É possível analisar drogas antes de as consumir

Quem compra substâncias psicoativas na rua ou na Internet não sabe o que está a comprar. Desconhece o processo de fabricação, as doses, as indicações de toma, as potenciais interações e efeitos secundários. O serviço de drug checking e aconselhamento da Kosmicare - único no país - intervém nessa necessidade, minimizando os potenciais danos e riscos do consumo.

De camisola e calças pretas, casaco amarelo, risco azul nos olhos, sorriso franco e aberto, Joana Canêdo, de 29 anos, segue pela rua Cesário Verde, na Penha de França, em Lisboa, a passo descontraído. Dentro da mala, além do telemóvel, da carteira e dos cigarros, leva uma pastilha de MDMA (a abreviatura de 3,4-metilenodioximetanfetamina, mais conhecida como ecstasy, que produz habitualmente uma sensação de euforia e empatia) e alguns miligramas de ketamina (um anestésico dissociativo que, em doses baixas, induz viagens psicadélicas).

Detém-se no número 17B e entra para deixar amostras das substâncias, que vão ser sujeitas a um drug checking – ou análise química. Daí a dois ou três dias, um dos técnicos de redução de riscos da associação Kosmicare vai ligar-lhe para fornecer uma série de informações, por exemplo, a dosagem da pastilha de MDMA e a real composição daquilo que comprou como ketamina.

Criada em 2016, a Kosmicare tem como missão promover atividades de intervenção, investigação e advocacy que favoreçam a adoção de padrões de consumo de substâncias mais seguros e informados. O serviço de drug checking, financiado pelo Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências (SICAD) e pela Câmara Municipal de Lisboa, está em funcionamento todas as terças e quartas-feiras, entre as 16 e as 21 horas, desde outubro de 2019, sendo anónimo e gratuito.

Em breve, vão começar a testar canábis. Por agora, a organização não-governamental tem capacidade técnica para fazer uma análise de substâncias sintéticas, com técnicas simples, mas que já dão bastante informação. “Fazemos, por exemplo, a cromatografia em camada fina que nos permite separar todos os componentes presentes na amostra e, posteriormente, fazemos uma tentativa de identificar cada um desses componentes”, explica Daniel Martins, químico e coordenador do serviço de drug checking da Kosmicare. No caso de não conseguirem identificar um ou mais componentes da amostra, enviam-na para o Laboratório de Ciências Forenses e Psicológicas Egas Moniz, com quem têm um protocolo de cooperação desde 2020, e que dispõe de técnicas mais sensíveis para identificar os componentes que oferecem dúvidas.

Cromatografia em camada fina é uma técnica que separa os componentes químicos presentes na amostra

Das 240 amostras que receberam entre novembro 2020 e novembro de 2021, 45% foram submetidas como sendo MDMA, 18% como cocaína, 10% como LSD, 10% como ketamina, 4% como anfetamina, 4% como catinonas e 3% como 2C-B. Os restantes 6% (“outros”) correspondem a amostras de DMT, mescalina, heroína, diversas triptaminas e outras amostras entregues como substância desconhecida.

Olhando para alguns resultados é possível começar a compreender a a importância do serviço: a dose média de MDMA encontrada nas pastilhas analisadas foi de 182 mg – muito acima dos 100 miligramas habituais -; uma das amostras de LSD continha apenas uma substância da família dos NBOMes (drogas alucinógenias derivada das feniletilaminas) relacionada com casos graves de intoxicação e metade das amostras submetidas como anfetamina estavam adulteradas com outra substância. Os consumidores de substâncias psicoativas frequentemente compram gato por lebre, e isso pode ter consequências muito graves.

Mais do que analisar, informar

“Sou uma rapariga branca, tive acesso a estudos superiores, tenho o meu trabalho, as minhas ideias, os meus objetivos. E uso drogas. Estou aqui, a fazer disto um lugar de fala, na esperança que, um dia, outras pessoas que não tiveram o mesmo privilégio possam não ser discriminadas porque usam substâncias”, defende Joana Canêdo, licenciada em Ciência Política e Relações Internacionais, mestrado em Economia e Políticas Públicas e que trabalha no GAT – Grupo de Ativistas em Tratamento, como mediadora comunitária e ativista. O seu maior privilégio, refere, “vem da capacidade de decidir quando, onde, como e com quem” usa substâncias psicoativas. “Menos é mais e saber dizer ‘não’ é talvez a decisão mais importante no exercício da liberdade.”

Joana usa substâncias psicoativas quando encontra a ocasião e o contexto amigável para isso, “normalmente como frequentadora de contextos noctívagos ou festivais.” Recorre ao serviço de drug checking da Kosmicare, sobretudo quando experimenta uma substância nova ou muda o local de compra. “Como os mercados não são regulados, nunca se sabe exatamente o que se está a comprar. Posso comprar no mesmo dia, à mesma pessoa, duas pastilhas de ecstasy aparentemente iguais, mas uma tem 100 miligramas de MDMA e outra 250. Se vier analisar, posso ajustar o meu comportamento e diminuir a dose, para não ter um episódio de intoxicação.”

Mas, mais do que a análise das drogas, o espaço permite conversas honestas, num ambiente sem juízos de valor ou moralismos, sintetiza a mediadora comunitária. “As pessoas que consomem drogas são marginalizadas e estigmatizadas, não há outros lugares onde ir procurar informação.” Uma das pessoas que tem estas conversas francas com os utilizadores é Pedro Monteiro, técnico de redução de riscos da Kosmicare. Quando recebe alguém, não se limita a recolher amostras, faz da ocasião uma altura de diálogo, recolha de informação e aconselhamento. “Acaba por ser um momento em que as pessoas se sentem à vontade e, muitas vezes pela primeira vez, fazem uma reflexão sobre os seus consumos. Podem tirar dúvidas e receber informação muito concreta sobre como diminuir os riscos considerando a substância, a via de consumo e as doses. E não ter esta oportunidade coloca-as em risco.” Os dados do serviço mostram que 80% das pessoas que vão ao drop-in da Kosmicare nunca tinham ido a outro serviço na área das drogas, sendo que muitas são utilizadoras há muito tempo.

73% dos utilizadores do serviço de drug checking da Kosmicare são homens brancos cisgénero, a maioria entre os 25 e os 35 anos. Mais de 75% têm o ensino superior e trabalham ou estudam

“Temos de aceitar esta premissa: as pessoas sempre consumiram substâncias psicoativas e vão continuar a consumir”, adianta Helena Valente, psicóloga e uma das fundadoras da Kosmicare. “Portanto, é necessário ter uma postura que é humanista, porque respeita as motivações das pessoas, mas que também é pragmática, porque vai diminuir os riscos tanto a nível de saúde individual como de saúde pública: mais informação diminui as overdoses, os consumos problemáticos e os custos de tratamento para o serviço nacional de saúde”, resume.

Do outro lado do espelho

Em 2001, com a aprovação da Lei n.º 30/2000, a aquisição, a posse e o consumo de drogas foram descriminalizados. Apesar de não ter sido despenalizado, consumir substâncias psicoativas ilícitas continua a ser punível por lei, mas deixou de ser alvo de processo-crime, passando a constituir uma contraordenação social. Foi pela mesma altura, também em 2001, que o drug checking passou a estar previsto na legislação, com o Decreto-Lei n.º 183/2001.

“Em alguns países esta ferramenta é considerada uma contemporização, uma cedência ao ato de consumir. Nós apostámos nela sem preconceito, no âmbito da redução de riscos e minimização de danos, porque sempre considerámos que conduz à motivação dos utilizadores para o tratamento – quando é caso disso – ou a ter práticas de consumo que envolvem menos riscos e, por isso, têm menos consequências negativas”, salienta João Goulão, médico e diretor-geral do SICAD, que foi um dos membros da comissão que propôs a Estratégia Nacional de Luta Contra a Droga, aprovada em 1999.

O responsável considera que o “ideal seria que o serviço estivesse disponível em todo o país”, e não restrito a Lisboa, mas não há viabilidade para a instalação da resposta, em cada capital de distrito. Uma alternativa seria o envio de amostras por via postal ou transportadora, mas isso envolve obstáculos legais. “Esbarramos com algumas dificuldades, como seja fazer circular amostras destas substâncias, que são ilícitas, por via postal ou outra. Uma das preocupações que temos em cima da mesa é pensar em propostas legislativas que permitam a circulação com este fim, para ser possível alargar este recurso ao resto do país.”

Até porque o drug checking, prossegue o responsável do SICAD, “além de ser importante do ponto de vista individual, para que quem pretende consumir possa saber, de facto, quais são as substâncias envolvidas e os potenciais riscos, também é importante como fonte de informação para as entidades que trabalham nesta área”.

O serviço acaba por ser também uma fonte de informação para os organismos oficiais. O Observatório Europeu da Droga e Toxicodependência (OEDT) – agência de monitorização da Comissão Europeia, cujo grande objetivo é fornecer melhor informação aos países, para que possam implementar políticas públicas e intervenções baseadas na evidência – é uma das organizações que usa estes dados. “Percebemos os padrões e as novas tendências de consumo através de inquéritos à população geral, da análise de águas residuais, mas também dos dados recolhidos através dos serviços de drug checking”, indica João Matias, epidemiologista, que trabalha na unidade de saúde pública do OEDT, onde é responsável precisamente pelo indicador de consumos de drogas.

Para o Observatório, pormenoriza o epidemiologista, os serviços de drug checking dos vários países europeus têm três componentes fundamentais: “Perceber que substâncias estão presentes no mercado e a sua composição, nomeadamente a pureza e as adulterações”; “a componente de intervenção associada ao serviço, que informa as pessoas sobre os riscos e pode ser um primeiro passo para o tratamento de quem tem consumos problemáticos” e a utilidade para o Sistema de Alerta Rápido Europeu, que pretende identificar novas drogas no mercado, avaliar os seus riscos e, eventualmente, fazê-las integrar a lista de substâncias proibidas.

“Aparecem, em média, cerca de 50 novas substâncias psicoativas por ano na Europa. São produzidas sobretudo na Índia e na China e têm uma estrutura molecular química que difere das drogas clássicas ilegais”, especifica João Matias. Portanto, não são ilegais – ainda -, apesar de lhes imitarem os efeitos. “E neste campo os serviços de drug checking são uma das principais fontes de informação deste sistema. Habitualmente, a primeira vez que estas drogas novas são detetadas no mercado é através destes serviços.”

Dos privilegiados aos vulneráveis

A redução de riscos e minimização de danos de consumo de substâncias toma uma forma diferente quando olhada não como uma necessidade de nicho, mas por aquilo que realmente é. Ao contrário do que pode ser intuitivo pensar, o uso de substâncias ilegais está longe de ser uma exceção: o Inquérito Nacional ao Consumo de Substâncias Psicoativas na População Geral, de 2017, revela que o consumo de qualquer substância psicoativa ilícita nos 12 meses anteriores é de 4,7% – quase 500 mil portugueses. Já olhando para os consumos ilícitos ao longo da vida, o valor é de 10,2%, o que corresponde a mais de um milhão de portugueses.

Os utilizadores do serviço de drug checking da Kosmicare, mostram os dados da organização, são constituídos em 73 % por homens brancos cisgénero, a maioria entre os 25 e os 35 anos. Mais de 75% têm o ensino superior e quase todos trabalham ou estudam. Não há desempregados, nem pessoas em situação de vulnerabilidade económica ou social.

Mas pessoas que não se enquadram neste padrão também consomem drogas, sendo que, muitas vezes, são elas que têm os usos mais problemáticos, provocados pela situação de fragilidade. Como não usam o serviço, é preciso que o serviço vá onde estão. Com o apoio da Open Society Foundation e do Programa Bairros Saudáveis, investiram numa unidade móvel e em recursos humanos e técnicos que permitem a deslocação para junto dos consumidores mais vulneráveis.

Desde outubro de 2021 têm uma parceria com o Programa de Consumo Vigiado Móvel (PCVM) – uma unidade móvel promovida pela Câmara Municipal de Lisboa, que permite o consumo de substâncias ilícitas, trazidas pelo próprio utente, sob supervisão de profissionais treinados para atuar em situações de emergência e que atua no Beato e em Arroios, em Lisboa. Mais do que um espaço seguro para consumir, o PCVM funciona como uma ponte que aproxima as pessoas que usam drogas em situações de grande vulnerabilidade do apoio médico, psicológico e social, e que pretende dar respostas concretas a cada caso.

Para atuar com esta população, a Kosmicare desenvolveu outras técnicas, tanto analíticas como relacionais. “São sobretudo consumidores de heroína, cocaína e crack em situação de exclusão social. Conseguimos fazer a análise sem destruir a amostra da substância e damos o resultado no imediato”, explica Daniel Martins. O trabalho ultrapassa muito a questão do drug checking: reúnem com grupos de moradores e colaboram num grupo de mulheres consumidoras, sempre com o fito de diminuir os riscos, perceber necessidades e criar diálogo. Mas, com todos os seus benefícios, o serviço de drug checking, sustenta Helena Valente, “não passa de um penso rápido”. Os próprios alertas sobre substâncias novas podem ter um efeito perverso, diz. “Ao aumentarmos o número de substâncias proibidas, o mercado reage desenvolvendo novas substâncias, que são cada vez mais tóxicas e cujos efeitos não conhecemos.” A grande pergunta que é necessário fazer, defende Daniel Martins, desafia a nossa moralidade: “Porque é que as pessoas podem usar algumas drogas quando estão doentes, mas não para ter prazer?”.

Hora de dar mais um passo em frente?

Há mais de 20 anos, com a lei da descriminalização, foi alterado um paradigma: os utilizadores de drogas – os problemáticos – deixaram de ser vistos como criminosos para passarem a ser vistos como doentes que precisam de tratamento, não de policiamento. Nos últimos anos, um pouco por todo o Mundo, tem estado a ser quebrado outro paradigma: a dicotomia entre “drogas más” e “drogas boas”.

As mesmas drogas que dentro da mala de Joana Canêdo são consideradas “más” são, noutros contextos, consideradas terapêuticas: a canábis está aprovada em Portugal – com venda em farmácias – para sete indicações terapêuticas. A ketamina está a ser usada há cerca de um ano no Hospital Beatriz Ângelo, em Loures, para tratar pessoas com depressão resistente à medicação. E a investigação que confirma os benefícios dos psicadélicos na saúde mental sucede-se (a Fundação Champalimaud, em Lisboa, participou recentemente num ensaio clínico internacional que administrou psilocibina – uma droga psicadélica que se encontra nos “cogumelos mágicos) em pacientes com depressão.

“Para diminuir o estigma e aumentar a informação que é devida a quem usa substâncias psicoativas, é preciso “sair do armário” e é por isso que estou aqui hoje”, reconhece Joana Canêdo, utilizadora do serviço drug checking

Muitas vozes defendem já ser tempo de quebrar outro paradigma: o do consumo recreativo, já que o drug checking é, afinal, uma forma de suprir uma necessidade que tem origem no facto de o mercado não estar regulado. O advogado João Taborda da Gama, que há muito que se dedica a acompanhar setores e matérias altamente regulados, como o da saúde e o das substâncias controladas, acredita que, no que toca à canábis, a tendência para regulação vai continuar.

Em 2018, escrevia nas páginas do “Diário de Notícias” que “daqui a poucos anos, metade do Mundo vai tratar a canábis como trata o gin tónico”, opinião que mantém, sobretudo agora, que, na Alemanha, o Governo de coligação se prepara para legalizar a venda da substância a adultos para fins recreativos.

O jurista, ex-secretário de Estado da Administração Local (2015) e ex-consultor político do presidente da República (2011-2013), argumenta que está na altura ter uma conversa sobre os reais riscos das drogas. “Os dados demonstram que o uso problemático de drogas é minoritário: situa-se nos 10%. Temos que nos preocupar com isso da mesma forma que nos preocupamos com outras atividades humanas que têm riscos: regulando o uso – de forma diferente para substâncias diferentes, com base na evidência científica – e não proibindo-o.”

Até porque a própria distinção entre propósitos terapêuticos e recreativos não é muito óbvia, frisa. E exemplifica: “Se alguém chega a casa ansioso e stressado depois de um dia de trabalho e bebe um copo de uísque ou fuma canábis para relaxar, isso é um uso terapêutico ou recreativo?”. No caso da canábis, a resposta é: depende do país.

Na Alemanha, a ansiedade e a insónia fazem parte das indicações terapêuticas autorizadas e são a razão de uma percentagem significativa das prescrições médicas. Em Portugal, a ansiedade e o sono não fazem parte das indicações aprovadas. No entanto, de acordo com o relatório Inquérito Online Europeu sobre Drogas – Portugal 2021, coordenado em Portugal pelo SICAD, as motivações dos utilizadores de canábis são precisamente essas: reduzir o stress/relaxar (84%), melhorar o sono (52%) e tratar a depressão/ansiedade (40%).

O relatório de 2021 da Comissão Global de Política de Drogas, da qual o ex-presidente da República Jorge Sampaio (1939-2021) foi um dos fundadores e Comissário Global, chama-se precisamente “Tempo para acabar com a proibição”. Considera que a distinção arbitrária entre “droga” e “medicamento”, criada há 60 anos em torno da ideia de um Mundo livre de drogas, tem tido uma falha determinante: não só não conseguiu atingir os objetivos, como teve um impacto negativo na sociedade. Um desses impactos negativos foi a estigmatização e a falta de informação a que está sujeito quem consome “drogas más” que os serviços de drug checking tentam colmatar.

“A informação sobre drogas tem de deixar de ser um assunto periférico para passar a ser central”, vinca Joana Canêdo, em jeito de despedida. “Mas, para diminuir o estigma e aumentar a informação que é devida a quem usa substâncias psicoativas, é preciso ‘sair do armário’ e é por isso que estou aqui hoje”, conclui, muito a propósito, sentada debaixo de um cartaz que diz “Womxn take drugs. Deal with it” (As mulheres tomam drogas. Lidem com isso).