Margarida Rebelo Pinto

Desordem e entropia


Rubrica "A vida como ela é", de Margarida Rebelo Pinto.

A pobreza é mãe da fome, que leva ao assalto, ao saque e ao ódio. Neste momento, é o ódio que divide o Brasil.

“Os escritores entram pela porta pequena, debaixo da mesa, a ver que migalhas caem no chão e a sentir o que vivem aqueles que se alimentam das migalhas”, disse Lídia Jorge numa entrevista recente. O olhar do escritor sobre o Mundo não é o de um economista, de um politólogo, ou de qualquer outro técnico da realidade. Posto isto, não pretende esta crónica ser uma visão objetiva do que se passa no Brasil, mas levar-nos a refletir sobre as causas e as consequências do caos polarizado e instalado no nosso país irmão, dividido a ferro e fogo por duas figuras polémicas. Uma piada triste sobre o Brasil diz que é o país do futuro, porque o futuro ainda não aconteceu. A clivagem social sempre foi uma triste bandeira; de um lado os ricos e privilegiados com fazendas, gado, indústrias, barcos, coberturas, helicópteros e ilhas, e do outro, os pobres desfavorecidos de chinelo no pé que vivem no morro, na periferia ou no mato. O Rio de Janeiro é o retrato vivo e fiel disso: por detrás de cada bairro de classe média (se é que alguma vez existiu), ergue-se um morro sobrelotado de novos e de velhos, no qual gente honrada e bandidos vivem sob o mesmo teto. Erguido em betão selvagem onde tudo é clandestino, a música que transpira das janelas pequenas nada tem de bossa nova, é um grito de revolta. O contraste entre o morro e a pista, nome dado à zona chique da cidade, onde o cenário se desenha plano e arrumado, é o espelho do abismo da desigualdade social e da pobreza institucionalizada. A pobreza é mãe da fome, que leva ao assalto, ao saque e ao ódio. Neste momento, é o ódio que divide o Brasil.

Bolsonaro, que mais parece um personagem de uma série B dos anos 1970, é um tosco sem preparação, um ex-militar reacionário, um nacionalista torpe sem idealismo nem mérito, sem carisma nem humanidade. Lula, por seu lado, é um repetente cuja sombra da corrupção é aliviada pela comunicação social, o bom malandro das medidas assistencialistas, para uns um perigo, para outros o salvador da democracia. Um herói dos anos 1980 com laivos de Che Guevara, quando estamos em 2022. Se um é insensível e egocêntrico, mais preocupado com o desempenho económico do seu governo do que com as consequências da pandemia na população, o outro tem as graças do povo sofrido na mão, apesar do lastro de desgoverno que deixou atrás de si.

Voltando à Cidade Maravilhosa, a única que conheço relativamente bem, em trinta anos vi duas obras serem executadas na zona sul: o prolongamento da linha do metro até à Barra e uma ciclovia com a mesma rota, que fechou poucos meses depois de abrir, por causa de uma derrocada e dos assaltos. Durante décadas, os moradores tentaram que a linha não avançasse, porque não queriam pobres na sua praia, os mesmos que lhes limpam a casa, lhes lavam as retretes, que cuidam dos filhos deles. O saudoso e genial Paulo Gustavo tem um personagem fabuloso, a Senhora dos Absurdos, uma velha rica do Lebon que, do alto da sua cobertura elitista, dá a sua visão do Brasil. Vale a pena ver alguns sketches para tentar perceber um pouco melhor o povo a que chamamos irmão, filho de um outro pai, criado à solta, descendente de escravos traficados, de portugueses aventureiros e de refugiados de muitas guerras. Migalhas de um todo complexo, confuso e contraditório, onde apenas está claro o ódio, cada dia mais gritante, que divide estados e famílias.