Dino d’Santiago: “Sou um preto em construção, não sou um branco em desconstrução”

As origens, o bairro, a barraca de contraplacado com telhado de chapa, as fendas nas paredes. Os bidões para ir à bica e o cheiro a vala. A Quarteira da infância e da adolescência. Os desenhos que pintava e não deixava fotocopiar. Os taxistas que não paravam. A música, o crioulo, os discos e os prémios. O antes e o depois de Madonna. O Avante. O processo de autoconhecimento. A estreia como mentor do The Voice. Chegará o dia em que será Dino. Simplesmente, Dino. Sem prefixos, nem sufixos. “Sou um preto em construção, não sou um branco em desconstrução.”

Estamos no jardim da Gulbenkian, em Lisboa, que no verão encheu de corpos negros. Dino d’Santiago traz a periferia para o centro, sente que as margens estão mais estreitas. Esta é uma conversa de corpo inteiro, peito aberto. Sexta-feira, dia 7, estreia o videoclipe da canção “Lá fora”, gravado na Cova da Moura. É uma homenagem ao amor, ao dialeto de ternura, dos seus pais. Uma versão com Djodje, cantor cabo-verdiano. Hoje, domingo, está nos Globos de Ouro da SIC. “Esquinas” está nomeada para Melhor Música. Dino para Melhor Intérprete. Há uma palavra que lhe vem à cabeça quando pensa em tantos prémios em tão pouco tempo.

À procura do seu propósito na música. Já tem resposta para essa questão?
É difícil encontrares o teu propósito quando não te conheces a ti próprio, a não ser a versão que manipularam, com muito amor, à tua volta do que deverias ser. A partir do momento em que me encontrei, enquanto ser, percebi que estar no palco não era o meu propósito, mas sim servir-me dele para a mensagem que queria passar. As minhas canções passaram a ser o guia que transporta a mensagem com que me identifico. Para isso, foi preciso um processo de “desfusão” com a minha questão muito ligada à religião, por ser filho de uma família extremamente católica e haver padrões pré-definidos do que deve ser um ser humano ou do que deve ser um bom cristão.

Um processo doloroso ou tranquilo?
Em certo momento, bastante doloroso porque entras em conflitos internos. São crenças enraizadas durante muito mais tempo do que tu próprio tens de vida. A partir do momento em que me aceitei enquanto ser preto, enquanto afrodescendente enquadrado num país europeu, que tem muitas raízes e está extremamente ligado à cultura africana, não pelos melhores motivos, aproveitei essa ponte que já existe, e que foi construída à força, para atravessar por ela como um cidadão do Mundo, como qualquer outro e sem preconceitos.

Ser um construtor de diálogos, uma ponte entre gerações?
Sinto que é esse o meu propósito. Ser uma ponte geracional que comunica com a geração mais nova até à geração da minha avó, que faleceu no ano passado. Da minha sobrinha Eva, que tem dez anos, até à minha avó. Elas são os dois pilares onde me centro e onde quero ser ouvido.

A família. Partilhou, no Instagram, parte da sua história: “Mãe empregada doméstica, pai pedreiro, uma típica família africana de um pós 25 de Abril. A nossa barraca de contraplacado, telhado com chapa de zinco, vários buracos e fendas nas falsas paredes de suporte permitiam que outras espécies de seres vivos também fizessem parte da equação. Entre ratazanas, baratas, osgas e aranhas que também disputavam o pão nosso de cada dia, lutando por um lugar na nossa mesa.” Tudo faz sentido quando volta a Quarteira?
Tudo. Para já, a forma como sou recebido, lá sou simplesmente o Dino, não há o sufixo d’Santiago, sempre fui acarinhado por aquelas ruas. Um bairro na fronteira entre Quarteira e Vilamoura, mais de 600 famílias, muita gente que vinha de África, como o meu pai que veio de uma colónia que ainda era portuguesa, que veio como um preto português que chegou à Europa, a um país difícil. Havia um estigma gigantesco com as comunidades africanas. No fundo, aquelas pessoas chegaram e foram jogadas para ali e quem lá estava nem teve contexto, só tinha relatos da guerra, e depois há corpos negros que chegam sem pré-aviso – e essa forma de não se organizar essas chegadas também foi o que aconteceu em África com a desorganização na forma como Portugal sai. Então eu sou filho dessa história mal contada ou mal interpretada e só muito recentemente, já com 30 e tal anos, é que comecei a interiorizar mais essa questão porque, felizmente, começou-se a falar mais. Agradeço ao Brasil por ter aberto esse diálogo e ter muita gente formada que conseguiu abordar e trazer temas e formas de olhar para a Língua Portuguesa que nós nunca olhámos – sempre fui um conquistador, nunca me meti na pele de um africano escravizado, nunca, para mim o meu contexto era de português e não de africano.

Mas quando se vai às origens e se remexe na História…
Normalmente grande parte das pessoas que estão nos bairros sociais não vai para a faculdade e é onde realmente podem abordar esses temas, se tiverem esse interesse, não é que lhes sejam expostos. Grande parte dos africanos já é como eu, desta geração que já nasceu cá, então a nossa história com África, no máximo, são as cartas que recebíamos dos nossos avós ou visitar a zona onde nasceram, mas não há um contacto com África puro e cru, com a real história dos imperadores. O que conhecemos de África é só segundo o prisma europeu e em Cabo Verde continua a ser assim. É preciso saber o nome das ilhas, mas não se estuda África.

Dino d’Santiago conta: “Os desenhos eram o meu ganha-pão na escola. Vendia muito. Na altura, não havia autocolantes, não havia cadernetas. cinquenta escudos cada desenho. Até a fotocopiadora vir lixar o meu trabalho”

O projeto “Sou Quarteira” nasceu para espicaçar a criatividade dos jovens. Qual é a ideia?
O primeiro grande propósito foi o nascimento de uma plataforma que mostrasse os vários Dinos que existem em Quarteira. Temos muita gente bem-sucedida, o campeão do mundo de BMX, a campeã do Mundo e campeã da Europa de Capoeira, uma cientista bastante distinguida na República Checa, o Ricardo Neves-Neves na encenação, o Rui Coimbra na seleção de futebol de praia, a Nash na fotografia, o Mike Ghost. Tínhamos vários nomes de Quarteira, mas falava-se mais do Dino porque havia mais olhos em mim.

Um caldeirão de talentos, portanto.
Fizemos um documentário que foi emitido pela RTP, “Sou Quarteira 365 Dias”, para que Quarteira não ficasse somente associada à época balnear e à altura do turismo, ou seja, agosto, e, de repente, chegam os outros meses e Quarteira torna-se uma cidade-fantasma. Mas não é fantasma, tem muita dinâmica, o Nuno Viegas, destacadíssimo na arte urbana com peças no museu de arte urbana em Berlim, em Miami. Temos nomes que saem daquela cidade que me orgulham muito e artistas nos quais me inspirei como o Biex, o Johnny Def. Tenho esses meus ídolos quarteirenses e é bonito poder homenageá-los e falar sobre a nova geração. Eu e o quarteirense Manuel Jacinto, a Inês Oliveira e a Naomi Guerreiro criámos a Associação Beyond que edifica este movimento Sou Quarteira e que este ano faz um cartaz 100% feminino no Bairro da Abelheira, o meu bairro, (primeiro fui do Bairro dos Pescadores, depois passámos para o Bairro da Abelheira). E propositadamente no Bairro da Abelheira porque para o ano cumprem-se 30 anos do Programa Especial de Realojamento (PER), fazer esse primeiro momento para dar arranque a isso e levar a cultura de onde ela sai, sem esse preconceito de ser no bairro. Um festival onde a Nenny é cabeça de cartaz.

Crescer num bairro tornou-o mais rijo, mais forte, mais capaz?
Sim, sem dúvida. Sinto que por ter crescido ali no bairro, tudo o que tem a ver com falta de dignidade e integridade que um ser humano pode ter, nós passámos por isso. É um Portugal. Eu via imagens da Unicef em África e dizia isto é o Bairro dos Pescadores. Porque é que enviam tanta ajuda para fora e nós estamos aqui? Não conseguia compreender aquela realidade. Quando víamos o Bairro de Pescadores na televisão era pelo nível de toxicodependência e de tráfico de droga. Os turistas que vinham para Vilamoura e para a Quinta do Lago traziam-nos roupas, bicicletas, doces e davam-nos dinheiro. Nós crescemos assim.

É ali que também percebe que os homens e as mulheres não são iguais, não têm os mesmos direitos, e que a sociedade é desigual?
Sem qualquer dúvida. Os meus pais tinham uma vida muito melhor em Cabo Verde. As famílias brancas e portuguesas tinham casas de betão e as nossas eram de contraplacado. As pessoas nem têm noção do ruído que entrava dentro de nossas casas, quer dos carros, quer do vento, as chapas a abanarem no inverno. Lembro-me, em criança, que o que mais me custava era ir à bica, não havia água potável, e alguns cortavam as mangueiras quando outros estavam há mais tempo e metiam as deles. Três bicas para servir 600 famílias. No verão, lá íamos com carrinhos de mão e vários bidões com água.

Reconciliou-se com tudo isso, vai a uma psicóloga todas as semanas. Faz terapia?
Sim, terapia espiritual e terapia conjugal. Várias terapias.

Procura ajuda sem qualquer preconceito?
Sem qualquer preconceito e sem qualquer tipo de vergonha pelo facto de perceber as minhas vulnerabilidades e não ter medo de as partilhar. Nunca partilhei estas histórias do bairro porque não queria que sentissem pena da minha história, queria que me recebessem pelo que eu sou e não por onde vim porque sei que não sou de onde vim e fui inspirado pelos lugares de onde vim. Eu fui feliz no inferno. Se fui feliz no inferno, tudo o resto é só um vislumbre do paraíso.

Usa a exposição mediática, a visibilidade pública, esse lugar de fala, para chamar a atenção de uma percentagem, de um detalhe. Na Gala das Quinas de Ouro, da Federação Portuguesa de Futebol, disse que apenas 21% das mulheres que fazem música em Portugal estão nos cartazes dos festivais. A representatividade. O discurso nunca é superficial. O que lhe importa nesse lugar de fala?
Tenho de agradecer muito a uma amiga, a campeã do Mundo e campeã da Europa de Capoeira, a Sara Correia (Pakita), que cresceu comigo. Uma vez viu-me no “5 para a Meia-Noite” e disse “Dino, estiveste quase 20 minutos em frente à televisão e não disseste nada que interessasse”. Vivia numa realidade e sentia que tinha de servir aquele boneco. E ela, por ser minha amiga, por me conhecer, por conversarmos, não sentiu essa profundidade. Bastou esse alerta e nunca mais peguei num microfone para não dizer nada.

Dá a impressão de que leva o discurso preparado.
Não levo, eu permito-me, raramente penso no que vou dizer, visualizo muito, desde que descobri esse poder foi uma transformação na minha vida. Em criança, visualizava, mas não sabia o que era a visualização. Imaginava-me na rua a brincar para conseguir adormecer com aquele calor e depois sonhava com aquilo, queria tanto estar na rua a brincar que sonhava tanto que depois realizava-se. Conseguia sentir o que era estar lá fora, mesmo estando dentro de casa. Então eu sabia visualizar. Sempre visualizei os meus concertos, tanto que o momento mais caricato foi no Primavera Sound no Porto. Ia abrir aquele palco às cinco da tarde, tinha visualizado toda a gente à minha volta, um sol lindo, eu a cantar “minha nação é crioula” no nosso funaná, só que antes de ir para o palco estava uma chuva torrencial, uma tempestade que veio não sei de onde, tinha nome e tudo. Faltavam três minutos para subir ao palco, grande sol, abriram as portas, o pessoal a correr, quando cantei o nosso funaná tinha todo o people à minha volta. Um gajo tem de acreditar mesmo nisto porque acontece. Agora vão dizer que isso são teorias… na minha vida, não são. Não é só um querer, não peço só, vejo o que vai acontecer, sinto, emociono-me. E, depois, no final, o truque é a gratidão por aquele momento.

“Não sou o maior em nada. Sou o maior para mim mesmo. Todos os dias, tento me superar e as coisas estão a acontecer de forma natural. e isso é bonito e é bonito teres uma equipa que consegue capitalizar o que tu és”, reconhece Dino

Sair do palco, ir para junto das pessoas, essa mistura. É como voar?
É mesmo. As pessoas estão a dar tanta energia, querem-me tanto ali e eu quero tanto estar ali. É um momento meu, é egocêntrico ao máximo, recebo tanto amor que sinto que é aquilo que me dá forças para aguentar o dia seguinte, como se me estivessem a energizar e eu saio dali com uma felicidade extrema.

Não se considera um ativista. No dia 25 de Abril, cantou no jardim da residência oficial do primeiro-ministro com uma t-shirt que dizia “Preto estás na tua terra”. Isto não é ativismo?
Não me considero ativista, eu distingo um ativista de outra forma. Sinto-me um cidadão.

Um cidadão ativista por natureza?
Nem isso. Sou um preto em construção, não sou um branco em desconstrução. Essa t-shirt foi para o Lucas [o filho], não foi a pensar em mim, não foi a pensar nos mais velhos. É uma oração para mim: lembra-te, tu estás na tua terra, não tens de reclamar este chão que este chão também é teu. Não quero que o meu filho cresça com ‘preto vai para a tua terra’. Tu vais sentir sempre preto tu estás na tua terra, tu estás na tua terra, tu estás na tua terra. A água vai bater tanto na pedra que vai furar um dia.

Há uma carga simbólica tremenda nessa t-shirt.
Já é o olhar que vem de fora.

Esse olhar não interessa?
Interessa, mas quando pensei foi para o meu filho, estou a ser honesto. Muitas vezes, um artista pinta numa tela, e eu também pinto, e não pensou na forma como aquele crítico de arte esmiuçou a obra. Quando levei essa t-shirt para Grândola no dia 24 de abril, pensei “foi aqui”, foi propositadamente a minha farda, no sentido de é o meu escudo para com os vários “preto vai para a tua terra” e então foi só mudar o discurso e sente-te. Foi para os negros, não foi uma coisa para um caucasiano sentir “ah, olha, é verdade, ele também está na sua terra”. Foi, por favor, sente-te, foi para os meus irmãos de cor, a pessoa que tivesse a minha tez sentir-se, tu estás no teu chão. Eu estou na minha terra e não há mal nenhum chamarem-me preto, é o que eu sou. Esta é a minha terra, se vou para a minha terra, estou na minha terra. Qual é a terra? Sinto que muita gente interpretou de outra forma e está tudo certo porque foi bonita a forma como viram. Às vezes, o propósito é maior do que a intenção e tens só de a abraçar.

Houve uma altura em que queria ser ilustrador. Ainda pinta?
Numa fase inicial, era muito inspirado pela anime, manga, desenhava muito e era o meu ganha-pão na escola. Vendia muito. Na altura, não havia autocolantes, não havia cadernetas, as pessoas só tinham o que viam na televisão e o que desenhássemos. Era aquilo, 50 escudos cada desenho, até a fotocopiadora vir lixar o meu trabalho. O pessoal começou a pagar 10 escudos pelas fotocópias. Falei com a dona Dina, “por favor, não faça fotocópias do meu trabalho”, e ela respeitou. Eu assinava e ela dizia “não, os do Dino não fotocopio”. E então vais sobrevivendo assim. Quando comecei a estudar história de arte no secundário, inspirei-me muito em Salvador Dalí, Magritte, sempre gostei muito de surrealismo, até chegar ao impressionismo, com o que me identifico em termos de filosofia de sentir a arte. Depois comecei a desenhar rostos, sempre gostei de desenhar rostos, mas nunca gostei de fazer retratos. É diferente. Gosto das expressões. O propósito não é ficar igual, não é copiar. Pinto menos agora, mas estou a trabalhar essa questão do tempo para ter mais tempo para pintar. Sinto que muitas coisas não vou querer deixar escritas, vou querer deixar os meus manifestos pintados.

Começou por cantar no coro da igreja, fez parte de grupos de rap, participou na Operação Triunfo, cantou nos Expensive Soul, 11 anos a viver no Porto, o primeiro disco a solo “Eva”, como Dino, em 2013. Como é chegar a esse lugar com nome próprio?
Lá está, muita terapia que se liga a muito dinheiro investido. Esse é o grande mal que sinto a nível da saúde mental, e em qualquer terapia motivacional, paga-se muito.

Não há dinheiro público?
Não há apoio, não há dinheiro público, um psicólogo pelo Estado demora não sei quanto tempo. E penso na realidade dos bairros. Esse é o meu projeto para o futuro. Quero mesmo conseguir fundos para oferecer esse serviço às comunidades, que não são minorias, são uma grande maioria nas populações. Quero mesmo conseguir e sei que consigo. Estamos aqui, na Gulbenkian. O Jardim de Verão da Gulbenkian foi um desafio do António Pinto Ribeiro, juntamente com a exposição “Europa Oxalá”, de ter somente corpos negros no cartaz. Quando desafiei os artistas, abraçaram logo, foi bonito ver este jardim com tanta gente. Finalmente esses afrodescendentes tiveram o prazer de ouvir artistas que saem desses bairros, que muitas vezes só eram ouvidos em lugares privilegiados, em sítios onde esses corpos achavam que não tinham o direito de entrar.

Dino com os pais que vieram de Cabo Verde para Quarteira no pós 25 de Abril

Trazer a periferia para o centro?
A periferia não acredita que pode estar nesses lugares. Ainda hoje. Acham que não têm roupas para ali estarem. Felizmente já há muita gente a estudar, a formar-se, e que depois vai para aqueles bairros trabalhar, como o Moinho da Juventude que faz um trabalho incrível, o Marfox faz um trabalho incrível na Quinta do Mocho. Então há artistas, mesmo que vivam noutros lugares, que vão a esses sítios e levam a mensagem. Eu faço o mesmo em Quarteira.

Escreveu, cantou e mostrou uma Nova Lisboa, multicultural, diversa. As margens estão cada vez mais estreitas?
Estão cada vez mais estreitas para quem vive nas margens. Já acreditam mais. Há uma crença de que realmente este é um lugar nosso também, que pertencemos a este lugar porque pagamos os nossos impostos, porque votamos, então temos direito a este lugar por mais que nos façam sentir de forma diferente. Já há mais pessoas empoderadas nesse sentido, que não têm vergonha de dizer. Quero chegar a um momento em que só sou o Dino, sem prefixos nem sufixos. Só quero ser o Dino, não tenho de carregar menires atrás da minha cultura. Senão quando vou poder desfrutar disto? Há pessoas que só são artistas e não têm de estar a levar bandeiras, vivem o privilégio de só serem artistas.

É um homem de causas?
Sou um homem da minha causa. Não precisei de inventar uma história, não precisei de criar um personagem, não precisei de dizer que era o maior. Não sou o maior em nada, sou o maior para mim mesmo. Todos os dias, tento me superar e as coisas estão a acontecer de forma natural. E isso é bonito e é bonito teres uma equipa que consegue capitalizar o que tu és. Tive de lutar com as minhas estruturas, eu sou assim, não tentem dizer-me faz isto, faz aquilo, porque sou assim. Dino, cuidado com o que dizes. Dino, cuidado, não fales de cenas políticas. Cresci a ouvir isso, lutei e paguei muito para sair desse lugar, para os meus terapeutas me tirarem desse lugar. Quero ter a liberdade de dizer “eu vou votar nesta pessoa”. Aconteceu-me na altura da presidência, havia a questão não votem no Chega, mas ninguém dizia em quem votar, toda a gente dizia o Marcelo vai ganhar na boa. Ok, o Marcelo vai ganhar, mas há uma segunda pessoa que se calhar vai estar aqui, se não alertarmos que há outros. E eu disse voto na Ana Gomes.

Não é a politização do discurso?
Não. Ao dizermos em quem não votar estamos a projetar precisamente o que vai acontecer, de tanto dizermos não votem neste, este é o nome que está a ficar na cabeça das pessoas.

O crescimento da extrema-direita preocupa-o?
Não me preocupa, abomina-me. Mostra-me onde estamos e, ao mesmo tempo, é o reflexo do que somos. Eu não sou alheio a isto, faço parte desta equação, não estou à margem disto. Faço parte deste grupo de seres que estão a decidir que o Mundo tem de ir mais para a direita. Porquê? Porque as pessoas estão saturadas de serem neutras e então é o tudo ou nada. E, infelizmente, nesse tudo ou nada, quem tem a melhor máquina de comunicação continua a ser a extrema-direita. Por isso é que eles estão a conseguir furar tanto porque a esquerda não está unida, está extremamente dividida, cada um a querer construir o seu castelo e a dizer que é mais de esquerda. E, com isso, os de direita, e não são tantos os partidos, estão a conseguir unir-se, mesmo que disfarçadamente digam que estão desunidos, mas entre portas fechadas estão unidos. Se não temos cuidado ao olhar para esse cenário e dizer que a abstenção ou votar em branco não é nada, é um manifesto, sim, mas mostra o que somos neste momento. Somos uma geração de nada, sem valores, de velhas crenças, uma geração que não tem empatia, não tem qualquer compaixão. Olhar para o Iémen, para o que acontece em África, na América Latina, na Ásia, e mudar de canal. Ou ver aquelas mortes todas, ou as atrocidades que acontecem, e desresponsabilizar-se. Finalmente, provámos, com o que está a acontecer na Ucrânia, que quando queremos, juntamo-nos e ajudamos de verdade. A Ucrânia, para mim, é a prova máxima de que conseguimos mobilizar todas as nações em prol de uma causa. Então porquê fingir que os outros não existem ou que não é connosco? Consigo ver a máquina e perceber o que faz uma União Europeia que disponibiliza 200 milhões, ou não sei quanto dinheiro, numa primeira semana em armamento, e silencia-se perante aqueles assassinatos na fronteira de Marrocos, aqueles corpos negros pisados. Eu a ver essas agendas todas e o que posso fazer mais a não ser escrever. Tenho só de fazer a minha parte.

Dino com a avó que o inspirou no disco “Eva”

Escreve e canta “Nossos corpos também são pátria”. Tem esperança?
Muita. Felizmente, as novas gerações são a minha esperança. Estou a investir tudo o que tenho, como ser, para fazer com que a mensagem chegue a eles. Quando vejo os miúdos nos meus concertos, ganho ânimo. Tenho imagens em Ferreirós do Dão, uma terra com 410 habitantes, ali, em Viseu, de uma miúda, eu digo “minha nação é crioula”, e ela de braço levantado aos ombros do avô, nem sei se era avô. Há esperança. Ir ao Chefs on Fire e os miúdos pedirem-me para cantar “Como Seria”. Ver um puto cantar a letra do Esquinas em crioulo e em português do início ao fim ao ombro da mãe.

Foi preciso perder um bocadinho de medo para cantar em crioulo?
Muito, muito. Para já, o preconceito de ter nascido cá e sentir que me estava a apropriar do crioulo, até me sentir 100% crioulo e 100% português foi um processo gigantesco. Achava sempre que tinha de ser 50/50. E não. Tenho as minhas raízes bem firmes quer num lugar, quer no outro, tenho as minhas inspirações quer num lugar, quer no outro. Quando vejo o Eusébio e a Amália, estou no meio desse lugar, sinto os dois da mesma forma.

O racismo. A associação SaMaNe – Saúde de Mães Negras tem um inquérito online para mulheres negras e afrodescendentes. Contam-se histórias de negação ou o retardamento da analgesia pela ideia preconcebida de que as mulheres negras têm muitos filhos e são mais tolerantes à dor, além de abusos verbais. Racismo obstétrico. O racismo tem camadas que desconhecemos?
Se as pessoas soubessem as várias camadas que há de racismo, da subtileza…que eu próprio não sabia, eu fazia parte deste sistema, não me via na pele, até vir para Lisboa e ir para o Porto. Aí já comecei a perceber. Chegar à estação da Batalha e estarem vários táxis parados e nenhum querer levar-me e a desculpa era sempre a mesma: “estamos à espera de uma pessoa”. Até haver um taxista que, passados mil anos, me disse “sabe, quando estamos estacionados aqui, somos obrigados a transportar, nós não podemos esperar ninguém numa praça. Da próxima vez, anote a matrícula e denuncie à polícia, isso dá direito a multa”. Depois vim para Lisboa e aconteciam cenas que não acreditava, estares ali, em frente ao Mercado Time Out, estenderes o braço para um táxi, ele não pára. Dizia a uma amiga portuguesa, chama, depois experimentei com um amigo caucasiano, para não ser só aquela coisa é porque é mulher, e os táxis paravam. Bateres de frente com isso. Comecei a ser muito atacado pela comunidade de ativistas negros. Achavam que romantizava demais por acreditar que Portugal é um país crioulo, um país de mistura. E não me conseguem tirar isto de dentro. Os Estados Unidos espirraram a questão do racismo e o resto do Mundo ficou constipado e não se contextualizam as coisas. Ser afroamericano é uma coisa, ser afrobrasileiro é outra coisa, ser afroeuropeu é outra coisa completamente diferente. É uma tríade completamente diferente, são histórias completamente diferentes, apesar da tez ser a mesma. Então aprofunda-te na História, tenta perceber o teu contexto, e age consoante o teu contexto, não tentes americanizar e tornar o racismo pobre. Vai ao fundo da questão, às associações, percebe o que está a acontecer em Portugal ou no país onde tu estás, e tenta servir a causa, servir esse propósito.

Como se desenrola o processo criativo? Como nascem as músicas?
Absorvo muito o momento presente. Quando estou presente, estou, vivo a pessoa. Quando estive muito tempo com a minha avó, escrevi o “Eva”, o meu amuleto para conseguir perceber, “olha, Dino, vais dar um salto no escuro”. Estava bem, mas senti que precisava da minha voz. Vivo tanto o momento que escrevo sobre o momento.

Sem saudade do passado, sem olhar para o futuro?
Nada. Estou atento ao Mundo, ao que me rodeia, sinto-me parte de todas as partes de todos os continentes. Vejo muitos documentários, viajo muito, sinto que sou muito fruto das minhas viagens. Consigo perceber onde há fragilidades só pelas viagens, entras num estádio de futebol e percebes logo como é que aquele povo é. É nas situações mais mundanas que me apercebo do lugar onde estou. Quando digo que Lisboa é a capital mais crioula da Europa é por sentir na pele. Aqui conseguimos encontrar mistura, vemos tudo misturado, uma mistura que é tão natural que já nem apercebemos. Chegas a outras cidades no Mundo e ninguém se mistura. Ok, vocês são conhecidas como as cidades mais multiculturais, existe um multiculturalismo, mas não existe aculturação nenhuma. Aqui não. Temos também lugares em Portugal onde corpos negros não entram, mas a música está lá para fazer o pessoal gingar.

Os discos, as nomeações, os prémios em catadupa, os concertos. Como digerir toda essa avalanche?
Em 2019, recebi GQ Man of the year em Portugal. Mal o recebi e estava a dizer: “man, de eu onde venho, o meu pessoal diria simplesmente ‘GQ? F*****”. E esse f***** é mesmo a expressão que, muitas vezes, tenho dentro da minha cabeça. Não há outra. Fico à volta desse f***** porque vêm todas as imagens: eu trancado dentro da minha casa, as redes das moscas eram as nossas janelas, não havia janela de vidro. Quem cresceu comigo sabe o que está a acontecer. O cheiro da vala entrava pela nossa casa adentro. Foram muitos sofás, muitas portas que se abriram no Porto, fui muito abençoado, tive amigos de verdade. A mãe do Sam The Kid dava-me cama para dormir, a mãe do Virgul dava-me cama para dormir. Todos deram-me um sofá e uma cama para dormir quando parti para a aventura. E continuo a ter casas em todos os lugares. Tudo o que tem acontecido, tenho vivido na plenitude, mesmo no Lucas. Sou só observador, a minha criança interna tem tantas castrações que ia deseducá-lo, ser mais um dependente da opinião dos outros, só se achar merecedor ou bonito se alguém lhe disser. Eu vejo o Lucas e estou ali, ok, estou-te a topar, e reconheço-me ali, na rebeldia, não o chamo a atenção, e quando é para dizer alguma coisa é uma conversa, mesmo sendo puto.

Dino com o irmão mais novo, Elísio

O diálogo musical com Madonna, esse encontro, mostrar-lhe a diversidade e os ritmos africanos em Lisboa, mudaram alguma coisa?
Mudaram tudo. Sempre senti que Portugal era especial, especialmente Lisboa no sentido de sentir que o caldeirão, aquela cachupa ou aquela feijoada, está à distância de um telefonema – é mais pela proximidade de em segundos estarmos em Moçambique, em São Tomé, na Guiné. Ela viu-me cantar, abraçou-me e agradeceu. A partir daí, todas as semanas mostrava-lhe coisas novas, do mais tradicional ao mais eletrónico, ritmos diferentes. Viveu aquilo tudo, mandou os produtores virem, iam gravando as festas e, afinal, já estavam a preparar um novo disco.

Mantêm o contacto?
Sim. Existe um antes e um depois dela, não em mim, enquanto ser, mas em mim na forma como o exterior me passou a olhar. Todos os meus amigos já me conheciam em estúdio, a velocidade com que gravo, a minha forma de conectar pessoas. O que é certo é que a visibilidade que ela tem, ir ao Jimmy Fallon e dizer fiz este disco graças a esta pessoa, ir a Londres, num dos programas mais famosos de Inglaterra, e dizer o mesmo. Para mim, foi uma grande aprendizagem. Esta pessoa é o que é, mas sabe o nome de toda a gente que trabalha com ela. Chegou ao coliseu, em pleno inverno, e meteu aquecedores em todos os pisos, não só no dela, para toda a gente trabalhar confortavelmente, e foi visitar cada piso. Foi a minha aprendizagem, estares em cima do que é teu, perceberes se toda a gente à tua volta está bem.

Festa do Avante. O seu pai ainda perguntou se tinha a certeza de ir e foi ao Avante.
Nem consigo chamar-lhe concerto, foi o momento mais importante da minha vida, enquanto artista.

Como assim?
Fui para o palco mesmo a sentir. Posso não concordar com o que tu pensas e sentes, mas hoje vou morrer para que possas pensar e sentir assim. Senti mesmo. Se tivesse de morrer ali, morria a sentir que cumpri-me enquanto ser porque não tive medo e foram tantas as vozes e as correntes à volta a dizerem-me o contrário. Não, eu já não vivo nessa escravatura mental, eu sei o que isto representa, eu sei que o Avante, para mim, representa a liberdade. Se quiserem trazer um lóbi político, não é a minha praia, vão falar com outros. Este palco e as pessoas que estão à minha frente defendem o mesmo: liberdade. Saí do palco e chorei quase durante 20 minutos no camarim. Sinto que libertei muita coisa, sinto que fiz as pazes com quem eu sou, aquelas pessoas todas a gritarem “Dino, Dino, o povo está contigo”. Deus queira que consiga viver outro momento assim, houve uma plenitude, não senti o meu corpo de início ao fim. Mal cheguei, estava um rapaz com uma bandeira do Paquistão. Há muitas lutas, não me tentem colocar num sítio. Ok, agora vocês lembraram-se porque é Europa e está a acontecer aqui, mas o Mundo está a chorar há muito tempo, então não digas que as tuas lágrimas são mais valiosas do que aquelas.

Fama é uma palavra que assusta?
Hoje não me assusta. Muitas vezes, achas que a fama dá aceitação e podes iludir-te no caminho. Comecei a perceber essa agenda nos artistas e percebi, não, tem de haver uma forma de provar que não precisas de ir por esse caminho, que a fama é uma consequência do teu trabalho, a fama não pode ser um caminho que tu procuras. Não me deslumbro facilmente, já me deslumbrei com paisagens ou com a arquitetura, vês o que o Gaudí fez na Sagrada Família e pensas como é que um ser humano consegue idealizar isto com tantos problemas psicológicos. Deslumbro-me com a autossuperação no meio de tanta crise interna. Vejo muita gente a cantar em crioulo, branco, português, e isso deslumbra-me, vi uma miúda cantar “Mundu Nôbu” e a chorar, comecei logo a chorar também. Se morresse hoje, “Mundu Nôbu” é a canção que queria que ficasse. “Vim de longe, mas não sou estrangeiro. Fui para o estrangeiro, mas eu não sou estrangeiro.” Ninguém é estrangeiro, este Mundo é nosso, as fronteiras foram criadas por nós, temos de ser nós a destruí-las.

E, agora, quais as expectativas como mentor do The Voice?
Não saber dizer que não, pensar no que as outras pessoas vão pensar, o merecimento, toca em todos os fantasmas. E então perceber que mereces ficar com quem tu queres. E ali é imediato, não há tempo, viras a cadeira e já tem de acontecer. Estou a pedir muita sabedoria nesse momento, rezo, peço permite-me só que eu saiba guiar-me muito pela minha intuição. Não importa se eles virarem se eu não sentir, não vires porque eles viraram, nem não vires porque eles não estão a virar. O facto de escolher alguém não significa que se está a rejeitar outra pessoa. Isso é a projeção. E eu penso no meu caminho. Foram mais as portas que se fecharam do que aquelas que se abriram.

Sente-se um homem livre?
Cada vez mais livre e sem sentir que o meu voo assombra alguém. Sinto que voo em busca do meu melhor. Sinto-me livre no poder de me expressar, já não sinto bloqueios e receios de ferir suscetibilidades. Sabendo que sou muito imperfeito em muitas cenas e que preciso crescer muito. Sinto que tenho de melhorar.