Margarida Rebelo Pinto

Coitada da Luisinha


Rubrica "A vida como ela é" de Margarida Rebelo Pinto.

O Governo parece ter esquecido Pedrógão, o corolário trágico de uma calamidade sistémica, mas os portugueses não esqueceram.

Se há coisa que não falta a um escritor são as palavras. Quando tal ocorre, é porque algo vai muito mal. Cada vez que ligo a televisão – ainda sou da geração que vê televisão e compra jornais ao fim de semana – deparo-me com o mais triste espetáculo que um país pode assistir: o sofrimento de um povo entregue a si próprio, à sua coragem, combatendo um monstro incontrolável. Na Ucrânia o monstro é a guerra, em Portugal são os incêndios. A guerra faz parte da história da Ucrânia, os fogos da nossa. Impossível não nos subir a mostarda ao nariz por simplesmente não termos como ajudar. O Governo parece ter esquecido Pedrógão, o corolário trágico de uma calamidade sistémica, mas os portugueses não esqueceram. Enquanto cientistas chineses criam um peixe-robô capaz de ingerir microplásticos, o Planeta aquece e a água escasseia. Por causa da seca, ir buscar água às barragens torna-se mais difícil. Por cada região fustigada e aldeia atacada, mil histórias de gente comum criam um “patchwork” de tristeza e de desespero. Tudo se complica e nada ajuda. E os portugueses, o que podem fazer? Regar os telhados, pôr um pano atado em volta do nariz, usar baldes e ter coragem, porque o caos é tanto e tão extenso que nem com mais de dois mil bombeiros mobilizados a ajuda chega a todos.

Para quem vive no Litoral, é diferente. Tal como não é possível descrever o que sente uma pessoa que sofre de uma doença crónica incurável, também não se sente o mesmo medo, ansiedade e sofrimento perante as imagens que dominam as notícias, a não ser que aquela seja a nossa terra, a nossa aldeia, a nossa gente. Aí, o caso muda de figura.

Voltemos à literatura, onde os escritores gostam de ir buscar respostas para o estado do Mundo. Eça de Queiroz, que olhava para Portugal com visão de helicóptero, conta o famoso episódio do pé da Luisinha Carneiro, publicado no livro “Cartas familiares e bilhetes de Paris”. Num serão de província, uma senhora lia em voz alta para um grupo de convivas o rol de desgraças que assolavam o Planeta: terramotos, inundações, descarrilamentos. Todos ouviam, os senhores fumavam, as senhoras bordavam. A um dado momento a leitora estremece com o jornal na mão e revela mais uma desgraça: a Luísa Carneiro da Bela Vista desmanchou um pé. Todos conheciam a Luisinha, morava perto, naquela casa onde a grande mimosa se debruçava do muro. Horrorizados com tal desgraça, os donos da casa mandaram um criado em busca de mais notícias. Todos os desastres do Mundo se eclipsaram perante o pé desmanchado da vizinha. Uma onda de consternação abateu-se naquele serão de província. Pobre Luisinha.

Pobres seremos nós todos enquanto não nos conseguirmos organizar perante uma calamidade. Um dia, ninguém sabe quando, Lisboa será atingida por um tsunami. E quando acontecer, os governantes não podem dizer que não foram avisados. Basta um instante para que tudo mude e de repente podemos perder tudo aquilo que construímos ao longo de uma vida, com o esforço e o sacrifício que, só quem o viveu, o pode explicar. Gostava de ter mais palavras para esta realidade, mas elas escondem-se atrás da impotência e da frustração. Gostava que o ser humano aprendesse com os seus erros, mas talvez seja mais realista aceitar que raramente consegue fazê-lo.