Dor sexual: não, não é normal. Nem irreversível

Especialistas chamam a atenção para problema frequente, muitas vezes menosprezado. Incapacidade de usar tampão e ausência de orgasmos internos podem ser sinal de alerta.

Era para ser um sonho, o destino era paradisíaco, eles iam por fim consumar dois anos e meio de namoro (por opção, quiseram deixar o sexo para depois do casamento) e acabou a ser uma frustração, uma sensação de falhanço, “uma lua-de-mel azeda”, resume Maria (nome fictício). Tudo porque quando foram tentar a penetração ela teve dores horríveis, não foi capaz, ficaram ambos “um bocadinho traumatizados”.

Foram insistindo, sempre sem sucesso. Andaram assim uns quatro anos, ela bem foi à médica de família, a uma ginecologista, depois a outra, sem que o problema se resolvesse. Uma disse-lhe que tinha vaginismo, mas para continuar com “as brincadeiras”, que haveria de conseguir, outra prescreveu-lhe lubrificante com anestésico, mas de nada serviu. E assim se passaram quase quatro anos de angústia e desespero.

“Chorava baba e ranho, entrei em depressão, comecei a tomar ansiolíticos. Ainda por cima, sempre quis ser mãe, vivia num conflito interno muito grande.” E a relação, claro, também se ressentiu. “A dada altura, o meu marido já ficava chateado comigo porque achava que eu não queria tentar. Mas eu queria. Só que de cada vez que tentava era tão doloroso que o trauma ia aumentando.” E ela tão envergonhada a guardar aquele sofrimento só para ela.
Até que, por mero acaso, uma amiga lhe falou numa fisioterapeuta que ajudava mulheres que tinham sido mães recentemente a superar a dor sexual e decidiu experimentar.

“Assim que me fez o toque, senti imensa dor, mas depois começou a falar, a falar, e quando dei por mim já não sentia nada. Até me emocionei.” É certo que o problema não se resolveu de imediato – mesmo depois daquela sessão, passou um mês a ter relações com o marido “tipo estátua”, porque tinha de ser ela a controlar -, mas desde o verão passado que abraçaram por fim uma vida sexual livre de amarras.

A história de Maria é um exemplo extremo de um problema mais comum e incapacitante do que as aparências deixam antever. Falamos da dor decorrente da penetração que ocorre durante o ato sexual, a chamada dor sexual, também apelidada de dispareunia. E que surge quase sempre associada à vulvodinia (dor na vulva).

Marta Rodrigues, ginecologista e obstetra com diferenciação na área da patologia da vulva, esclarece que a prevalência oscila, de acordo com estudos internacionais, entre os 7 e os 18%. Números demasiado altos para serem ignorados. Mas o problema continua a ser menosprezado – e nalguns casos considerado até como algo normal.

A experiência de Hugo Tavares, pediatra no Centro Hospitalar Gaia/Espinho e no Hospital Lusíadas Porto, com diferenciação na área da medicina da adolescência (e que, por isso, acaba por acompanhar jovens até aos 21 anos, com “momentos de abordagem a sós”) ilustra isso mesmo. Há uns anos, não sabe exatamente quantos, foi confrontado com um desabafo que o desarmou.

“Uma jovem referiu que tinha relações sexuais há três anos e nunca tinha prazer.” Aquela queixa foi uma espécie de toque de despertar. A partir daí, começou a colocar a questão com frequência. E foi descobrindo “jovens muito surpreendidas” porque afinal não era normal nunca terem tido um orgasmo, não era normal ter dor.

De volta a Marta Rodrigues para escrutinar as nuances traiçoeiras da vulvodinia. “É uma entidade multifatorial, não só de difícil diagnóstico como de difícil tratamento.” Sabe-se, no entanto, que há vários fatores que podem desencadear este tipo de queixas. Desde logo, a predisposição genética. Mas também as infeções vulvovaginais ou urinárias, os contracetivos orais, a dismenorreia (dor na menstruação), certas doenças crónicas, a ansiedade, a depressão. Entre outros.

A ginecologista/obstetra do Hospital CUF, no Porto, e do Hospital da Luz, na Póvoa de Varzim, assume, no entanto, que nem sempre a causa é identificável e faz questão de deixar uma ressalva: “É importante dizer que esta não é uma dor como a que temos quando levamos uma pancada no braço. Regra geral, é uma sensação de queimadura, de ardência, de picadela, de desconforto”.

Medicamentos, psicoterapia e massagem

E solução, há? “Nalguns casos não é possível anular os sintomas, mas, sim, é possível melhorá-los.” E isso pode ser feito tanto através de cuidados locais (“A higiene da vulva deve ser feita apenas com água morna, devem ser retirados todos os produtos irritantes”, aconselha), medicamentos tópicos, como lubrificantes, cicatrizantes, anestésicos locais, etc., fármacos por via oral ou mesmo injetáveis. Mas há outras opções. O aconselhamento sexual, por exemplo. Ou mesmo a psicoterapia. No limite, a cirurgia. E, com frequência, fisioterapia.

Para Susana Mesquita, a fisioterapeuta a quem Maria recorreu, atender pacientes com estas queixas tornou-se rotineiro. Mas só de há uns anos para cá. Primeiro, especializou-se na área da incontinência urinária, depois começou a ajudar senhoras com cicatrizes decorrentes das episiotomias (pequeno corte cirúrgico feito no períneo para facilitar a saída do bebé durante o parto) a retomar a vida sexual.

Até que há uns seis anos lhe apareceu uma paciente que tinha tido uma cesariana e também se queixava de dores no pavimento pélvico (o aglomerado de músculos que estão intrinsecamente ligados uns aos outros e forram a parte de baixo da bacia) durante o ato sexual. E aí abriu-se todo um novo caminho.

“A partir daí, comecei a questionar todas as minhas pacientes e a estudar o assunto.” E percebeu não só que o número de mulheres com queixas era muito mais significativo do que alguma vez pensara, como também que “muitas destas situações são consideradas normais”.

Mas não devem, avisa, sublinhando que o simples facto de uma jovem não suportar um tampão ou de nunca ter tido um orgasmo interno podem ser sinais de alerta. No sentido de ajudar todas estas mulheres, começou então a perceber de que forma poderia articular as técnicas que dominava, desde a mobilização do sistema nervoso à massagem transversal profunda, a experimentar, a ter resultados. “E desde então nunca mais parei. Não tenho uma noção exata dos números, mas seguramente já tratei centenas de mulheres.” Criou até nas redes sociais a página “Sorriso nos lábios”, para sensibilizar para o problema.

Mas, afinal, o que faz? Reeducação do pavimento pélvico. Simplificando, desfaz as contraturas da zona perineal, através de massagem localizada. Além de acompanhar o retorno a uma vida sexual sem dor. “Já tive desde uma menina de 24 anos que só conseguia introduzir um dedo mindinho a uma paciente que estava a ponto de se divorciar porque tinha entrado na menopausa e tinha deixado de conseguir ter relações. E depois há casais em que as pessoas simplesmente se conformam, são amigos há tantos anos que aceitam que não há mais sexo.”

A menopausa, por causa de todas as alterações hormonais que estão envolvidas e do aparecimento de “um anel fibroso, que dá a sensação de queimadura e oclusão da vagina”, é muitas vezes um momento potenciador da dispareunia. Mas o pós-parto continua a ser a fase mais crítica. A pensar nisso, o Hospital de Santa Maria, em Lisboa, até disponibiliza, desde dezembro, uma “consulta de pós-parto tardio”, com o objetivo maior de garantir às mulheres uma vida sexual feliz depois de ter filhos.

“As queixas eram extremamente frequentes. A prolactina, a hormona da amamentação, diminui a libido, a pílula e a própria privação de sono também. Mesmo o facto de depois do parto haver um período sem atividade sexual faz com que, quando reiniciam a vida sexual, haja muitas vezes desconforto, sensação de ardor”, explica a ginecologista Maria do Céu Santo, responsável pela referida consulta.

Para estes casos, mas também para todos os outros, apareça a dor logo na primeira tentativa de penetração ou ao fim de anos, Susana Mesquita enfatiza o mesmo repto. “Não é suposto doer, é suposto ser bom. E se não é, há que procurar ajuda.”