Jorge Manuel Lopes

Ele só quer viver com os mortos


“A ilha dos amores” foi revelado em 1982 em Cannes, chegando ao circuito comercial português nove anos depois. Entrar neste filme de Paulo Rocha, agora lançado em DVD pela Midas e pela Cinemateca Portuguesa – Museu do Cinema numa imaculada versão digitalizada, deverá exigir adaptação do espectador a um outro idioma cinematográfico, com olhar e respiração narrativa próprias. Uma adaptação plenamente compensada.

Este filme fixa o fascínio de Paulo Rocha pelo percurso e obra de Wenceslau de Moraes (1854-1929), escritor, diplomata e militar português que se fundiu na realidade do extremo oriente, vivendo boa parte dos seus dias entre Macau e Japão. (A nova edição em DVD junta na mesma caixa “A ilha dos amores” e o trabalho complementar “A ilha de Moraes”, de 1984.) Estruturado em nove partes – aludindo a “Os nove cantos” do poeta chinês Chu Yuan -, navega-se entre o artificialismo e o naturalismo extremos dos cenários, com um elenco que amiúde parece flutuar fora do tempo. O elenco é luso e japonês em partes similares, com um Luís Miguel Cintra magistral e subtil na pele de Wenceslau de Moraes; pelo seu olhar, voz e movimento passa um galopante fascínio pelos mais ínfimos detalhes da existência, primeiro em Kobe, depois em Tokushima, onde faleceria. Com realce para duas devastadoras paixões e não menos devastadoras perdas: primeiro Ó-Yoné (Yoshiro Mita), depois Ko-Haru (Atsuko Murakamo).

O enredo, servido por uma fotografia esplendorosa (de Acácio de Almeida, Elso Roque e Kozo Okazaki), amplamente beneficiada pelo restauro, vai deslizando para um encadear de tragédias entregues em surdina. Com a chegada da I Guerra Mundial, todos os brancos em território japonês são tidos como “alemães” e hostilizados. A criança que Ko-Haru dá à luz morre dois dias depois do parto. Ko-Haru é apanhada pela tuberculose, definha e não tarda a ter idêntico destino. A esta sucessão, o filme reage com uma longa passagem da rotina diária enviuvada de Wenceslau de Moraes, as palavras largamente ausentes – ele só quer viver com os mortos, os seus mortos.