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De bestial a besta. Afinal, quanto leite podemos beber?

O debate entre o herói ou o vilão arrasta-se há mais de uma década

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Na última década, o consumo caiu a pique. Mas os especialistas são unânimes na defesa do seu valor nutricional. A dose faz o veneno, por isso a quantidade importa, o equilíbrio da alimentação também, para evitar excessos e malefícios.

Só nos últimos dez anos, o consumo de leite caiu em 11 quilogramas por habitante. E a indústria já tem vindo a assistir à queda desde 2008. As correntes que demonizam o leite tiveram forte impacto no setor, de alimento essencial passou a vilão, mas os especialistas parecem unânimes em dizer que é um alimento importante, desde que não haja intolerância ou alergia. “Há muitas dúvidas em relação ao leite, porque as pessoas têm uma grande necessidade de um posicionamento de oito ou 80, de sim ou não. E isto é um ‘depende’. O leite é um alimento muito interessante, fornece uma série de nutrientes que não é fácil ir buscar a outros alimentos com tanta disponibilidade. Mas se as pessoas não se sentem bem a beber leite, se são intolerantes, se não gostam, então não bebam”, sublinha Inês Pádua, nutricionista.

Para quem consome leite diariamente, o segredo, como em tudo na vida, é a moderação. Não há muitos anos, recorda Inês Pádua, “houve uma polémica quando se disse que o leite tinha sido retirado do ‘My Plate’”, o guia alimentar americano. “Na verdade, não. Só foi retirado da refeição principal, mas continua a ser mencionado ao pequeno-almoço e ao lanche. Isto porque nos Estados Unidos, e vemos isso em séries e filmes, é comum comer um hambúrguer e beber um batido, e essa recomendação veio dizer que nas refeições principais se bebe água.”

Mas, afinal, qual é a quantidade de consumo diário de leite aconselhada? “Ronda as duas porções de lácteos por dia”, aponta Catarina Sousa Guerreiro, coordenadora da licenciatura em Ciências da Nutrição da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa. Uma porção é o mesmo que dizer um copo de leite ou um iogurte ou duas fatias de queijo. Por exemplo, beber um copo de leite de manhã e comer um iogurte à tarde é o ideal.

O excesso nunca traz nada de bom e há especialistas que apontam que mais de três copos por dia já pode trazer malefícios. “Mas o ser de mais é algo muito relativo. Um indivíduo que não consuma nenhum outro tipo de proteína animal deverá porventura ter um maior consumo de lácteos face ao recomendado, assim como o indivíduo que não consome um adequado teor de cálcio oriundo de fontes vegetais”, explica Catarina Sousa Guerreiro.

“A dose faz o veneno. Existindo um consumo exagerado de alguns elementos, isso vai tornar-se um veneno”, garante Catarina Sousa Guerreiro, docente de Ciências da Nutrição na Fac. de Medicina da Univ. de Lisboa
(Foto: DR)

Ainda assim, “a dose faz o veneno”. “Demasiada proteína, demasiado cálcio, demasiada lactose, demasiada gordura saturada trazem prejuízos para a saúde. Existindo um consumo exagerado de alguns elementos, que não estão só presentes no leite, isso vai tornar-se um veneno.” Do colesterol ao risco de doença cardiovascular ou danos renais, as hipóteses são muitas.

Herói ou vilão, eis a questão

O debate entre o herói ou o vilão arrasta-se há mais de uma década. E Catarina Sousa Guerreiro é perentória: “Podemos beber leite, claro. Se devemos? Ao ser um alimento com um perfil nutricional muito rico, contribui para atingir as doses diárias recomendadas para vários nutrientes. Mas, se essas quantidades forem alcançadas por via de outros alimentos, não existe o ‘dever’ de beber leite.”

Comecemos pelos benefícios. De acordo com a nutricionista Inês Pádua, “o leite tem uma quantidade de cálcio muito disponível, o organismo consegue ir buscá-lo facilmente”. Além disso, é fonte de proteína e de outros micronutrientes como a vitamina A, B, D, B12, fósforo, potássio. “E tem o benefício da praticabilidade, porque é um alimento altamente versátil para inúmeros snacks e refeições do dia a dia”, acrescenta Catarina Sousa Guerreiro.

Gisele Câmara, nutricionista e investigadora do projeto “Papa bem” da Escola Nacional de Saúde Pública, ainda lhe soma mais vantagens. “Ajuda no controlo do peso e tem mais benefícios comprovados do que estudos que demonstrem o seu possível efeito nas principais causas de morte, como doenças cardiovasculares, diabetes, obesidade e cancro.”

Aliás, um dos aspetos que levou à demonização do leite foi a associação a alguns tipos de cancro. “Há estudos que associam o consumo elevado de leite ao cancro da próstata. Mas, em compensação, há investigação que demonstra que pode ser um fator protetor noutros cancros.” Para a mestre em saúde pública, a queda no consumo do leite é “motivo de preocupação”. “Principalmente nas crianças, porque podem estar prejudicar o seu desenvolvimento. O crescimento das crianças que consomem substitutos de leite não é igual ao das que consomem leite.”

“O leite tem mais benefícios comprovados do que estudos que demonstrem o seu efeito nas principais causas de morte”, reconhece Gisele Câmara, investigadora na Escola de Saúde Pública
(Foto: DR)

Então, e os malefícios? Um argumento muito usado por quem defende que os humanos não devem beber leite é o facto de sermos o único mamífero que o faz na idade adulta. Faz sentido? “Zero. Somos o único a fazer isso e muito mais coisas. Nem esse nem o argumento de estarmos a consumir uma matriz nutricional de outra espécie. Não o fazemos diariamente? Quando consumimos carne, peixe, ovos”, refere Catarina Sousa Guerreiro. No que toca ao lado menos positivo, é a intolerância à lactose o principal fator – à parte da alergia à proteína do leite – a pesar. E a investigadora Gisele Câmara esclarece que “existem populações que têm défice de lactase, a enzima que digere a lactose, o açúcar do leite, no organismo”. É o caso dos chineses, que “nunca consumiram leite na idade adulta e nunca desenvolveram isso no organismo, mas não é o caso da Europa, que não tem um tão alto grau de intolerância à lactose”.

Ainda assim, há uma fatia importante da população intolerante que ao beber leite tem sintomas como cólicas, distensão abdominal, diarreia ou obstipação. “E sabemos que, com a idade, acabamos por perder a capacidade de digerir a lactose e isso pode agravar patologias”, aponta Inês Pádua. Para lá disso, não há literatura que sustente a associação do consumo de leite ao risco de doenças gastrointestinais. Pelo contrário, até está associado a menor incidência de cancro do intestino.

Aliás, o perfil mais inflamatório do alimento entra nos argumentos das correntes anti leite. E há investigação que associa o consumo a estados inflamatórios da pele, ao desenvolvimento de acne. Só que esta associação, como outras, surge de forma contraditória em diferentes estudos. “O que as torna insuficientes”, avisa Catarina Sousa Guerreiro.

Da soja à bebida sem lactose

Para quem não tolera leite, as bebidas vegetais chegaram em força, mas não podem ser vistas como um substituto. “Já há boas opções, sem açúcares adicionados, enriquecidas em cálcio. É essencial verificar isso. Mas a única bebida que tem o perfil nutricional comparável ao do leite é a de soja. As outras, de aveia, arroz, amêndoa, e por aí fora, não têm o mesmo perfil”, assinala Inês Pádua.

“É um alimento muito interessante, mas se as pessoas são intolerantes, se não gostam, então não bebam”, explica Inês Pádua, nutricionista
(Foto: DR)

Nestes casos, o leite sem lactose, segundo Catarina Sousa Guerreiro, é mesmo a melhor opção. Isso e os iogurtes naturais. “Além do teor proteico, a lactose está parcialmente digerida. Sem falar do gigante potencial que têm na nossa microbiota intestinal.”

Já entre as pessoas que não gostam de leite, os vegetais de folha verde-escura devem entrar na alimentação, assim como o feijão, a amêndoa, os peixes com espinha como a sardinha. É o que diz Inês Pádua, que conclui: “Antes de o demonizarmos, é preciso pensarmos que o leite, além das vantagens nutricionais, é um alimento barato. E isto é muito importante para tanta gente no nosso país”.