Rui Cardoso Martins

Cuidado, Fátima!


Crónica "Levante-se o réu", por Rui Cardoso Martins.

A D. Marília vai ficar nos anais do crime, pelo menos nos meus, que já carrego na vida alguns quilómetros de arquivos judiciais. Poucas vezes vi tal discrepância entre o aspecto de um réu e a proporção dos seus actos. Isto, quando soube do que era capaz.

Atenção, a D. Marília não matou ninguém, que se saiba, mas a primeira imagem que me chegou ao cérebro, ao centro dos olhos da memória, foram aqueles velhinhos da máfia, como Totò Riina, de mãos trementes e olhos húmidos de estupefacção e cancro, quando a polícia o prendeu só porque durante décadas geriu o tráfico de droga, sequestros, assaltos, extorsões, assassínio de superjuízes italianos, e por ter como passatempo derreter os adversários em banheiras de ácido siciliano.

A D. Marília é de outra escala, mas com algum impacto, os meus parabéns. Extensíveis à sua sobrinha, trigueira jovem em fato macaco preto, farda eficiente para empurrar a pobre tia na cadeira de rodas. A D. Marília, de alguma maneira, fez na sala de audiências uma entrada triunfal de maleitas. Sentada, com a máscara no nariz, a cabeça à banda, os olhos assustados por baixo do algodão desfrizado dos cabelos rebeldes de velhice, as mãos de pardal em prece, a barriga inchada sobre as perninhas, o chiar da cadeira e os suspiros angustiados. Aos 72 anos, estava pronta para a sentença. Ou melhor, pronta para a decisão do tribunal sobre a sua mais recente iniciativa e do seu advogado, que a observava com carinhos protocolares, pedindo-lhe calma como um maestro de orquestra, como se também ele fosse da família. O processo era limitado ao assunto da possível instalação do sistema de vigilância electrónica em casa da D. Marília. Isto é, ela tinha pedido para cumprir a sua pena de prisão (já lá vamos) na habitação e não numa penitenciária, como anteriormente fora decidido. E também se haveria consentimento para, uma vez ficando em casa, poder estar acompanhada.

– A senhora lembra-se que foi feito um julgamento a que a senhora não compareceu e…

– Eu, eu, eu… gemeu a D. Marília.

– Pois, mas agora ouve, se faz favor. Feita de novo a audiência de julgamento, a senhora juntou até uma declaração das pessoas que vivem na mesma casa e que consentem que seja instalado o equipamento e que a senhora cumpra a pena de prisão na sua residência.

Isto é, ponderados os factos, incluindo a situação económica e, o que parecia evidente, a fraca saúde da D. Marília, e tendo esta “sido condenada pela prática de um crime de furto na pena de 18 meses de prisão”, ia mesmo cumprir a pena em casa ao lado do marido, do filho e da sobrinha.

– Sendo controlada por meios técnicos de controlo à distância.

Aqui, o desfasamento imagético da arguida, a cadeira de rodas, os braços magros, soavam estranhos à tecnologia moderna. O advogado estava feliz, a sobrinha esfuziante, e a própria não sei dizer, escondida pela máscara. Iniciaram-se as manobras de marcha-a-ré da cadeira, que agora iam oleadas com a felicidade, quando o advogado levantou o dedinho.

– Sôtora, diga-me uma coisa: isto é já a partir de agora ou temos de esperar que…

– Tem que se instalar o equipamento, disse a juíza.

– Ó sôtor, acrescentou a procuradora da República, mas ainda temos o trânsito em julgado, tem ainda esses dias.

– É isso mesmo, alegrou-se o advogado, é que ela estava a falar que queria ir a Fátima…

Ainda pode ir a Fátima agradecer coisas, enquanto a sentença não for definitiva. E assim saiu a D. Marília para a sua peregrinação de agradecimento ou expiação. Como percorrerá o caminho, os últimos metros no santuário até à estátua da Virgem?

Isso não me compete. Mas quanto ao que falta saber, fiz o meu trabalho. A D. Marília pertencia (pertence?) a uma quadrilha de três mulheres que furtava lojas de roupa. Quando era apanhada, batia nas lojistas e nos vigilantes. O seu cadastro tem 28 folhas, dúzia e meia de – cadastro oficial – “roubo, coacção, violência.” A última vez que a apanharam foi há dois anos. De súbito, AVC.

Avé Maria, cheia de graça.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)