Conto de Rui Couceiro: Natal 2021

Este ano, a "Notícias Magazine" apresenta um conto de Natal da autoria de Rui Couceiro.

Quando, por fim, tudo passou, Alzira regressou a casa. Chegou com uma mala velha e o peso da saudade a desvanecer-se. O cabelo todo branco, num puxo. A filha abriu-lhe a porta de madeira de castanho e, mergulhando na penumbra, disse: vou abrir também as janelas, para arejar isto, e sigo já para baixo, tenho uma reunião daqui a duas horas. Alzira não respondeu, limitou-se a receber o beijo rápido da filha – eu logo telefono, está bem? – e ficou a ver o automóvel afastar-se da quinta, primeiro murmurando sobre a terra, depois sumindo-se por entre o casario de pedra. Fechou os olhos e inspirou o ar nem frio nem quente. Então, começaram a tocá-la os aromas familiares: de baixo, chegou-lhe o odor húmido que se desprende do empedrado da calçada, misturando-se com a frescura do musgo agarrado ao granito que embasa as casas; do vale, por entre o marulhar ligeiro das águas frias, e libertado pelo sol do meio-dia, vinha o perfume quente da esteva; virando-se de lado, para procurar com os olhos o horizonte, invadiu-a o cheiro das suas coisas, mistura de soalho, sofá, cortinas e louceiro, identificou-os todos numa fração ínfima de ar corrente, que lhe chegou tão depressa como o alívio e a felicidade, antes mesmo de olhar para a porta aberta. Estava em casa.

Durante demasiado tempo, estivera ausente. Ela era das galinhas e dos coelhos que deixara aos cuidados do Sr. Firmino, era dos gatos que se lhe esgueiravam para dentro da cozinha, a miar por comida, dando-lhe turras nas meias grossas, que, quando desprevenida, lhe provocavam arrepios na nuca. Era da giesta, da carqueja e da urze, era das noites passadas junto ao fogo, sob o afago da manta de lã, olhando pela vidraça o lajedo da eira, há tantos anos despida de cereais, mas a mesma que ali estava na sua infância e que por certo ali estivera na infância dos seus pais e dos seus avós. Ela era dali. Era das ervas e das flores bravias. Era das penedias que avistava ao longe, imitações de rostos humanos espreitando entre os pinheiros. Era da alegria que lhe oferecia o canto do melro-das-rochas e do melro-d’água, do pintarroxo, do papa-figos e do rouxinol. Onde estivera tudo aquilo, e a que abandono votara o seu mundo, durante os meses passados diante do televisor, a ouvir a filha em teletrabalho e a neta na telescola?

Mas três meses se passaram sem uma visita da filha, sem o regresso dos emigrantes, sem as festas da aldeia, sem a procissão da Senhora da Saudade. Três meses se passaram até que a filha lhe disse, por telefone, andar às compras, em busca de enfeites de Natal. A propósito, atalhou, este ano fazemos como de costume? Ainda não sei, respondeu, sem preparo. Nessa noite, de volta de um alguidar, enquanto retirava de dentro das vagens secas as desejadas feijocas, tomou uma resolução. Ajeitou o avental, compôs o cabelo, endireitou os ombros e sentiu vontade de levar por diante um desejo a cada ano incumprido. Fez correr a água sobre o pio de mármore, aguardou que ficasse quente e lavou as mãos. Dirigiu-se para o escritório, de chave na mão, abriu a gaveta central da escrivaninha e tirou de dentro dela uma caixa de madeira. Desdobrou com cuidado uma carta manuscrita, envelopada em papel azul-claro, e reencontrou a caligrafia do homem que a deixara viúva. Leu um pedaço.

Sabem como é, os anos acontecem, não há forma de pararem de acontecer, e, quando damos por isso, estamos velhos, a vida passou. Perderam importância as discussões, as chatices, o dinheiro que não se ganhou, tudo isso. De repente, o que fica é a pena de ter de se partir, porque isto, mais agrura, menos agrura, e se as doenças não nos vergarem demasiado, até é coisa boa de experimentar.

Enxugou as lágrimas com o interior do avental e leu um pouco mais, decidida a convencer a filha a passarem a consoada, como antigamente, naquela casa grande e erma.

Ainda hoje me olho ao espelho e não entendo como tenho a barba grisalha, que aparo com mãos já trémulas, e estas pregas sob os olhos; não percebo por que raio o corpo me trai assim, se quando caminho na calçada me apetece correr, se quando estou deitado na cama deste quarto que era dos meus pais, no escuro, a minha imaginação ainda pula como quando eu era o filho do Sr. Leal e da D. Arminda, e me vinha enfiar na cama da minha mãe, quando o meu pai saía para trabalhar, pedindo abraços e festas no cabelo cor de palha que ela me dava sem reservas, com um amor nos dedos que ainda sinto agora, neste topo calvo. Continuo a achar-me o filho da D. Arminda e do Sr. Leal, não posso crer no que se deu. Os meus pais já não dormem nesta cama, durmo eu, ela partiu primeiro e ele logo a seguir. O colchão é outro, claro, mas a cama range do mesmo modo, quando abraço a minha mulher, talvez mais ainda, para a cada dia me lembrar dos sons da minha infância – como se fosse preciso, porque dela nunca saí e o tempo só nos engana e a vida só nos castiga.

Ali chegada, Alzira pousou a carta e abandonou-se na cadeira de veludo verde. Chorou a noite inteira, como tantas vezes chorava. Primeiro, naquela cadeira; depois, na cama, confortada apenas pelo dorso do gato Filete encostado aos pés gelados. Na manhã seguinte, enquanto torrava pão de azeite, procurava sentir dentro dela a força bastante para que o Natal, nesse ano, voltasse a animar e a perfumar a casa e toda a quinta.

Trabalhou aquela vontade durante semanas, alimentou-a com todas as forças que tinha e foi buscar outras às melhores memórias. Tempos depois, quando a filha lhe telefonou, não lhe disse, como nunca foi capaz de dizer, o que queria. Aceitou estar pronta às dez e meia, hora a que o genro a iria buscar, claro que sim, levo couves, sim, sim, vou comprar aquele pão de que o Mário gosta, para as rabanadas, e, sim, também levo aquele queijo bom. E desse modo se foi preparando para mais um Natal como os outros, cheio de esperança – a de que, no ano seguinte, tudo fosse diferente.

Perfil do autor

Rui Couceiro nasceu no Porto, em 1984. Foi jornalista, mas cedo se entregou ao mundo dos livros: esteve dez anos na Porto Editora e é, desde 2016, editor na Bertrand, onde dirige a chancela Contraponto. Foi autor e apresentador, com a escritora Filipa Martins, do programa “A Biblioteca de”, na Rádio Renascença, e escreve para o site da revista “Visão”. É membro do Conselho Cultural da Fundação Eça de Queiroz. Em junho deste ano, publicou o romance “Baiôa sem data para morrer”, já em 2.ª edição.