Discutir por tudo e por nada. Um ensaio ou uma luta?

Negatividade e criticismo. Se estas duas formas de estar estiverem presentes numa discussão, o caldo está entornado

As discussões fortalecem o casal ou conduzem a um ponto de rutura sem retorno? Há vários fatores em jogo. O tom, o conteúdo, a intensidade, a postura, o propósito. Uma coisa é certa. A tática do ataque e contra-ataque não tem vantagens. De qualquer modo, mais vale falar do que calar.

A tampa da sanita levantada. As horas em frente ao espelho. As cuecas e as meias espalhadas pelo chão da casa. A torneira aberta mais tempo. Quem faz o quê nas tarefas domésticas. Quem fez ontem e quem faz hoje. Aquele esquecimento. Aquela coisa que ficou por fazer. Aquele prato por lavar. Aquele saco do lixo que não desaparece. A educação dos filhos. Quem leva e quem traz os miúdos. Quem vai às compras. A relação com a família de um lado e com a família do outro. As finanças. Gasta-se mais aqui ou mais ali. As contas. O dinheiro a sumir. A escolha do programa da TV. E as discussões acontecem. Relações e discussões. Soluções ou complicações?

É a conversar que a gente se entende, diz o ditado. Certo. Contudo, é necessário perceber a essência da discussão. Um ataque? Uma luta? Um confronto? Uma partilha sincera? A procura de uma solução? O psicólogo clínico e terapeuta de casal e familiar José Carlos Garrucho começa precisamente por aqui. Pela raiz. “Em primeiro lugar, é importante esclarecer o que entendemos por discussão para definir a sua utilidade”, comenta. Há discussões com conteúdos diversos, diferentes intensidades, vários propósitos. “Um discurso socrático, de debate, é muito benéfico. Se a discussão for uma conversa para resolver uma situação, para construir uma solução.” Ou então não. O caso muda de figura se a discussão vem de trás, anda ali a moer, com um turbilhão de emoções negativas, uma enorme intensidade, uma zanga por resolver, uma frustração por falar. Neste caso, espremem-se ilações. “Pode ser útil para perceber quão mal a relação está”, refere José Carlos Garrucho.

“A essência da questão não está na discussão em si. Está no que ela representa e na função que tem quando ocorre entre duas ou mais pessoas”, adianta José Pacheco, psicólogo clínico e sexólogo. Uma discussão não é só uma discussão. “Pode ser um ensaio para descobrir uma solução, mas muitas vezes é uma luta, uma competição entre dois ‘inimigos’ que aspiram a ter o prazer de impor o seu ponto de vista.” Neste último cenário, até num casal, frisa, “quase sempre já existe uma história em que a relação passa mais pela inimizade do que pela amizade e mais pela discórdia do que pela concórdia.”

As discussões não têm apenas um lado negativo. Uma discussão pode ser uma troca de ideias e partilha de impressões num registo saudável. A psicóloga e terapeuta de casal Catarina Lucas analisa os vários ângulos da questão. “Um casal que não discute pode ser um casal com uma comunicação pobre, em que persistem assuntos tabu, em que as dificuldades e sentimentos não são trazidos para cima da mesa, e isso transforma-se muitas vezes numa bola de neve.” O problema é quando tudo descamba. “Quando as discussões são acompanhadas de violência ou agressividade verbal, tornam-se disfuncionais e insustentáveis numa relação”, alerta.

Catarina Mexia, psicóloga clínica, terapeuta de casal e familiar, esmiúça os propósitos de um confronto. “As discussões ajudam os elementos envolvidos a reafirmar a sua independência, a definir limites e comunicar diferentes pontos de vista. Podem tornar-se tóxicas quando há uma grande assimetria de poder dentro do casal, ou quando envolvem crianças ou idosos dependentes.” Atenção, muita atenção.

Estar à defesa, criticar, culpar

Os estores do quarto mais aberto ou mais fechados. A roupa da cama entalada no colchão ou solta. Como é que é? Carne ou peixe para o jantar. Comprar um carro mais barato ou um melhorzinho para levar as crianças. Onde passar férias. Coisas sem a mínima importância que, de repente, ganham a máxima importância. Complicar ou resolver?

Hoje é isto, amanhã é aquilo. E depois é mais isto e mais aquilo e aqueloutro. Baralha-se e torna-se a dar. Discute-se por tudo e por nada. “O tema de discussão mais frequente é ‘coisa nenhuma’”, diz Catarina Mexia. Só que essa “coisa nenhuma” pode, admite, funcionar como rastilho de “discussões muito feias com insultos, faltas de respeito e um escalar de agressões, que mais tarde ambos reconhecem não ter raiz suficientemente importante para o vendaval que causou.” É isto e é aquilo, é tudo e é nada. “Quando o casal está em tensão, tudo, absolutamente tudo, pode originar uma discussão de dimensão gigante e pouco fundamento”, reforça Catarina Lucas.

Negatividade e criticismo. Se estas duas formas de estar estiverem presentes numa discussão, o caldo está entornado. Catarina Mexia garante que estes dois fatores são péssimos indicadores para um bom desfecho. Não há final feliz possível. “A forma como iniciamos uma discussão, prediz como ela acaba. Se começarmos por atacar intensamente o nosso parceiro, acabaremos numa tensão imensa. Se a discussão se iniciar de forma suave, em que somos capazes de explicitar a nossa necessidade, sem criticar, seguida de um pedido concreto, abrimos a porta para um diálogo construtivo”, assegura. E exemplifica com um descubra as diferenças. “És sempre a mesma coisa, onde está a roupa que te disse para arrumares?” Ou então. “Preciso da roupa que combinamos ontem que arrumarias. Podes tratar disso o mais rapidamente possível?” As diferenças são óbvias.

Há uma linha ténue entre uma discussão saudável e uma discussão violenta? Uma fronteira que pisada pode não ter caminho de volta? Catarina Lucas contextualiza essa possibilidade. “Quando uma discussão se transforma num jogo de ataque e contra-ataque ou quando consecutivamente percecionamos o que o outro diz como uma ameaça, sem que consigamos observar o caráter construtivo de alguns temas que possam ser trazidos, então a relação tenderá a deteriorar-se e, no limite, poderá chegar à rutura.” E mais. “Uma discussão onde exista falta de respeito, onde se ataque gratuitamente o outro, onde se ameace a autoestima do outro ou onde ocorra violência, estará certamente no caminho da rutura.”

Não há volta a dar. Para José Carlos Garrucho, essa fronteira não está na própria discussão. “Essa linha existe quando o casal já não consegue entender-se, já não é discussão, é agressão mútua”, sustenta.

Relações e discussões. O assunto tem sido analisado por especialistas da área. Catarina Mexia lembra John e Julie Gottman, dois psicólogos americanos que se dedicam ao estudo de casais há anos, que identificaram os quatro fatores mais destrutivos de uma relação que se manifestam na comunicação do casal. O desprezo, aquela ácida mistura de raiva com menosprezo, considerando o parceiro como inferior. A crítica, o dedo sempre levantado. “Somos treinados desde muito cedo a focarmo-nos no erro. A prática do elogio, do apreço diário pelo que o outro faz, é mais uma forma de evitar as discussões”, observa Catarina Mexia. Terceiro fator: estar à defesa, não assumir responsabilidades, culpar o outro. E ainda obstruir um diálogo quando se está perante um tema sensível. “Responder com silêncio, ausentar-se sem explicação, pegar no telemóvel, são formas inadequadas de evitar uma discussão”, alerta a psicóloga clínica e terapeuta de casal.

Parar, refletir, conversar

Quem é que manda, afinal? Quando a relação vai por aqui e se torna uma gestão do poder, da própria liderança do casal, não se vislumbra nada de bom, avisa José Carlos Garrucho. Um casal para ser um verdadeiro casal congrega duas características. A cumplicidade, essa disponibilidade de estar um para o outro; e a reciprocidade. “E tudo isso envolve uma outra dimensão, do segredo, não só o segredo da cama, a erotização”, sublinha. Mas tudo o que se partilha na conjugalidade, o romance, o amor, um para o outro, tudo o que fortalece um casal.

É impossível gostar de tudo numa relação, as imperfeições fazem parte da vida, do casal, e comunicar é importante. Como falar do que desagrada, do que irrita, do que incomoda, do que perturba, sem que a conversa resvale? Não basta abrir a boca, alerta Catarina Lucas. “É preciso escolher um momento sereno, em que estejam sozinhos num clima de abertura e propenso a que a conversa flua. É importante ser empático na forma de colocar as questões, não o fazer em tom de ataque e expressar a forma como certas características ou comportamentos nos fazem sentir a nós próprios ao invés de acusar o outro.” Olhar para o próprio umbigo não é bom. “É pouco sensato achar que a nossa forma de ser ou pensar é a correta e a do outro errada, por isso, centrar na forma como o próprio se sente, ao invés de acusar o outro, tende a funcionar melhor”, sugere.

Há um manual para discutir de uma forma construtiva? Como discutir e aceitar as diferenças? “É preciso perceber sempre o outro como diferente de nós e aceitá-lo exatamente como diferente de nós. Querer que o outro seja ou se comporte como nós, quase em espelho, além de infrutífero, não é certamente a forma correta”, responde Catarina Lucas. “Talvez seja bom relembrar que, no início, esse ser em alguns pontos diferente de nós mesmos já foi atrativo”, acrescenta.

A discussão pode ser um condimento na relação, no sentido de partilhar o que vai na alma? Discutir ou ficar em silêncio? Eis a questão. Para Catarina Lucas, discussões saudáveis são sempre preferíveis a nada dizer. “Os silêncios são grandes preditores de rutura e de degradação da relação. Conversar é essencial, mesmo que por vezes possamos estar pouco à-vontade com determinados temas. Ignorar, desprezar e silenciar conduzirão à rutura na relação”, salienta.

O povo diz que casa que não é ralhada não é bem governada. Calar não, diz Catarina Mexia. “A discussão, com regras e respeito, é preferível ao silêncio. O silêncio é terreno propício para mal-entendidos, para que a nossa mente comece a divagar por razões e motivos que nunca estiveram em causa”, repara. E assim se verificam comportamentos que alimentam ainda mais o afastamento e o desconforto.

Cada um tem a sua postura. Há pessoas que optam pelo silêncio para, defende José Pacheco, “evitar as dores inerentes aos conflitos estéreis e emocionalmente desgastantes.” O problema é quando o conflito não desaparece, as discussões não esmorecem, e o silêncio do outro não arrefece a conflitualidade. Porque não fala, não diz, não põe cá para fora o que vai lá dentro. E do outro lado, a luta continua. “Ao fim ao cabo, é como se estivesse a suplicar: preciso que digas alguma coisa para ter argumentos para te arrasar.” E quando assim é, quando se chega aqui, é complicado, demasiado complexo. “Quando uma relação está neste ponto é muito difícil partilhar seja o que for com um qualquer manipulador indecente”, comenta o sexólogo José Pacheco. E o manipulador não partilha nada com a outra pessoa. “Habitualmente agride, sobretudo verbalmente, o outro: repete à exaustão que é ‘franco’ e ‘honesto’, artimanha para dizer tudo o que lhe apetece, sobretudo críticas e insultos variados.” Quando se vira o bico ao prego, a conversa é outra, ou seja, há quem não aguente a franqueza e honestidade, mesmo em níveis modestos e moderados, sobre o que pensam de si.

“Apesar de ser difícil, uma boa relação implica saber aceitar e respeitar o outro, mesmo que não concordemos com tudo o que diz ou faz.”

No entanto, não estar bem não significa que tudo está perdido. Catarina Lucas considera que é preciso refletir nas razões que conduzem a tal tensão. “Por vezes, essa resposta até está nos estilos de vida ou em fatores individuais.” Parar, refletir e conversar para inverter a tendência, são boas estratégias. Há sempre esperança, segundo Catarina Mexia. E a fórmula de que “para dançar o tango são precisos dois” encaixa-se em momentos bons e menos bons. “Ainda que as discussões introduzam um fator de desgaste na relação, o que é relevante não é a discussão em si, e muito menos o assunto. A forma como reagimos e expressamos emoções negativas num relacionamento faz toda a diferença.” É preciso saber lidar com as contrariedades, os obstáculos que surgem no caminho. A especialista dá alguns conselhos. “Aprender a reconhecer, identificar e expressar emoções, sem atacar o outro é fundamental para transformar uma discussão numa oportunidade de crescimento do casal.” Se tal não for possível, a psicoterapia é sempre um bom caminho para essa aprendizagem a dois.

Conselhos

● Objetividade. Não é numa conversa que se resolvem todos os problemas. E não adianta repescar 50 argumentos do passado para vincar um ponto de vista.

● Evitar “tu” e “nunca.” Começar a frase com essas duas palavras estimula a posição defesa-ataque do outro. Por outro lado, as generalizações não ajudam a uma conversa construtiva e desvalorizam o parceiro.

● Momento e local adequados. Tempo e disponibilidade para conversar. Com a cabeça limpa. Discutir com cansaço acumulado, irritação do dia, e estômago a dar horas, não dá, não leva a lado algum.

● Conversar de forma assertiva, sem magoar, com empatia. Não acusar o outro.

● Relaxar e envolver-se na conversa sem exaltação.

● Aceitar as diferenças. Compreender, ceder, ajustar.

● Um problema, uma solução. Caminhar e construir a dois.