Não se trata de poupar ou ser forreta, é bem mais sério e problemático do que isso. Não se pagam contas, não se compram bens essenciais. Há um nome técnico para esta fobia específica que é uma perturbação de ansiedade. Crometofobia. A questão não é ter dificuldades financeiras, mas um pavor exagerado que complica o dia a dia.
A imagem do Tio Patinhas, o pato mais rico do Mundo, a mergulhar, a banhar-se ou a andar de barco por entre milhões de moedas e sacos de notas, guardados a sete chaves na sua caixa-forte, não chega para descrever ou explicar esse medo extremo de gastar dinheiro, ou tratar assuntos relacionados com dinheiro, chamado crometofobia. Não é um transtorno mental, reconhecido clinicamente. É uma fobia rara, específica, uma ansiedade excessiva, desproporcional ao perigo que, de facto, existe. Nada tem a ver com a capacidade económica, nem com ser poupado, sovina ou forreta. Não é isso.
Como fobia é, portanto, um medo exagerado e irracional, não objetivo, inexplicável. Gastar dinheiro? Nem pensar. Deixa-se então de pagar contas, acumulam-se dívidas, não se compram coisas básicas e essenciais ao dia a dia. O impacto é tremendo. Esse medo desproporcional de gastar dinheiro significa angústia, comportamentos incompreensíveis, questões emocionais, pensamentos negativos. Uma aversão que pode até manifestar-se no corpo. Falta de ar, suores, dores musculares, diarreia, aumento da tensão arterial, náuseas, taquicardia.
É uma fobia específica que é uma perturbação de ansiedade causada por um fator em concreto. O dinheiro, neste caso. “O facto de ter de gastar dinheiro começa a despertar muitos sintomas de ansiedade e até se evita gastar dinheiro, não tem nada a ver com ser forreta”, refere Miguel Ricou, psicólogo, presidente do Conselho de Especialidade de Psicologia Clínica e da Saúde da Ordem dos Psicólogos Portugueses. Ser poupado ou forreta está relacionado, por norma, com a educação que se teve. Ter medo de gastar dinheiro é outra coisa.
Miguel Ricou avança com uma analogia. Alguém que tem medo de cães, não consegue estar ao pé do animal, aquela sensação de mal-estar. “Não é medo do cão, é medo do que se sente ao estar ao pé do cão.” “Não é gastar mais dinheiro do que se devia gastar, é não gastar para evitar sentir-se mal”, repara. O que pode levar a que assim seja? “Situações, muitas vezes traumáticas”, responde. Sim, episódios que não se esquecem, marcas que ficam, seja um contexto de grande escassez económica, ou histórias de fome e de restrições dos antepassados, pais ou avós, seja a perda repentina das suas posses. Sara Ferreira, psicóloga e psicoterapeuta, chama-lhes “gatilhos a partir de experiências negativas e traumas em relação ao dinheiro.” Não se quer gastar dinheiro, dê por onde der.
Há casos, sustenta, em que se cancelam seguros de saúde, vende-se o carro ou outro património com medo de perder o emprego e ficar sem trabalho, logo, sem meio de subsistência. “Mesmo que isso não corresponda a uma perspetiva, a um cenário real”, comenta. É sofrer por antecipação com algo que pode não acontecer.
“Outro sintoma são pensamentos associados a estados depressivos e de ansiedade relacionados com dinheiro. No aspeto cognitivo, pode desenvolver pensamentos negativos ou ideias irracionais sobre dinheiro, sentindo-se impotente para controlá-las”, refere a psicóloga. Trata-se, na verdade, de um fenómeno pouco estudado e raro em níveis extremos. Ainda assim, preocupante. “Mesmo em níveis moderados pode afetar significativamente a pessoa, aumentar o seu isolamento social e afetar os que estão ao seu redor”, afirma Cristiana Cerqueira Leal, professora da Escola de Economia e Gestão da Universidade do Minho e investigadora do Núcleo de Investigação em Políticas Económicas e Empresariais (NIPE) da mesma universidade, que trabalha na área da literacia financeira e comportamento do investidor. Crometofobia não tem, portanto, muita projeção. “É algo muito menos visível que, por exemplo, o consumo compulsivo, mas sendo ambos perturbações de ansiedade, poderão ter até fatores espoletadores idênticos”, acrescenta.
Se um sofre, toda a família sofre
Pedro Martins, psicólogo clínico e psicoterapeuta, fala da relação com o dinheiro, há atitudes que se percebem, outras nem por isso. Dinheiro não é apenas dinheiro, é também tudo o que está associado a nível de transações e outras coisas mais. São aspetos importantes e que fazem diferença. “A almofada financeira (economias/poupanças) pode ser vista como uma almofada emocional, uma fonte de segurança”, diz. As dificuldades financeiras pesam na cabeça, interferem na vida, mexem com as emoções. A falta de dinheiro é sempre um problema. “Nestes casos pode haver muito medo de voltar a cair na pobreza”, indica. “Mas nem só a experiência de pobreza financeira está por trás destes casos, na maioria deles, trata-se de pobreza emocional. As pessoas não receberam suficiente atenção, cuidados, carinho, amor”, acrescenta o psicólogo clínico. O dinheiro, diz-se, serve para tudo, é uma forma de poder. A crometofobia não faz essas distinções, de pobres e ricos.
A questão não é ter ou não ter dinheiro, é ter medo de o gastar, seja pouco, seja muito. Pedro Martins centra-se nessa relação com o ouro que faz girar o Mundo. Por vezes, é uma história feliz, outras é triste. “Ser pobre é também depender dos outros. Uma das coisas que as pessoas desejam atingir é a independência financeira que é, de certa forma, uma independência perante o outro”.
A relutância em pensar ou conversar sobre o que provoca esse medo desproporcionado tem consequências no bem-estar de quem sofre com isso. Cristiana Cerqueira Leal chama a atenção de alguns aspetos. Se um sofre, toda a família sofre também. “Em contexto de família, especialmente quando a pessoa é a fonte de rendimento, ou tem a seu cargo a gestão do dinheiro, a situação pode ser muito complexa, condicionando o bem-estar de todos e sendo causadora de conflitos e de perda de qualidade de vida familiar.”
Sara Ferreira aponta vários comportamentos associados a esta fobia. “Recusar abrir as faturas do cartão de crédito por imaginar um saldo negativo, evitar ou recusar consultar saldos bancários, sentir taquicardia ao imaginar o fim do mês e tudo o que esteja associado ao pagamento de contas.” E, depois, é como uma bola de neve. “Muitas vezes, acabam por ter um comportamento semelhante ao das pessoas que evitam ir ao médico por terem pavor de receber uma má notícia e, por conta disso, nunca fazem os exames e os procedimentos de rotina”, refere.
A atual conjuntura económica, preços a subir, a inflação a estourar, o dinheiro a diminuir, a capacidade financeira a apertar, não explica na plenitude este medo que gera ansiedade e que se evita com toda a força. Segundo Miguel Ricou, até encaixa na conversa. “Até valida, de alguma forma, esse medo de gastar dinheiro, ou seja, a crise valida a questão de não gastar dinheiro e a pessoa fica mais tranquila.” Mas se o receio se torna patológico, o cenário não é bom. “Naturalmente que tem prejuízos, impacto na vida. Não compram coisas que são essenciais, não pagam contas que tinham de pagar.”
A incerteza aumentou nos últimos tempos. A pandemia, a guerra, a crise energética, o agravamento da inflação, significam um modo de vida financeiramente mais frágil, bastante débil. “Nestas circunstâncias é natural que as pessoas tenham de repensar os seus padrões de consumo e a forma como investem para fazer face à subida dos preços, consequente diminuição de poder de compra e à desvalorização real do dinheiro acumulado. E em circunstâncias mais difíceis é natural que estes medos tendam a ser exacerbados, especialmente em quem já tem propensão para tal”, repara Cristiana Cerqueira Leal, que investiga os aspetos comportamentais da tomada de decisão financeira, como os enviesamentos e obstáculos psicológicos na decisão e como melhorar a tomada de decisão.
Comprar, poupar, investir
Há desconforto, muito desconforto, nesta forma de não lidar com o dinheiro. Há também agressividade e acusar os outros de se quererem meter na sua vida quando confrontadas com essa fobia. E o descontrolo financeiro. Sara Ferreira deixa um conselho: procurar ajuda. “Se a crometofobia for uma coisa realmente paralisante, doentia, que gera episódios de depressão ou de agressividade, ou já está a colocar o equilíbrio financeiro em elevado risco, é importante procurar ajuda profissional especializada com alguém da área da saúde mental.”
Cristiana Cerqueira Leal alarga o assunto para outros ângulos e aborda a literacia financeira determinante para um relacionamento saudável com o dinheiro. “Se soubermos melhor o que podemos gastar, o que devemos poupar e onde investir, o nível de confiança aumenta e os níveis de ansiedade associados decaem”, sublinha, aolembrar que, usualmente, em decisões de consumo e investimento, o leque de opções oferecido é imenso.
“Se, por um lado, ter mais opções do ponto de vista da racionalidade é sempre bom, na prática os recursos cognitivos disponíveis são limitados e ter demasiadas opções gera sobrecarga na decisão. Especialmente em áreas que a pessoa não domina, como a área financeira, é fácil entrar em modo indecisão ou de paralisia de decisão”, diz. “Assim a opção de não consumir, não investir, não pensar em dinheiro pode não ser a decisão concreta de não atuar ou de acumular o dinheiro em si, mas uma dificuldade em tomar uma decisão. Muitas vezes é apenas o adiar para um momento mais oportuno que nunca acontece”, observa. E a tendência para deixar tudo como está, para manter o estado atual das coisas, para evitar o arrependimento de eventuais más decisões, vem ao de cima.
Investir em literacia financeira é essencial para que a relação com o dinheiro não seja um bicho de sete cabeças, segundo Cristiana Cerqueira Leal. Há, porém, muita coisa a fazer. “É preciso falar sobre dinheiro em casa, na escola e em ambientes sociais de uma forma positiva e descontraída. E deve investir-se em literacia financeira desde uma idade muito precoce”, defende a professora e investigadora.
Dinheiro, por norma, é assunto de que não se fala em casa. Não deve ser assim. “É importante crescer num ambiente em que se fale de dinheiro de forma informativa e construtiva, se faça planeamento com horizontes temporais mais longos e se dê espaço aos mais jovens para participar. É importante dar espaço para a criança ou o adolescente decidir, obviamente tendo em atenção a idade e a autonomia demonstrada.” Por exemplo, é preferível mesada a semanada para maior capacidade de planeamento num período mais longo. “Até porque experiências bem-sucedidas são a chave para uma relação saudável com o dinheiro, enquanto experiências negativas geram medos e experiências negativas sucessivas podem gerar medos excessivos”, adianta. E os medos excessivos condicionam vidas e modos de viver. Sempre assim foi, sempre assim será.