Rui Cardoso Martins

Como uma pessoa que morre


Crónica "Levante-se o réu", por Rui Cardoso Martins.

Ao escutar Caetano, lembrei-me do amigo que um dia me contou a mais bizarra sensação de sorte e de felicidade. Por falta de pagamento das prestações na crise do imobiliário, da troika, o banco ia-lhe ficar com a casa. Um dia, ligou-me:

– Descobriram-me um cancro.

– Oh, não.

– Por um lado é bom, já não me podem expulsar de casa, a lei protege os cancerosos.

Caro Caetano, o meu amigo já morreu e chorei-o, agora desejo-lhe a si o melhor do Mundo. Vi o seu julgamento por “abuso de confiança” com a Segurança Social. Ouvi como contou o dia em que, afogado em dívidas do seu restaurante de sushi, em Lisboa, a direcção do centro comercial o chamou para lhe dizer: “Se fechar já, prescindimos das rendas que faltam até ao fim do contrato”. Isto é, como já tinha outro interessado em alugar o espaço do restaurante, o centro comercial prescindia dos meses futuros de renda. Eram cem mil euros.

– Isto foi de manhã. Fui ter com os empregados: “Gente, nós temos 15 dias para encerrar tudo”.

Era um alívio a morte da sociedade de Caetano, brasileiro que investira o dinheiro todo num sushi. Impressionou o momento burocrático em que a juíza disse que só ele seria julgado:

– A sociedade declara-se extinta e o julgamento continua só com o arguido. A sociedade… É como uma pessoa que morre, percebe?

– Entendo.

E a seguir foi julgado na sua solidão comercial. Caetano declarou-se “boa pessoa”, “de boa-fé”. Os óculos embaciados pela máscara.

– Todos os meses eu pagava tudo. Comecei a ter dificuldades. Deixei de pagar a Segurança Social porque não podia deixar de comprar alguns produtos para manter o restaurante. Mas o cenário foi piorando. Já não conseguia pagar as outras dívidas.

A juíza queria saber se confessava:

– Mas o que lhe pergunto é se o que está aqui é verdade…

– Sim, sim. Ou eu continuava a pôr o peixe no restaurante, para poder trabalhar, ou pagava o IVA mais o parcelamento.

Confissão integral e sem reservas. A opção era entre o menor de dois males.

– Se eu não tiver o funcionário pago, ele também não vai trabalhar!

– Não quer trabalhar se não lhe pagam, disse a procuradora.

– Certo. E se eu não botar peixe no restaurante, não abro o restaurante. E era a única coisa que eu tinha, o restaurante.

No ano passado, Caetano empregou-se e conseguiu pagar 1900 dos 10 691 euros de dívida à Segurança Social. Caetano lembrou a última conversa com o homem da lota (que tinha razão):

– Se você não me pagar, não lhe ponho o peixe aí dentro. Não dá para fazer o sushi…

– Não tive escolha. Mas o restaurante fechou. Depois veio a pandemia.

Conheço uma praça aberta de lojas em Lisboa em que os comerciantes falam nostálgicos das lojas e das pessoas que, em dois anos, apareceram e desapareceram à frente de todos: “O vegetariano em frente foi a pandemia, a loja dos chocolates já não abriu depois da pandemia, eu trabalhava lá em cima, no cabeleireiro ao lado dos Correios, mas fechou na pandemia”. “E agora temos a guerra.”

Uma pescadinha de rabo na boca, um peixe cru a perder a frescura e, finalmente, queimado em terrível frigideira, a invasão da Ucrânia, soldados e civis fritos em segundos à frente do Mundo, a crise alimentar mundial crescendo como levedura na falta de matérias-primas, de combustíveis impossíveis de pagar.

Não lhes dês peixe, dá-lhes uma cana para pescar no mar dos impostos, crises e loucuras da Humanidade.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)