Como acabar com o medo dos animais

Os pais, Manuela Aguiar e António Saiote, sentiram grande frustração por não saberem lidar com o medo das filhas

Um cão que segue no mesmo passeio pode ser motivo para que uma criança, com medo do encontro, coloque a vida em perigo. Esse é o ponto a partir do qual os pais se devem preocupar. Saiba que há dicas de ouro a reter e especialistas que podem ajudar.

Margarida tinha três anos e o pinscher de uma amiga da mãe já a fazia encolher as pernas quando estava no carrinho ou no colo de alguém. O esforço que fazia para estar o mais longe possível daquele pequeno mas energético cão era enorme. Tanto que, ao fim de cada visita, a mãe, Carina Novo, via exaustão na cara da filha. “Se ela pudesse, desaparecia naqueles momentos.” Com o tempo, o medo foi aumentando. Gritos e choro compulsivo de cada vez que avistava um cão na rua, grande ou pequeno. Carina Novo chegou a temer o pior. Certa altura, num passeio, um cão aproximou-se e Margarida, apavorada, começou a correr estrada fora. A situação podia ter acabado numa tragédia, já que passavam carros. Dessa vez, Margarida ainda se agarrou com tal força às pernas da mãe que ambas se desequilibraram. “O medo é irracional e quando ela fugia, arranjava outro problema”, lembra Carina Novo, de 46 anos.

Para Clementina Almeida esse é o limite. A psicóloga infantil alerta que quando as reações de medo “são tão exuberantes que interferem com o dia a dia da criança”, deve-se procurar ajuda profissional. Atravessar a estrada sem olhar, deixar de conviver ou alterar uma rotina são algumas consequências sérias destes casos. E a gravidade do problema, explica a fundadora da clínica “ForBabiesBrain”, não está relacionada com a idade, mas com a intensidade. “Se uma criança de quatro anos mostra comportamentos perigosos por causa deste medo, não é por ainda ser pequena que não devemos logo procurar ajuda.” E, acrescenta, quanto mais cedo for intervencionado o medo, maior será a facilidade em ultrapassá-lo. “Se só vou tentar curar aos 13 ou 14 anos, vai demorar mais tempo do que se tivesse agido aos cinco”, explica a psicóloga, lembrando que é por volta dos três que se começa a manifestar a “idade dos medos”. Do escuro, dos monstros, dos animais. Tudo certo. O importante é manter a atenção sobre os sintomas.

Carina Novo e o marido nunca pensaram em levar a filha a um psicólogo. Tranquilizava-os saber que não estavam sozinhos. “Os episódios que vivíamos não eram isolados, outras crianças do nosso núcleo de amigos padeciam da mesma realidade.” Assim, foi através da partilha de experiências que lidaram com a situação. Hoje, olhando para trás, Carina Novo acha que poderia ter “procurado ajuda profissional”. Talvez dessa forma, o medo da filha não se tivesse arrastado até aos 12 ou 13 anos.

Os filhos têm medo, os pais frustração

Nestes casos, o sentimento principal dos pais é a frustração. Não sabem como lidar com a angústia dos filhos. Por isso, Carina Novo decidiu pôr em livro o que viveu com Margarida. “A menina que tinha medo de cães” foi lançado este ano e retrata a infância da filha. A ideia surgiu num piquenique. Uma amiga de Carina chegou com o cão e aproximou-o de uma das crianças presentes. “Não faças isso porque o Gabriel tem medo”, ouviu-se. Nesse momento, a mãe-escritora recuou uns anos e relembrou todos os momentos em que teve de dizer o mesmo para “proteger” a filha. “Foi a oportunidade perfeita para contar o que vivi.”

A personagem principal, Sofia, é inspirada na filha. Tal como a Sofia do livro, Margarida não manifestava a sua fobia apenas fugindo ou chorando, também se expressava verbalmente. “Não quero ir à festa daquele amigo porque tem um cão” ou “pede à tua amiga para prender o cão” eram lamentos e súplicas constantes.

Carina Novo não consegue justificar o medo da filha, pois nunca passou por nenhuma situação traumática (que se tivesse apercebido). Além disso, os pais de Margarida são “apaixonados” por animais. Por isso, este caso não encaixa, à partida, nas duas razões principais apontadas por Clementina Almeida para que uma criança desenvolva medo de animais. Em primeiro lugar, pode surgir por imitação parental. “Quando a criança, a partir do primeiro ano, mesmo sem qualquer verbalização, vê os pais fugirem dos animais, mimetiza aquele comportamento.” Por outro lado, o medo pode surgir associado a um evento traumático, como ser mordido ou ver alguém a ser mordido.

Beatriz, 17 anos, e Isabel, 13 anos, são irmãs e passaram a infância a fugir de animais

Já a história de Manuela Aguiar e António Saiote enquadra-se nas razões para a fobia, apontadas pela especialista. A primeira filha, Beatriz, esteve perto de ser mordida. Tinha quase dois anos e estava no carrinho de bebé. “Um cão que passava na rua aproximou-se e atirou-se a ela. Quase lhe mordia a cara”, recorda a mãe. E há mais. A infância de Beatriz, hoje com 17 anos, foi passada na casa de uma tia que tem muitos gatos. Manuela Aguiar suspeita que o medo também “pode ter surgido por ver todos aqueles animais peludos a saltar e a mexerem-se”. Claro que a filha mais nova, Isabel, hoje com 13 anos, como cresceu a ver a irmã ter medo de animais, desenvolveu o mesmo receio. “Uma amiga nossa tinha um cão e sempre que íamos visitá-la era um martírio para elas e para nós.” Choravam, berravam, amarravam-se às nossas pernas ou escondiam-se atrás de alguém. “As duas sempre foram muito aventureiras em tudo, menos nisso.”

A situação foi ultrapassada com “muita paciência”, conta Manuela. “Não forçávamos, tentávamos era fazer sempre algo para lhes suavizar o medo.” Mãe e pai iam repetindo a estratégia: sempre que havia um cão, iam à frente. Faziam uma “festinha” e diziam, “que calmo, que meigo”, na esperança que as filhas mimetizassem o comportamento positivo. Mas o pavor continuou até que, há cinco ou seis anos, começou a desaparecer. A mãe aponta que a “cura” pode ter sido o cão de um vizinho. “O apartamento abaixo do nosso tinha um labrador muito doce numa varanda, pelo qual tínhamos de passar antes de entrarmos em casa.” A rotina foi levando as duas irmãs primeiro a olhar, depois a dizer olá e, muito depois, a fazer um mimo ao animal. “Um processo gradual que demorou um ou dois anos.”

A calma é exatamente a técnica apontada pela psicóloga Clementina Almeida como fundamental. “Não adianta forçar ou ignorar.” E alerta, por vezes, estão a ignorar-se “problemas de fundo”. “O medo de insetos, por exemplo, pode ser um sintoma visível de que algo na personalidade da criança está mal.” Casos que só a terapia resolve. Cães e insetos, aponta a psicóloga, são as duas fobias mais comuns relacionadas com animais.

Reações defensivas, não ofensivas

Ilda Gomes, especialista em comportamento e bem-estar animal e docente da Faculdade de Medicina Veterinária da Universidade de Lisboa, sublinha que o medo das crianças é transmitido aos animais. “Cães e gatos sentem-no. Detetam níveis de adrenalina e alterações de postura que nós seres humanos não conseguimos identificar.” O grito, por exemplo, deixa os animais desconfortáveis e, consequentemente, a reação de medo da criança pode espoletar uma ação brusca, como uma mordida, por parte dos animais. “São reações defensivas , erradamente interpretadas como ofensivas.”

Para que haja uma convivência saudável entre criança e animal é importante, segundo Ilda Gomes, seguir uma regra de ouro: a adaptação gradual. “Tem de haver uma habituação da criança ao animal e do animal à criança.” A lógica, explica, é a mesma que se aplica ao nascimento de um segundo filho. “Deve-se habituar o mais velho a ter menos atenção e tempo por parte dos pais, pois ele não o perceberá sozinho.” Aqui, a ideia é dar a entender ao animal quais os limites, para que este não assuste a criança. Mas, também, mostrar à criança o que pode ou não fazer, para evitar situações de perigo, que culminem em fobia.

Para quem já tem uma criança pequena em casa e quer adotar um animal, há dicas, segundo Ilda Gomes, que ajudam a desenvolver um convívio saudável. Escolher um animal jovem, mas não bebé. Adotar preferencialmente uma fêmea e não macho. E perceber, antecipadamente, se o animal responde bem a crianças. A especialista ainda frisa: “A adoção deve ser feita pela razão e não pela emoção”. E se já for do conhecimento dos pais que a criança tem pavor de bichos, alerta a docente, “não se pense que é por adotar um cão que se vai resolver o medo”. “A exposição forçada nunca vai terminar bem para nenhum dos lados.” Além disso, poderá levar ao abandono do animal, algo que Ilda Gomes considera que ainda acontece com demasiada frequência. Uma opção de terapia do medo, apesar de não existir em Portugal, nem ser uma via explorada, é a convivência com animais de assistência. “São utilizados cães ou gatos que apresentam níveis de tolerância mais elevados” para serem introduzidos ponderadamente à criança.

A psicóloga infantil Clementina Almeida não garante que, estatisticamente, se verifique uma maior tendência de fobias nas crianças que vivem na cidade. Ao longo dos anos de trabalho, não tem sentido um aumento de casos de medo de animais, apesar da população estar cada vez mais concentrada nas grandes metrópoles. “Mas é seguro afirmar que o contacto saudável com animais favorece o convívio e diminui a probabilidade de ter medos.”

A fobia de Margarida, tal como a da personagem do livro, Sofia, foi ultrapassada pela exposição gradual aos animais. A tia, que tinha um cão, começou a convidá-la para passearem juntas com ele. Primeiro, a pequena mantinha-se à distância. Depois, foi-se aproximando. Mais tarde, pediu para pegar na trela. Eventualmente tocou no cão, ainda que a medo. Carina Novo garante que a história que escreveu já ajudou outras crianças e pais. Uma psicóloga que conhece já o terá usado nas suas consultas. E são muitos os pais lhe enviam mensagens a agradecer a partilha de experiência, uma vez que se sentiam sozinhos na frustração de lidar com a reação dos filhos nestas situações.

Hoje, Beatriz e Isabel convivem com qualquer animal. E até já pedem insistentemente para ter um cão. Enquanto os pais Manuela e António não acedem ao pedido, continuam a cuidar da mascote que lhes foi confiada em 2018, o coelho Bunny Pascoal, quando o medo foi “oficialmente” ultrapassado.