Diagnóstico diferencial
Rubrica "Pai aos 50", de Joel Neto.
Nenhum filho escolhe um clube de futebol para exercer a liberdade. Quando muito, escolhe-o para afirmar a liberdade, o que já pressupõe essa urgência.
E, entretanto, teremos sempre o futebol. Ou por outra: teremos o Sporting. Desde logo para que, não havendo mais sobre que nos ocorra conversar – nem durante uma tarde, nem nos cinco minutos em que ele venha à cozinha buscar uma fatia de piza para levar para a sua caverna -, consigamos ao menos fingir.
A Marta ri-se: e se ele quiser ser do Benfica? Ou do F. C. Porto? E eu perdoo-lhe, porque não sabe do que se ri. É rapariga, é gregária, é a filha única com a qual os pais comunicaram sempre, e ela com eles. E, além disso, é ímpia. Mostro-lhe um golo de Balakov, serpenteando em desequilíbrio por entre o exército que o persegue, e não consegue sentir mais do que um interesse científico, dos domínios da biomotricidade ou (vá lá) da antropologia.
Só que ouço-a e não deixo de sentir um calafrio: e se o meu filho decidir mesmo ser de outro clube? E se o meu filho for do Benfica? É capaz de haver tragédias maiores, mas agora não me ocorre nenhuma. Porque não importa o nome. Os clubes de futebol, já se sabe, não significam todos a mesma coisa, nem têm todos a mesma dimensão estética, nem carregam todos a mesma carga política. Mas muito mais importante do que aquilo que cada um represente é que pais e filhos se façam representar pelo mesmo.
O contrário só como doença já é grave. Pais e filhos que escolham clubes diferentes podem de facto não chegar a divisar outra coisa em torno de que erguer um diálogo, a camaradagem de um almoço de domingo que ameaça descambar ou sequer uma frequência à parte para uma ceia de Natal com aqueles familiares de que ninguém tem saudades mas vêm de uma perda qualquer. E como sintoma é mais grave ainda.
Vamos a ver: nenhum filho escolhe um clube de futebol para exercer a liberdade. Quando muito, escolhe-o para afirmar a liberdade, o que já pressupõe essa urgência.
Entretanto, ninguém se decide a não ser em favor do pai ou contra ele. Ou lhe estende o braço, ou lhe vira as costas – em busca desse lugar que lhes pertence aos dois, e onde poderão encontrar-se quando tudo o mais falhar; ou em fuga desse lugar que afinal é só do pai, e que este nunca partilharia verdadeiramente com ele, ou porque já o faz com outra pessoa – talvez outro filho -, ou porque, pior ainda, é incapaz da partilha, a não ser enquanto monumento ao seu egocentrismo, à sua neurose ou à sua paranóia.
Eu não quero ser esse pai. Espero não ser esse pai – morro de medo de ser esse pai. E, não o sendo, o mais provável é que o meu filho saia sportinguista. Isto é: um sofredor. Um estóico. Mas com alguém com quem dividir esse sofrimento (e a presunção desse estoicismo): o seu pai, nem mais. Esse a quem um dia, perante o psicanalista, poderá até (são só vantagens) culpar por tudo.
Se fosse menina, claro, era mais fácil: gostava de ginástica e, de resto, mantinha-se como a Maria dos Capareiras, indecisa entre o Benfica e o Sporting porque coitado do pai e coitada da mãe. Sendo rapaz, só nos resta que goste – sei lá – de voleibol. Até podia dar jeito: que preferisse o voleibol, ou a música de Telemann, ou as cores pastel. Sempre era melhor do que benfiquista.
(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)