Rui Cardoso Martins

Chocolate para os amigos


Crónica "Levante-se o réu", por Rui Cardoso Martins.

Se bem se entende o que levou Paulo ao pequeno tráfico de estupefacientes, houve um trabalho intelectual prévio e persistente. Pode-se até dizer que construiu uma barragem filosófica com dois direitos inalienáveis: a liberdade pessoal e a capacidade de ser generoso com os amigos.

O problema foi o resultado. Paulo foi condenado a 16 meses de prisão, e só não irá mesmo para a prisão (durante esse período, será vigiado pela Reinserção Social) se cumprir regras que abomina: não consumirás nem distribuirás haxixe; não plantarás canábis com tetra-hidrocanabinol (THC) na tua quinta; não terás navalhinhas de cortar haxixe, não comprarás balanças para pesar haxixe, deixar-te-ás de comparações patetas, etc..

Olhando, agora que conto o seu caso, para o estado do Mundo – guerra na Ucrânia, pandemia, preços loucos da comida e dos combustíveis, e o diabo a sete -, é inevitável sentir que ainda restam pessoas com sorte. Tiranos invadem países e outros tiranos querem invadir, pessoas matam, pessoas morrem, pessoas perseguem, pessoas fogem, pessoas que se dizem democratas só defendem a liberdade que lhes dá jeito e admiram assassinos. Como se costuma dizer, metade do Mundo a roubar a outra metade.

Mas, pelo meio, ainda há seres todos feitos de luz, como Paulo.

Com mais de 35 anos, o nosso Paulo nunca conheceu o chamado trabalho. Vieram amigos assegurar que Paulo não precisa de trabalhar porque tem pais que são ricos comerciantes, com uma quinta grande. O próprio Paulo disse que nunca trabalhou e que faz apenas o que lhe apetece. Que tudo o que lhe apreenderam era para consumo próprio e para dar aos amigos.

Também disse que as navalhas e as balanças que a Polícia lhe confiscou, e onde o laboratório descobriu vestígios de estupefacientes, eram coisas que haviam sido utilizadas pela última vez há 20 anos. E os amigos gabaram-lhe a generosidade, pois ele dava-lhes pequeninas quantidades de droga em pacotinhos plásticos sem pedir nada em troca. Ou melhor, só é “droga” se lhe quiserem chamar droga.

O mesmo disse Paulo que, aliás sinceramente, não percebeu sequer onde é que descobriam problemas no seu estilo de Ser. Ele tem uma vida diferente, ele pensa de outra maneira, ele é a alternativa e a ciência em pessoa, pega numa tablete de haxixe e

– Para mim, é o mesmo que chocolate, disse Paulo no tribunal, no seu longo cabelo castanho, impenteável.

Só não vê quem não quer ver. Era o caso da juíza. Durante o julgamento, Paulo parecia acreditar no que dizia e a força da História até o poderá vingar um dia – com a liberalização total das “drogas leves” – mas não fazia sentido perante a lei actual.

A juíza concluíra que ele trouxera “histórias da carochinha”, que tentara zombar da acção dos polícias que o detiveram e que, no fundo, tinha sido Paulo a auto-incriminar-se ao admitir o crime.

– Senhor arguido Paulo, penso que já percebeu o que fez… fez aqui uma crítica mordaz aos senhores agentes da PSP, mas a verdade é que, mesmo que não tivéssemos aqui nenhuma outra prova, o que o próprio arguido admitiu é crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade. Pois que acabou por dizer que iria partilhar com os seus amigos… e isso é proibido.

Quanto à comparação do chocolate, “é opinião que é legítima, o senhor diz o que quer, mas a verdade é que não é a mesma coisa”.

– O que o regime de prova quer é, de alguma maneira, fazer o senhor arguido evoluir, não podemos ficar parados no tempo e temos de aprender algumas coisas. Mas vai ter que discutir com os técnicos da Reinserção Social algumas das suas ideias, nomeadamente essa de os chocolates serem iguais aos produtos estupefacientes que, se calhar, têm de ser trabalhadas.

Sugestão para Paulo: Tabacaria, de Álvaro de Campos.

(Come chocolates, pequena; Come chocolates! Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates. Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria. Come, pequena suja, come! Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes! Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha de estanho, Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)