontrar uma empresa, ainda a crescer – afinal, só foi criada em 2018 -, a seguir o comboio de gigantes pelo Mundo com o anúncio de apoios extraordinários aos trabalhadores para fazer face à inflação. Essa parangona que se tem feito sentir pesada na carteira. Mas a Menin Wine Company quis contrariar o jogo das probabilidades e entrar no campeonato dos adultos.

Pedro Vitorino Melo, diretor de marketing da empresa, precisa de parar uns segundos para pensar. Contas feitas, a medida de apoio que lançaram custou “à volta de 11 mil euros” no total. A Menin Wine Company decidiu dar um suplemento financeiro extraordinário aos 32 trabalhadores de 250 euros, que foi pago este mês. “Tem muito a ver com a nossa responsabilidade social. Valorizamos muito os recursos humanos da região, até porque estamos a falar do interior, e mesmo na contratação privilegiamos pessoas daqui para combater o êxodo rural”, explica, para logo dizer que tudo se resume a valorizar trabalhadores do Interior. “Esse comportamento estava a ser adotado por grandes empresas lá fora e suscitou a nossa curiosidade. A inflação está nos 10% em Portugal e pensámos ‘porque não adotarmos também este tipo de postura?’. Esses 250 euros certamente iriam ajudar, e muito, todos os trabalhadores do grupo e seríamos pioneiros no interior.”

Na verdade, pode não ser surpreendente. A empresa, criada por dois sócios brasileiros – Rubens Menin e Cristiano Gomes – há quatro anos para produzir vinhos do Douro, e que fez um investimento de 30 milhões de euros até ao momento, já paga acima da média na região e no setor (1180 euros de salário médio, contando com os trabalhadores rurais). Aliás, este ano ficou no top 20 das empresas nacionais mais felizes, segundo o estudo Happinness Works 2022. “Um feito inédito para uma empresa de Trás-os-Montes e logo na primeira candidatura”, sublinha Pedro. A responsabilidade social foi, desde o princípio, uma aposta da Menin Wine Company, ora através de um programa de incentivo ao desenvolvimento local, ora no financiamento em cerca de 50% da formação dos colaboradores que queiram fazer pós-graduações ou mestrados em áreas de enologia, financeira ou marketing. E agora com a medida anti-inflação.

O anúncio a todos os trabalhadores foi dado numa reunião geral pelos próprios sócios. “Reagiram todos com muito sinal de agradecimento, porque efetivamente este valor vai ajudar a fazer face ao aumento dos combustíveis, dos bens alimentares e até a aumentar o poder de compra agora no Natal.” O grupo – que começou por adquirir a Quinta da Costa do Sol e entretanto comprou também a Quinta do Caleiro, contígua à anterior – já conta duas marcas: a Menin Douro Estates e a H.O. Tem duas adegas, um centro de distribuição e operações no Regia Douro Park, em Vila Real, e exporta sobretudo para o Brasil. Quer continuar a expandir-se no Douro, com uma visão muito clara: “Fixar jovens no interior”.

Salários em níveis de 2019

E fixar trabalhadores é mesmo um dos argumentos de boa parte das empresas que apostaram em pacotes de medidas anti-inflação para apoiar os empregados. Tudo para limitar o impacto do aumento galopante dos preços que se tem traduzido numa queda significativa do poder de compra. A inflação já fez recuar o valor real do salário médio dos portugueses para níveis de 2019, segundo um estudo sobre os padrões de evolução, inflação e desigualdade nos salários do Laboratório Colaborativo para o Trabalho, Emprego e Proteção Social. “Os salários reais começaram rapidamente a regredir com o surto inflacionário vivido a partir da primeira metade de 2021”, refere o estudo.

Em novembro, a inflação em Portugal desceu ligeiramente para 9,9%. Um mês antes havia ultrapassado os 10%, o valor mais elevado dos últimos 30 anos, muito graças à subida dos preços dos produtos alimentares e energéticos. E, num carrossel que não se prevê abrandar, foram sobretudo os grandes grupos a tomar a dianteira e a anunciar medidas para ajudar os colaboradores no meio da tempestade. Na banca, no setor automóvel, no retalho. Pelo Mundo e em Portugal também.

Por cá, a Jerónimo Martins, dona do Pingo Doce, decidiu atribuir um apoio extraordinário de até 350 euros – para part-times, foi metade desse valor – a cerca de 25 mil colaboradores de todas as empresas do grupo em Portugal. Foi pago no início do mês. Fonte oficial justifica a medida com “os tempos difíceis, os efeitos de uma conjuntura inflacionista e o aumento do custo de vida”. Vamos a contas. A iniciativa custou mais de oito milhões de euros. E surge no mesmo ano em que o grupo avançou com aumentos dos salários de entrada nas suas empresas (Pingo Doce, Recheio, JMA, Jeronymo e Hussel) entre 7% e 25% acima dos ordenados de 2021. Um investimento de 22 milhões de euros que abrangeu cerca de 26 mil colaboradores.

A Jerónimo Martins, dona do Pingo Doce, atribuiu um apoio extraordinário de até 350 euros a cerca de 25 mil colaboradores. Uma medida anti-inflação que custou mais de oito milhões de euros ao grupo

“É também importante salientar que, na maioria das nossas companhias em Portugal, bem como nas outras duas geografias onde operamos, as políticas retributivas contemplam aumentos salariais logo após um ano de antiguidade, como forma de promover a retenção”, realça fonte oficial do grupo liderado por Pedro Soares dos Santos. E há ainda prémios atribuídos aos colaboradores das operações que “podem acrescentar mais de 100% da remuneração base mensal nos níveis de entrada”. Por exemplo, em abril deste ano, foi atribuído a 21 mil colaboradores das operações (na sua maioria, lojas e centros de distribuição) um valor individual de 550 euros.

O facto é que a responsabilidade social tem merecido forte investimento pela Jerónimo Martins, sobretudo em três eixos: saúde, educação e bem-estar familiar. Só no ano passado a aposta em programas nesta área representou à volta de cinco milhões de euros. Desde os campos de férias para os filhos dos funcionários ao programa SOS Dentista com apoios na área da saúde oral ou o Fundo de Emergência Social para responder a situações de vulnerabilidade e emergência familiar dos trabalhadores (apoio financeiro, jurídico, alimentação).

No caso da Jerónimo Martins, o apoio extraordinário é uma soma aos programas que já antes estavam em vigor, num tempo em que a porta de saída da subida no custo de vida parece cada vez mais uma miragem. Uma ajuda importante. Basta ver que já em abril, ainda a inflação não se agigantava como hoje, um estudo de um grupo de economistas da Nova School of Business and Economics agrupou três categorias de consumo (produtos alimentares, habitação e transportes) e chegou à conclusão de que seria necessário transferir entre 220 e 545 euros por ano para cada agregado dos 20% mais pobres em Portugal, de forma a colmatar o aumento dos preços nestes bens.

Neste campo, o Estado tem um papel crucial. E depois dos 125 euros por pessoa pagos em outubro, o primeiro-ministro António Costa anunciou mais um apoio extraordinário de 240 euros para um milhão de famílias vulneráveis.

Dos vouchers ao subsídio de alimentação

Em 2020, 11% da população empregada estava em risco de pobreza, o valor mais alto da última década. Mais de 2,3 milhões de pessoas estava em risco de pobreza ou exclusão social. Os números de 2022 vão, provavelmente, agravar o cenário. Talvez por isso as empresas estejam a dar passos acelerados no caminho da responsabilidade social. E são cada vez mais, num contágio que promete não parar. Ainda nesta semana, a Leroy Merlin anunciava um voucher anti-inflação de 125 euros aos 5750 trabalhadores (um cartão pré-pago que pode ser utilizado na rede de lojas Auchan ou My Auchan). E a Modelo Continente dava conta de um apoio extraordinário de até 500 euros a abranger 36 mil funcionários num ano “desafiante para os portugueses”.

A IKEA em Portugal desenhou uma série de medidas para apoiar os trabalhadores, que custaram 5,9 milhões de euros. Desde um voucher de 500 euros ao aumento do salário mínimo na empresa e do subsídio de alimentação

Mas os pacotes de medidas que as organizações têm anunciado vão além de pagamentos extraordinários. Há criatividade até na hora de apoiar. Desde vouchers para gastar em bens essenciais ao aumento do subsídio de alimentação. Aqui, a IKEA é o exemplo perfeito. Curiosamente, o valor equivalente a salário e meio que a marca sueca azul e amarela de mobiliário em Portugal pagou a todos os trabalhadores em dezembro não faz parte do pacote anti-inflação. “É um bónus que damos numa base anual e que assenta nos resultados”, revela Cláudio Valente, country people and culture manager da marca. Resulta do crescimento das vendas em 19,5% para 552 milhões de euros entre 2021 e 2022. “É claro que tem um contributo fundamental na situação que estamos a viver. Mas a atribuição deste valor não teve a ver com a nossa intenção de ajudar na inflação.” Nesse campo, a IKEA desenhou uma série de outras medidas pontuais e algumas permanentes, “aí, sim, com o intuito de suportar os colaboradores nesta fase”.

Começou por atribuir, em agosto, no arranque do ano escolar, que muito pesa às famílias, um voucher de 500 euros para utilizar em produtos da marca, “incluindo no food market, em produtos de primeira necessidade”. Logo depois, em outubro, aumentava o subsídio de alimentação, de 4,55 para seis euros. “Uma medida permanente. E fizemo-lo com retroativos a março, o que deu mais ou menos 300 euros adicionais a todos os colaboradores. Porque foi em março que sentimos que a inflação começou a crescer.”

A empresa sueca ainda reforçou o programa social interno Contigo, ao qual todos os funcionários que estejam a passar dificuldades podem recorrer, conseguindo ajuda a fundo perdido. “Pessoas que, num determinado momento, não consigam pagar a renda, eletricidade, água. É um ‘one shot payment’.” A nível global, a IKEA reforçou este fundo social com cerca de dez milhões de euros, no caso de Portugal, onde conta 2800 trabalhadores, o reforço foi superior a 100 mil euros. Uma medida estratégica. “A partir do momento em que se vê uma inflação nos 10%, e a começar a tocar nos créditos à habitação, sabíamos que isso ia complicar a vida a muitas pessoas. Queríamos estar preparados para a hipótese de haver mais pedidos de ajuda.”

A par disso, a IKEA aumentou o salário mínimo de entrada na empresa de 750 para mil euros, que entra em vigor a 1 de janeiro (assim como o aumento dos dias de férias de 22 para 24 dias). “A partir desse dia, ninguém a trabalhar a tempo inteiro na IKEA pode ganhar menos do que mil euros brutos.” Não é só, ainda fez duplicar o desconto (de 15% para 30%) que os trabalhadores têm em compras IKEA numa seleção de produtos essenciais.

A questão é óbvia: as empresas têm uma obrigação social perante o cenário atual? “Em boa verdade que sim. O futuro das empresas é que possam vir a ter um papel mais ativo socialmente. Acredito que nos próximos dois anos não pode haver empresas que não tenham políticas de responsabilidade social”, defende Cláudio Valente. Mesmo sabendo que umas têm mais poderio financeiro do que outras. “Umas podem ajudar com um euro e outras com cem. Entre ajudar pouco e não fazer nada há uma grande diferença. É uma questão de investimento nas pessoas.”

Na realidade, a própria IKEA, no arranque do ano, não tinha preparado “este budget” – 5,9 milhões de euros em Portugal só em medidas criadas especificamente para apoiar na inflação -, mas viu-se obrigada a fazer “opções de gestão” e a “colocar as prioridades no lugar certo”. “Se as pessoas que aqui trabalham não tiverem um nível de vida decente vamos contra os nossos valores.” E as reações traduzem bem o impacto. “Tivemos imensas pessoas a expressar a sua gratidão. Umas vieram falar connosco diretamente, outras enviaram um email. Fez a diferença, não tenho dúvidas.”

Antecipar o Natal e estender o crédito

O Santander, maior banco privado em Portugal, chama-lhe “salário emocional”. A todos os benefícios que dá aos trabalhadores (e que reforçou agora) para além do ordenado propriamente dito. Foi um dos primeiros bancos e umas das primeiras grandes empresas a avançar com medidas anti-inflação. A mais emblemática: o pagamento extraordinário e suplementar de 750 euros para funcionários com um vencimento até 30 mil euros anuais. “A preocupação foi apoiar financeiramente os colaboradores que tinham rendimentos mais baixos, sem exceção”, diz Sara Fonseca, responsável de gestão de pessoas do banco.

O Santander reforçou benefícios que já dava aos trabalhadores e somou-lhes outros apoios. Nomeadamente o pagamento extraordinário de 750 euros para os funcionários com rendimentos mais baixos

Para uma empresa familiarmente responsável – tem certificação -, que aposta em medidas (são mais de 80) como o coaching parental para jovens pais a trabalhar no banco ou numa “Linha Psicólogo” em ambiente covid, criar apoios num momento de inflação parecia caminho óbvio. “O Estado tem a sua função. Mas para as empresas isto também é uma questão de sustentabilidade. As empresas vivem, hoje, do talento e do bem-estar dos seus colaboradores. Não podemos querer empresas produtivas e eficientes, com nível de excelência no atendimento ao cliente, sem que depois haja atenção para com as pessoas que fazem parte do dia a dia da empresa.”

A quebra de rendimento entrou na lógica das preocupações para aliviar a pressão nos mais de quatro mil trabalhadores. E além do apoio extraordinário, o Santander aumentou o limite de crédito disponível para funcionários para 200 mil euros em novas operações de crédito. Sara pormenoriza: “Os colaboradores bancários têm acesso a um limite de crédito com condições especiais, diferentes das condições de mercado. Esse limite estava nos 183 mil euros e o banco decidiu estender o valor até aos 200 mil.” Também alargou a mais empregados o acesso a medidas que já existiam, como a comparticipação do passe social em 50% ou o apoio a propinas no valor de 310 euros por ano por filho ou enteado. E, prevendo que o crescimento da inflação “não vá desaparecer em meia dúzia de meses”, já foi anunciado que em 2023 há a possibilidade de os colaboradores anteciparem até 50% do subsídio de Natal para, eventualmente, “dar resposta a uma despesa fora do normal”.

Sara Fonseca alerta que “há várias formas de ajudar”. “Há empresas pequenas a tomar medidas também, nomeadamente permitindo o teletrabalho quando isso é possível e evitando a deslocação do trabalhador, que é uma forma de ajudar sem aumentar os custos para a empresa.” E não tem dúvidas de que o Santander inspirou empresas em Portugal, nomeadamente no setor da banca, com os apoios anti-inflação. “Da mesma forma que outras nos inspiram a nós a melhorar.” Agora, é 2023 que está na mira. “Vamos continuar atentos às necessidades. Obviamente que poderemos ter que voltar a equacionar novas medidas.”