Doces, bacalhau, peru, os restos nesta época são um clássico, mas poucos sabem como bem acondicionar os alimentos, para não trazer riscos para a saúde, e como organizar o frigorífico quando a quadra chega ao fim. Há erros comuns e muito desconhecimento também.
Não é novidade nenhuma, a comida abunda na ceia de Natal – e logo a seguir, no Ano Novo, também – e as sobras são uma certeza quase inevitável nas mesas portuguesas. Planear com antecedência é a maior dica de todas, mas sabemos que por tradição as mesas fartas e o excesso vencem sempre. Saltemos, portanto, para o que vem depois. “Não paramos muito tempo a pensar em termos de segurança alimentar. Somos todos um bocadinho relaxados. Temos práticas de risco e há muitos mitos”, diz Paula Teixeira, docente da Escola Superior de Biotecnologia e investigadora do Centro de Biotecnologia e Química Fina da Universidade Católica no Porto. Paula tem-se dedicado a fazer investigação sobre segurança alimentar nas casas dos portugueses. E no que toca às sobras natalícias, bem sabe, “há sempre um problema, que é o espaço no frigorífico”.
À partida, devíamos ter o cuidado de refrigerar tudo o que já foi cozinhado, mas à falta de espaço, há que ter prioridades. “Gosto de chamar a atenção sobretudo para os frutos depois de cortados, porque normalmente as pessoas não associam grande risco. E no Natal, é muito frequente o melão, que depois de aberto e cortado deve ser mesmo guardado no frigorífico.” A explicação é simples. A casca do melão tem bactérias que podem passar facilmente “de fora para dentro” onde existem todas as condições – “água, açúcar” – para o crescimento de microrganismos patogénicos. Aliás, avisa, “tem estado implicado em surtos graves, nomeadamente de listeriose”.
Da fruta para o peru, que também entra no topo da lista, por ser um alimento de risco. “As carnes cozinhadas devem ser sempre guardadas no frigorífico. E não se deve esperar muito tempo depois da refeição. Às vezes, ficamos noite dentro e só quando toda a gente vai embora é que arrumamos as coisas. Ou até no dia seguinte.” E quanto mais tempo ficar à temperatura ambiente, mais toxinas podem ser produzidas “que depois é muito difícil eliminar ou até impossível”. O reaquecimento é uma arma de proteção, mas, espante-se, não é 100% eficaz, “porque há substâncias produzidas pelos microrganismos que mesmo a temperaturas muito elevadas não são eliminadas”. A regra são duas horas à temperatura ambiente. “Podemos ir um bocadinho além, mas sempre que possível arrumar rapidinho no frigorífico.” A par do peru, o bacalhau também deve ir para o frio, “mas aqui o risco é inferior ao das carnes, porque já foi salgado e normalmente é muito bem cozinhado”.
Depois, claro, vêm os doces de colher, principalmente os que têm ovos pouco cozinhados e natas. “Que são alimentos que é mesmo importante guardar rápido no frigorífico e não deixar para o dia seguinte.” Aqui, há uma dica relevante. Usar ovos pasteurizados nas receitas em que o ovo não vai ser bem cozinhado é, defende Paula Teixeira, “o melhor”. Se não for essa a opção, pelo menos “não usar ovos caseiros”. “Avaliamos, recentemente, a presença de salmonela em ovos caseiros e em ovos de produção industrial. Não encontramos nos de produção industrial, mas nos caseiros em cerca de 10% dos galinheiros encontramos pelo menos um ovo positivo para salmonela. Por isso, o risco é maior.” O ideal é reservar esses ovos para pratos e sobremesas em que há a garantia de que vão ser bem cozinhados, como um bolo seco, que vai ao forno.
Na hora de guardar as sobras no frio, na verdade quase tudo lá devia ir parar (exceto os bolos secos, como o bolo-rei ou o pão de ló, que vão endurecer e perder características, neste caso basta guardar num recipiente com tampa hermética num local ameno da cozinha). Mas não havendo espaço, as carnes, os frutos e os doces de colher são as prioridades.
Riscos para a saúde
E há ciência até em guardar a comida no frigorífico. Tem de ir sempre em caixas fechadas, seja de vidro, ou tupperwares. Por uma razão. “Nos nossos frigoríficos temos, muitas vezes, outras coisas que estão cruas e que podem contaminar os alimentos cozinhados. Até um vegetal pode passar bactérias para alimentos já cozinhados”, sublinha a engenheira alimentar Paula Teixeira. Separar os alimentos já cozinhados dos alimentos crus é regra de ouro, quer em termos de organização do frigorífico por prateleiras – já lá iremos -, quer protegendo em caixas.
Depois de guardadas as sobras, refere a nutricionista Inês Pádua, “conservam-se bem e com qualidade durante três dias, 72 horas”. Neste sentido, o melhor é congelar os alimentos que não se prevê consumir num curto prazo. Neste caso, dividir em doses individuais – até para acelerar o arrefecimento, porque não devem ir muito quentes para o frio para não fazer a temperatura disparar – é uma boa opção, para quando os voltarmos a consumir descongelarmos apenas o necessário.
Mas, afinal, quais são os riscos para a saúde de não acondicionarmos devidamente os alimentos? Segundo Inês Pádua, os riscos têm a ver com “toxinfeções alimentares”. E se, num adulto saudável, os sintomas podem passar apenas por vómitos, dor de barriga, diarreia, quando se trata de crianças, grávidas e idosos as situações podem complicar-se. Daí que todos os cuidados sejam poucos. Além disso, “para além dos riscos para a saúde, o acondicionamento inadequado pode alterar as características organoléticas dos alimentos, o que poderá levar ao descarte do produto e, consequentemente, ao desperdício, que foi o que tentamos evitar”.
Como organizar o frigorífico
Para fugir ao desperdício e tentar que tudo (ou quase tudo) o que restar do Natal caiba no frigorífico, é importante organizá-lo. Eis a grande questão. Para começar, limpar antes das festas e deixar já espaço a contar com as sobras é meio caminho andado. “Temos no frigorífico coisas que nem precisam de lá estar, nomeadamente bebidas que se podem tirar antes e usar uma manga para refrigerar”, refere Paula Teixeira. Além das bebidas, muitas vezes temos cenouras, tomates inteiros, compotas, manteiga de amendoim, que é desnecessário. Em caso de dúvida, os rótulos ajudam. Também é preciso ter atenção à temperatura, até porque há frigoríficos que estão a temperaturas muito altas. “Deve andar entre o 4 e os 6 graus. Já fiz alguns trabalhos em que vamos a casa das pessoas para avaliar a temperatura dos frigoríficos domésticos e encontramos alguns a nove e dez graus. Até a 12, isso já não é um frigorífico.” E, é óbvio, não ter o eletrodoméstico a abarrotar, “porque depois o ar não circula entre os alimentos e não arrefece devidamente”.
Sigamos, então, para a organização propriamente dita. A prateleira mais baixa, que fica logo por cima da gaveta dos vegetais (sim, é aqui o lugar ideal dos vegetais e até se pode usar uma folha de rolo de cozinha por baixo para absorver a água libertada e ajudar a conservar), é a mais fria e deve ser reservada à carne crua, peixe, a alimentos perecíveis que ainda vão ser cozinhados. Até porque estando na prateleira de baixo evita que, por estarem crus, pinguem para outros alimentos e os contaminem.
Logo depois, nas prateleiras intermédias, devem entrar as sobras e os pratos já cozinhados, empilhados em caixas, além de produtos de charcutaria e conservas abertas. E nas prateleiras de cima, onde a temperatura é mais estável, podem guardar-se alimentos que não precisam de ser cozinhados, como os produtos lácteos, desde iogurtes a queijos.
Na porta, a zona menos fria e mais sujeita a mudanças de temperatura, devem entrar produtos menos suscetíveis, como bebidas, molhos (maionese, por exemplo), manteiga. “Os ovos, curiosamente, apesar de haver lá o espacinho preparado para isso, não devem ser guardados na porta, porque as flutuações de temperatura podem levar à condensação da casca e alguma coisa que esteja fora passar para dentro. O problema não é tanto a temperatura, são as flutuações”, aponta Paula Teixeira.
Mas há mais estratégias. A nutricionista Inês Pádua sugere ainda colocar os produtos mais antigos ou com menor prazo de validade à frente; lavar e secar bem os alimentos frescos antes de os guardar e usar caixas organizadoras, “que facilitam alcançar produtos quando o frigorífico está mais cheio, existem até opções para criar dois níveis dentro de uma mesma prateleira”.
No fim, voltamos ao princípio. “Apesar de todas estas dicas, o planeamento é mesmo importante. Devemos evitar a tendência desta época: exageros. E cozinhar de forma a que possamos gerir minimamente o pós. Para reduzir o risco de intoxicações alimentares e o desperdício também”, conclui Paula Teixeira.
O que deve ir rápido para o frigorífico:
- Peru e outras carnes. E, neste caso, não esperar muito tempo depois da refeição para arrumar no frio
- Fruta, depois de cortada, tapada ou guardada numa caixa, em particular o melão por não ser uma fruta ácida
- Doces de colher, principalmente aqueles com ovos pouco cozinhados e natas