Margarida Rebelo Pinto

Do amor entre mulheres


Rubrica "A vida como ela é", de Margarida Rebelo Pinto.

O que assistimos na noite dos Oscars não foi apenas a um momento mágico. Foi uma celebração da amizade e da ternura que uma mulher forte, indomável e extremamente bem-sucedida tem por outra da mesma fibra.

O tempo é um labirinto. Já passaram 50 anos desde que Liza Minnelli dançou, cantou e encantou com o filme “Cabaret”. Este é o número linear, a forma mais básica e inteligível de entender o tempo, mas não a mais inteligente, porque o tempo é um mistério indecifrável, uma dimensão eterna cujos truques de medida servem apenas para nos fazer sentir velhos, ou apenas mais velhos. Por vezes, também é infinitamente misericordioso, quando finge parar num beijo, ou quando a vida consegue transportar-nos para um lugar perdido no passado que se torna real no presente.

A cerimónia de entrega dos Oscars 2022 não podia ter encerrado de melhor forma, quando Liza Minnelli assomou ao palco de cadeira de rodas escoltada por Lady Gaga que a guiou com carinho e sensibilidade, protegendo-a da sua condição de saúde débil, amparando com rapidez e inteligência o seu frágil discurso, numa atitude de genuína admiração, sem um pingo de paternalismo.

Liza tem agora 76 anos e uma longa história de sucessos, recheada de peripécias e de momentos difíceis na vida pessoal. Viveu os excessos dos anos 1970 e do Studio 54 em Nova Iorque, só por quem lá andou é que sabe o aconteceu. Truman Capote não se coibiu de escrever com a sua pena afiada, maldade e lucidez as loucuras da discoteca onde tudo era permitido, poucos anos antes de rebentar o flagelo da sida. Liza estava lá e sobreviveu, tal como sobreviveu ao facto de ser filha de uma das maiores e mais talentosas estrelas de Hollywood, Judy Garland, vítima de overdose com apenas 47 anos. Judy casou cinco vezes, Liza quatro. O destino da mãe e da filha, sempre próximas em vida, escolheu um atalho bizarro mesmo depois da morte as ter separado, quando Peter Allen, ex-marido de Liza, teve um caso com Mark Herron, ex-marido de Judy. A realidade supera sempre a ficção. Em 2000, Liza contraiu encefalite e sobreviveu milagrosamente. Apesar de ter não ter escapado a efeitos secundários devastadores, enfrentou-os, com aulas de voz e de dança.

O que assistimos na noite dos Oscars não foi apenas a um momento mágico, apesar da cena de estalo que ensombrou a cerimónia. Foi uma celebração da amizade e da ternura que uma mulher forte, indomável e extremamente bem-sucedida tem por outra da mesma fibra. Um gesto de enorme humanidade e gentileza de uma superestrela por outra. Foi Lady Gaga que pediu especificamente à Academia que Liza estivesse com ela para anunciar o Oscar para melhor filme. O sucesso de Lady Gaga desafiou todos os estereótipos e barreiras do sistema. Quando era ainda uma aspirante, um professor da NYU Tisch School of Arts disse-lhe: “Nunca serás uma heroína, a loira, a estrela. O teu cabelo é escuro, és demasiado étnica”, ao que Gaga respondeu: então e a Liza?

Se somarmos o número de estatuetas ganhas nas cerimónias dos Emmy, dos Grammy e dos Oscars por ambas, provavelmente não chega uma estante com cinco prateleiras. Mas o que fica é a força de uma mulher que inspira tantas outras, e entre essas, outra se destaca e inspira mais mulheres, num dominó construtivo de amizade, carinho e admiração.

Do aplauso nasce o amor, escreveu Gabriel García Márquez. Sábias palavras.