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Começar de novo

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Rubrica "A vida como ela é", de Margarida Rebelo Pinto.

A solidão nunca é a primeira escolha. Pode ser o único caminho para quem prefere o silêncio a uma pessoa aos gritos, o sossego a um parceiro que provoca ansiedade e insegurança, a cama vazia a um traidor que se roçava noutros lençóis.

Era uma vez uma história que podia ser de amor. Daniel tem 42 anos, é divorciado, pai de Elisa de nove, que não vê desde os três. Laura ainda não fez 40, vive num apartamento de sonho numa zona chique da cidade, tem uma carreira de sucesso, é divorciada, sem filhos. Ela é bonita, sensual e sabe o que quer. Ele é desengraçado, tímido, diz muitas coisas ao lado e nem acredita que aquela mulher espetacular olhou para ele. E assim se inicia a dinâmica dos dois personagens da peça “Começar”, de David Eldridge, em cena no Teatro Aberto, em Lisboa, com a última matiné hoje à tarde.

É de duas solidões escolhidas que nasce a melhor das companhias, escreveu Miguel Esteves Cardoso há mais de 30 anos, no tempo de “A causa das coisas”. Durante décadas foi um dos meus lemas, que encaixa com o clássico orgulhosamente só. O tempo e a vida alteraram a minha convicção. A solidão no quotidiano, que fez dos solteiros e divorciados uma raça de ermitas forçados, por um lado nunca é escolhida, e por outro, coloca-os cada vez mais longe dos seus objetivos. A capacidade para construir pontes é substituída pelo instinto de erguer muros. É mais fácil ficar na bolha pessoal e ter uma vida pacata do que dar saltos no escuro para piscinas que ninguém sabe se têm água, tubarões, ou o fundo de areias movediças.

A solidão nunca é a primeira escolha. Pode ser o único caminho para quem prefere o silêncio a uma pessoa aos gritos, o sossego a um parceiro que provoca ansiedade e insegurança, a cama vazia a um traidor que se roçava noutros lençóis. Ou porque o amor se desvaneceu, ou o outro se apaixonou e bateu a porta. Seja por que razão, a vida trocou-nos as voltas, resta-nos aceitar e seguir em frente. Contudo, há pessoas que não conseguem, porque o medo já as apanhou, qual vírus pandémico. O medo é a pandemia das relações amorosas.

Como e em que circunstâncias conseguimos reunir forças, vontade e coragem para ir a zeros após um casamento falhado, um divórcio complicado, ou uma série de relações que não resultaram?

Depois de vários avanços de Laura e de vários recuos de Daniel, o que mais desejavam acontece, mesmo sabendo que será quase impossível existir um território em comum no qual possam construir uma vida a dois. Cada um carrega o seu porta-aviões de traumas, tão pesado que não descola da pista, e se as portas se abrirem, nem Deus sabe o que pode saltar das caixas de Pandora que guarda. Uma mulher que chega aos 40 anos e tem tudo, mas não tem uma família nem filhos, suspira como se disso dependesse a sua felicidade. Um homem que aos 40 anos vive o trauma de uma filha que não vê e sem progressão na carreira não vislumbra como pode sair da sua realidade. Ambos querem voltar a viver um grande amor, ela quer muito e ele tem medo. Medo de não estar à altura, medo de não ser o homem que ela deseja e, acima de tudo, medo de mulheres que não têm medo.

A peça acaba com Daniel a sair de cena e Laura sentada no vazio da solidão. Combinam falar no próximo domingo, se valer a pena. Os românticos saem da sala a acreditar que Laura e Daniel vão ficar juntos, os racionais, com a certeza de que isso é uma impossibilidade.

O que faz com que duas pessoas consigam começar de novo? Primeiro, é preciso trocar o medo pela coragem de arriscar. E, segundo, ter o coração inteiro, e nele a vontade e a capacidade para dar carinho e afeto. Onde existe carinho e afeto, o amor pode nascer. Mas onde não existe, é que não nasce de certeza.

Vá ao teatro e apaixone-se outra vez pela vida. Aproveite, a peça acaba hoje.