Dead Can Dance
Rubrica "Cidadania Impura", de Valter Hugo Mãe.
Serei sempre o rapaz que teve por oração estas canções e que com estas canções concebeu seu mais íntimo imaginário. Seu mais perene imaginário.
Julgo que sermos a geração clara dos urbano-depressivos, habituados a uma dimensão museológica da cidade, consumada, deslumbrante e plena de memória, tanto quanto imóvel e envelhecida, nos fez contemplativos e bastante complexos nos sonhos. Fazedores de muita demora e comovidos com facilidade.
Era menino quando descobri os Dead Can Dance. Teria dezasseis anos e não sabia que a música podia ser ainda uma espiritualidade efectiva, sem ser uma missa convencional. Andaria lentamente a ser mudado pelos sons mais estranhos dos Current 93, mas que me pareciam pesadelos expostos, partilhados, aos quais assistia com o mesmo assombro com que via os filmes e depois tinha dificuldade em adormecer. Com os Dead Can Dance foi distinto. Lisa Gerrard, altiva, foi sempre diva cheia de pose e distância, junto de Brendan Perry, o lado humano da dupla, trazia uma outra homilia. Os seus discos eram, aos anos 1980, sagrados, sem mácula.
Ouvir Dead Can Dance passou a ser o lugar inteiro da alma. A disciplina de comoção e maravilha que me fazia crer que, embrutecidos num país pobre e numa cidade devoluta onde tudo fechava e se deitava ao abandono, éramos ainda gente. Valíamos como gente sensível, ainda que jamais tivéssemos destino ou salvação.
Era a trilogia “Spleen and ideal”, “Within the realm of a dying sun” e “The serpent’s egg” que viria a tornar-se o mais inabalável reduto da música de cariz popular na minha vida. Por mais que me eduque de Bach ou Vivaldi, Monteverdi ou Mahler, um nico de um qualquer destes discos faz em mim o efeito de um toque materno, um espaço de nutrição e identidade que me explica e submete. Não há força que afaste, que imponha esquecimento. Serei sempre o rapaz que teve por oração estas canções e que com estas canções concebeu seu mais íntimo imaginário. Seu mais perene imaginário.
Afinal, entre a ferida tremendista dos Current 93 e a liturgia dos Dead Can Dance me balizei. No tempo em que a fome era sobretudo pela revelação dos principais segredos, foi nesta assombração, como caverna de Platão, que afeiçoei minha vida e encontrei a possibilidade de sobreviver. Em certo sentido, por isto e por um punhado de poemas foi porque aceitei o contrato de ir vivendo, até que tanta outra coisa fosse posta à minha mesa. Até que tanta coisa fosse, finalmente, posta à mesa de um rapaz aflito como fui.
Vieram os Dead Can Dance a Portugal. São talvez uma sobra do que foram. Mas são a mais importante sobra de todas. Como uma possibilidade ainda de que algo celestial se manifeste nas suas vozes, nos seus corpos envelhecidos, na visita às composições que outrora pareciam mesmo fazer chegar ou recolher as tempestades. A maioria das chuvas, de qualquer modo, e como sempre, são cá por dentro. Nossas estações sucedem-se à força destas coisas. Livros e discos, filmes e alguns abraços. Duas ou três cidades. Dois ou três números de telefone. Enfim. Um ou dois números de telefone. Estava a ser ingénuo.
(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)