Como não deixar que o trabalho lhe estrague as férias

Chamadas, e-mails, preocupações. Numa sociedade automatizada e digitalizada, a linha entre as responsabilidades profissionais e o descanso pode ser muito ténue. Há quem não consiga "desligar-se" e aproveitar as horas de lazer. As consequências podem revelar-se muito sérias para o bem-estar físico e psicológico.

Vai a meio de uma semana de férias e o telefone já tocou, pelo menos, uma vez por dia. Os e-mails que caem sucessivamente na caixa de correio do telemóvel são também diários. A isto acresce a ansiedade. “Estará tudo a correr bem?” “Como estarão as vendas hoje?” “Será que se esqueceram de fazer aquilo?” Tirar a cabeça do trabalho é, ainda hoje, uma tarefa impossível para João Ferreira, gerente de uma loja num centro comercial. A preocupação e a dificuldade em desconectar aumentou com a responsabilidade do cargo, mas, garante, o mesmo já acontecia quando era trabalhador de base e noutros empregos anteriores. “Devido à minha ansiedade, acabo sempre por estar a pensar em algo, independentemente da responsabilidade que tenho.”

O gerente, de 35 anos, não está sozinho nessa angústia. A dificuldade em desligar do trabalho durante as férias é cada vez mais comum, comenta a psicóloga Teresa Espassandim. Apesar de não haver um estudo particular sobre o tema, os números de saúde mental em Portugal indicam que um em cada cinco portugueses tem problemas de saúde psicológica. Desses, dois em cada cinco estão relacionados com o trabalho. “Uma realidade que nos deve preocupar a todos” já que, adianta a especialista em psicologia do trabalho, um descanso saudável é vantajoso não só para o trabalhador, mas também para a entidade empregadora.

No topo da lista, sublinha, é importante ter consciência das consequências que a dificuldade de desconexão provoca. “Viver preocupado com o trabalho interfere com a saúde que, por sua vez, interfere com a produtividade.” Quando não é possível desligar totalmente das responsabilidades profissionais, a curto prazo, chega a dificuldade em repor os níveis de energia e, com isso, as alterações nos comportamentos. Perturbação da atenção, falta de memória, frustração, maior irritabilidade, menor criatividade. Em termos clínicos, e já a médio e longo prazo, a psicóloga alerta para as crescentes crises de ansiedade e perturbações do sono, derivadas de questões profissionais, dos pacientes que acompanha. E, frisa, “a falta de desconexão é um dos ingredientes para o tão falado burnout”.

Para João Ferreira, as crises de ansiedade são a consequência mais grave que já sentiu devido à dificuldade em desligar-se das responsabilidades da profissão. Mas sentimentos como a frustração também são comuns (e quase diários). “É uma sensação constante de não-descanso”, conta. Apesar de esses sentimentos serem transversais a todos os setores, cargos e classes sociais, há grupos particularmente afetados. Ana Paula Marques, do Departamento de Sociologia da Universidade do Minho, salienta os trabalhos mais digitalizados, nómadas, precários e instáveis como os alvos principais do pesadelo do “não-desligar”.

As vítimas preferenciais

A capacidade de “cortar com o trabalho” varia consoante o vínculo profissional que se tem. “É diferente quem tem um contrato e direitos garantidos, de quem produz em regime de freelance ou subcontrato, em que a incerteza sobre o futuro profissional é constante.” O estrato social também interfere: quanto maior a dependência financeira do trabalho para sobreviver, maior a dificuldade em desligar das preocupações. Por último, conta ainda o tipo de trabalho. “Quem está ligado às plataformas digitais e meios tecnológicos, transportáveis para fora do local físico de trabalho, tem uma relação diferente com a desconexão de quem tem atividades produtivas em setores tradicionais.” A socióloga do trabalho destaca ainda as vítimas que mais sofrem: as mulheres. “A falta de desconexão é mais intensa no caso feminino, já que assumem as preocupações do trabalho pago e não pago em conjunto.”

Devido às alterações nos modelos de organização do trabalho, muito potenciadas pelo confinamento durante e no pós-pandemia, o direito à desconexão tem estado no foco dos debates. E, entretanto, acabou mesmo consagrado na lei. No final do ano de 2021, o Governo português lançou o “Livro Verde para o Futuro do Trabalho”. Nele é referido o direito à desconexão, que “visa permitir aos trabalhadores a conciliação entre vida profissional, familiar e pessoal, prevenir e combater os riscos de esgotamento e de diluição de fronteiras entre vida pessoal e profissional, bem como estimular a produtividade ou combater a perda de eficácia”. Pela mesma altura, no Código do Trabalho nasceu uma nova alínea que proíbe as entidades empregadoras de contactar os trabalhadores fora do horário de trabalho.

Ser o próprio inimigo

Ainda que deixar o trabalho fora do período de férias esteja assinalado pelas entidades oficiais, a desconexão nem sempre acontece, quer seja por pressões externas ou internas. Teresa Espassandim refere que “todos nos lembramos mais do que está por cumprir do que o que já está realizado” e, por isso, a autoexigência é um denominador comum nos casos de dificuldade em desconectar. Acontece com o gerente João Ferreira, que se caracteriza como perfecionista. “Nesta empresa a pressão não vem tanto de cima, mas antes de mim, por me exigir muito, sabendo que quanto melhor o trabalho estiver feito, maior é a rentabilidade.” O pensamento de perfeição não o deixa realizar uma das primeiras estratégias para a desconexão: delegar. “Nem todos os trabalhadores têm o perfil indicado para que as tarefas que delego sejam cumpridas da melhor forma, daí que a preocupação seja diferente consoante a equipa que deixo a trabalhar durante o meu período de férias.”

A psicóloga Teresa Espassandim revela outras dicas, que partem de duas perguntas base. “O que é que eu espero das férias?”; “O que é para mim descansar?”. As respostas devem ser o mais realistas possíveis, ou seja, “não adianta achar que não vamos abrir o e-mail de trabalho, nem que seja só uma vez, durante a semana de férias quando estamos preocupados com o que ficou para trás”. A gestão das expectativas é fundamental e evita o sentimento de frustração. Os planos para as férias também devem ser realistas, se trabalhar nessa altura tiver mesmo de ser uma obrigatoriedade. “Não devemos afirmar que vamos fazer em sete dias tudo o que não fizemos durante um ano” pois, quando não se consegue, a satisfação com o descanso é menor e a culpa associada ao trabalho tende a aumentar. “Uma bola de neve”, descreve Espassandim.

Planear as férias é fundamental. Delegar responsabilidades e tarefas aos colegas, avisar o círculo próximo de contactos profissionais que o período de férias está a começar e deixar o máximo possível de coisas terminadas. No primeiro dia de descanso, as notificações dos aparelhos eletrónicos devem ser desligadas e a resposta automática deve ser ativada. No entanto, para quem sabe que o trabalho não irá sair das preocupações, a psicóloga indica uma regra de ouro. “Definir um ou dois horários fixos por dia para ver e-mails, chamadas e mensagens e dar seguimento a algumas tarefas.” O tempo definido nunca deve ser excedido, sendo uma forma de aliviar preocupações e alcançar um maior descanso fora daquelas horas.

O regresso ao trabalho também deve ser gerido com cuidado, principalmente no que toca às expectativas para os primeiros dias. É importante, afirma Teresa Espassandim, prolongar a sensação de descanso associado às férias. “Realizar no dia a dia pequenos prazeres, como uma caminhada ao final da tarde ou um café com amigos no fim de semana.”

Em resumo, a organização é a chave para trabalhadores e patrões fomentarem um ambiente profissional mais saudável e, por consequência, mais produtivo. Mas o problema não se resolve apenas com estratégias individuais. A socióloga Ana Paula Marques sublinha que essa é uma meta futura para a sociedade. “Desde o século XX que o trabalho é parte central das nossas vidas e as férias são vistas numa lógica contratualmente garantida e fixa, ainda que dependente do período escolar”. Mas a organização do trabalho, cada vez mais “descontínuo e diferente”, coloca sobre a sociedade uma nova reflexão: “como veremos as férias no futuro?”

O abc das férias sem trabalho:
• Deixar o máximo possível organizado com antecedência;
• Delegar responsabilidades;
• Avisar clientes e colegas da ausência por motivos de férias;
• Desligar as notificações do e-mail e das redes de conversação profissionais;
• Ativar a resposta automática do e-mail, avisando que se está de férias;
• Definir duas horas fixas do dia durante as férias para ver e-mails, chamadas e mensagens de trabalho (se tiver mesmo de ser);
• Não definir objetivos irrealistas para as férias;
• Recomeçar o trabalho com calma e realismo.