Déjà-vu ou a arte do cérebro nos enganar

“Um déjà-vu é uma sensação de familiaridade para com um episódio que ainda não foi vivido”, explica Pedro Albuquerque, docente da Escola de Psicologia da Universidade do Minho

Se nunca a sentimos, já dela ouvimos falar. É a sensação de que já se viveu algo quando, na verdade, é a primeira vez que nos acontece. Não faltam teorias, mas nada de certezas. Uma espécie de mistério. Como e por que razão somos induzidos em erro?

O Mundo é virtual e nele vivem presas personagens. Antes de subir umas escadas, Neo detém-se ao olhar para o corredor. Está a passar um gato preto que, por um instante, fica parado. Abana-se. A cena repete-se de seguida. E a personagem é invadida por uma sensação de desconforto. Tem certeza que já viveu aquilo. “O déjà-vu é uma falha na Matrix”, apressa-se a explicar Trinity, que segue à sua frente.

O filme é de ficção, mas o pressentimento é bem real e, provavelmente, muitos dos que estão a ler este artigo agora já o sentiram: achar que estão a vivenciar de forma repetida um momento quando, na verdade, ele está a acontecer pela primeira vez.

A explicação pode também parecer fruto da imaginação do realizador de “Matrix”, filme de 1999, mas há até um pouco de verdade quando se associa um déjà-vu a uma falha. Uma falha do cérebro. Pelo menos essa é uma das teorias que se pode encontrar na ciência, ainda que não seja consensual. Tal como no conhecimento de quase todas as partes do cérebro humano, são mais as dúvidas do que as certezas. Mas já lá vamos.

Questionado sobre a definição correta de déjà-vu, Pedro Albuquerque, da Escola de Psicologia da Universidade do Minho, socorre-se do teórico Neppe, que afirmava que – e é preciso ler isto pausadamente – esta era uma “impressão inapropriada de familiaridade de uma experiência vivida no presente, mas com um passado indefinido”. Por outras palavras, simplifica Albuquerque, é uma “sensação de familiaridade para com um episódio que sabemos não poder ter sido vivido antes”. A base está feita, passemos às explicações.

“Quase todas as teorias se focam na ideia de que o déjà-vu é consequência de uma disfunção”, começa por afirmar a psicóloga Marta Martins Leite. Uns cientistas falam de uma sobreposição no processamento do que está a acontecer. Ou seja, o cérebro, ao mesmo tempo que está a gravar a nova memória, tenta aceder-lhe. Dá-se um conflito. Outros especialistas acreditam que se trata de um erro “do sistema”, quase como se a sensação de déjà-vu fosse um aviso do cérebro de que houve uma falha nas ligações que foi corrigida – tal como acontece em “Matrix”.

Atraso na transmissão

Pedro Albuquerque aprofunda a temática, esclarecendo que “a explicação mais consensual entre a comunidade é que acontece por um atraso na velocidade normal de transmissão neuronal”. “É como se pudéssemos guardar uma imagem da cena visual que estamos num determinado momento a ver e só milésimos de segundo mais tarde ‘tomássemos consciência’ de que a estamos a viver.” Ver e “tomar consciência”, diz, “ocorrem em simultâneo”.

Mas, quando há um desfasamento como o descrito por Pedro Albuquerque, este “gera no nosso cérebro a ideia de familiaridade para com a cena visual”, dando-se um déjà-vu. No momento, poderão ser pressentidas sensações de perplexidade, espanto, confusão mental, ansiedade ou de um certo vazio. Pode chegar a haver tonturas, desequilíbrios ou uma ligeira dor de cabeça.

O termo francês, que significa “já visto”, “aparece nos finais do século XIX, porém o seu uso comum ocorreu muitas décadas depois, já em meados do século XX”, relata o especialista e coordenador da equipa de investigação em memória humana da Universidade do Minho. Realça ainda que a sensação descrita “já teve pelo menos 17 designações diferentes, incluindo ‘paramnésia’, o que sugere, desde logo, que o fenómeno parece ser um problema de memória”.

O interesse por estudar o fenómeno começou, principalmente, nos Estados Unidos, quando, por volta dos anos 1940, um estudante que se sentia constantemente a viver no passado começou a “estudar-se”. Cada vez que tinha um déjà-vu, apontava num bloco. Chamava-se Marton Leeds e o seu caso foi estudado por diversos investigadores na área. Sempre sem grandes conclusões.

A única certeza que Marton e outros cientistas que seguiram o caso conseguiam ter é que os momentos de tensão aumentavam a frequência desta sensação. Quanto mais ansioso Marton estivesse, mais déjà-vus aconteciam.

De entre todas as dúvidas que ainda cercam a temática, esse é um dos únicos fatores que geram consenso. O déjà-vu está ligado às emoções. “As emoções podem espoletar pequenas lembranças, pequenas conexões, que levam a essa sensação”, prossegue Marta Martins Leite. Como? Em parte, sabemos a resposta.

Tiago Oliveira, neurocientista da Universidade do Minho, salienta que “as áreas do cérebro importantes para a formação de memórias estão também envolvidas na regulação das emoções”. Daí a ligação entre uma desregulação ou intensificação emocional e o aumento do número de déjà-vus ocorridos.

O fator idade

Mas há mais que já se sabe: os jovens são mais propícios a ter esta sensação de “repetição”. Ao longo da vida, os déjà-vu vão diminuindo, porque “a atividade cerebral vai diminuindo”, argumenta Tiago Oliveira. A lógica é a mesma do stress: quanto mais o cérebro trabalha, mais hipóteses há de que haja alguma falha no processamento.

Existem ainda outras teorias, acrescenta Marta Martins Leite, para lá da ideia de “erro” ou “falha”. Há psiquiatras que acreditam que se trate de gatilhos internos ativados no subconsciente quando vivenciamos algo. Outros associam o déjà-vu a mentes criativas e inteligentes, “cérebros que não param”, e que, dessa forma, sobrepõem memórias.

No final, para a especialista, o importante é que esta sensação não afete a vida quotidiana. “Quando algo que nos acontece altera a forma como agimos é razão para alarme.” Caso contrário, nada indica que estas supostas pequenas “falhas” do cérebro tenham, num ser humano saudável, qualquer problema associado. Até porque não é um acontecimento raro, já que, segundo dados avançados pelo especialista Pedro Albuquerque, “é um fenómeno que cerca de duas em três pessoas experienciam, pelo menos uma vez, ao longo da vida”.

No entanto, a sensação de déjà-vu constante está por vezes relacionada com a epilepsia do lobo temporal, adianta Tiago Oliveira, da Universidade do Minho, “que leva a um aumento marcado da atividade de áreas do cérebro ligadas à formação de memórias”. O colega Pedro Albuquerque corrobora, acrescentando que “o déjà-vu pode, por vezes, ser um sinal, designado como ‘aura’ que indicia o surgimento de convulsões associadas a crises de epilepsia”.

Quer seja em “Matrix”, no filme “Déjà-vu”, no qual a personagem utiliza a sensação para viajar no tempo e impedir uma tragédia, ou na série “Russian doll”, em que uma mulher vive vezes sem conta o mesmo dia, o fenómeno está presente no imaginário popular. E talvez seja uma forma de nos sentirmos seguros, ao tentarmos tornar familiar algo que para nós é, afinal, novo.