Cegueira facial. Quando não se reconhece um rosto

A prosopagnosia pode ser reversível ou não, depende da causa, das alterações das estruturas cerebrais

Prosopagnosia é um distúrbio neurológico que incapacita a compreensão total ou parcial de uma cara. Uma estranha condição que Brad Pitt partilhou com o mundo na primeira pessoa. O problema não está nos olhos, está no cérebro.

“Não consigo compreender um rosto.” A frase do ator Brad Pitt, 58 anos, numa entrevista à revista masculina “QG”, conduzida pela escritora Ottessa Moshfegh, condensa o desconforto de não reconhecer quem conhecia, a tristeza de não acreditarem nesta incapacidade que não consegue entender, o incómodo de o acharem egocêntrico e antipático. Na altura, no mês passado, ainda sem diagnóstico formal e clínico, Brad Pitt, estrela intergaláctica, partilhava com o Mundo que sofria de cegueira facial, prosopagnosia em termos científicos, e comunicava a vontade de conhecer gente que padeça do mesmo distúrbio neurológico. Para saber mais. “Ninguém acredita em mim”, desabafou.

“A prosopagnosia é uma incapacidade de reconhecimento facial de outras pessoas que deveriam ser familiares”, explica Joana Damásio, médica neurologista do Centro Hospitalar Universitário do Porto. É a dificuldade de reconhecer caras ou identificar pessoas familiares, amigas, conhecidas, famosos de várias áreas, apenas com base nas expressões faciais. Não é um problema oftalmológico, não é uma deficiência visual, não é uma dificuldade de aprendizagem, não é uma questão de memória. É um problema neurológico.

Tudo acontece no cérebro e esta condição tem vários graus que, sublinha Joana Damásio, “têm todos em comum a alteração no funcionamento de uma parte do cérebro que, na maior parte das pessoas, se localiza no hemisfério direito”. “O cérebro evolui para termos estruturas que reconheçam faces. É uma função cognitiva importante e existem estruturas mais dedicadas a essa função”, observa Rui Araújo, neurologista do Centro Hospitalar Universitário de São João, no Porto, vice-presidente da Sociedade Portuguesa de Neurologia. Em termos de localização, a prosopagnosia desencadeia-se na parte de trás do cérebro.

A cegueira facial pode ser de desenvolvimento, congénita, que surge cedo, que vem desde a infância. “É mais complexa essa alteração”, avança Joana Damásio. Nestes casos, a comunidade científica não consegue perceber tão bem o que está nas bases anatómicas e que provoca esta disfunção. E pode ser adquirida num momento da vida. “Qualquer lesão nessa região do cérebro pode levar a alterações do reconhecimento da face”, sustenta Rui Araújo. Tudo depende do que acontece. Um AVC nessa parte da cabeça, as demências que destroem progressivamente essa área e zonas adjacentes, uma doença neurodegenerativa, um tumor cerebral. “Qualquer lesão, seja de que natureza for, pode desencadear essa dificuldade”, refere o neurologista do São João.

A prosopagnosia pode ser reversível ou não, depende da causa, das alterações das estruturas cerebrais. Joana Damásio dá vários exemplos. Num AVC que afeta essa parte específica do córtex cerebral, em que o sangue não consegue chegar aos neurónios, a cegueira facial pode ser passageira – assim como se recupera a força, recupera-se essa função. Um tumor removível também abre boas perspetivas, mas depende sempre de outros fatores. “Numa demência, em que há uma atrofia progressiva dessa parte do cérebro, não é possível recuperar. Tudo depende do processo que leva à lesão dessa zona”, reforça Rui Araújo. Há situações de doenças progressivas que impossibilitam a recuperação dessa função e há lesões cerebrais transitórias, como uma inflamação, que, por serem temporárias, permitem voltar a ter essa capacidade. “Do ponto de vista teórico, é possível que haja alguma recuperação.”

Medo, vergonha, ansiedade

Não escolhe idade, nem género. No limite, alguém com prosopagnosia deixa de reconhecer a própria cara. “Não se reconhecer a si próprio no espelho é perfeitamente possível. O cérebro é uma caixa enigmática”, frisa Rui Araújo.

Brad Pitt não esconde o que lhe vai na alma, a vergonha de sentir esta incapacidade que lhe dificulta a vida social, as interações pessoais, o contacto. Não reconhece, não responde, não se lembra de nomes. O ator sofre com tudo isso. Não é a primeira vez que Brad Pitt abre o livro sobre a sua condição, já em 2013, numa entrevista à revista norte-americana “Esquire”, havia abordado o assunto e confessado que não saía tanto de casa. O que indica que a doença já o acompanha há algum tempo. Mas o artista nunca falou aprofundadamente sobre o seu problema.

O mundo está cheio de amores recuperados e vividos em pleno, basta olhar para o Ben e a sua eterna J.Lo, que se abraçam e beijam em todos os eventos e parques de estacionamento.
(Foto: DR)

A cegueira facial condiciona a vida, tem consequências, é debilitante. Provoca vergonha, timidez, ansiedade social, depressão, isolamento. Quanto maior o grau de familiaridade, mais se sofre. “O impacto é uma coisa muito violenta”, comenta Rui Araújo. E há outra questão de extrema importância: admitir. “A pessoa ter dificuldade em perceber que está com esse problema no reconhecimento dos seus padrões”, concretiza. “A própria dificuldade em reconhecer faces pode ter outros efeitos visuais, ir contra portas, problemas de condução, problemas oculares que podem ser uma manifestação de uma doença do cérebro”, acrescenta o neurologista do São João.

As repercussões e os abalos psicológicos não passam despercebidos para quem sente o problema na pele. Brad Pitt não abafa o desconforto, a aflição, as consequências numa vida tão mediática. O ator é conhecido em qualquer parte do Mundo. E, ironia do destino, em testes que se fazem em muitos hospitais e clínicas do universo, o seu rosto é apresentado para ser ou não reconhecido pelos eventuais pacientes.

Miguel Ricou, psicólogo clínico, professor na Faculdade de Medicina da Universidade do Porto, indica que há “diferentes níveis e diferentes intensidades” de prosopagnosia que mexem, que condicionam. “Quem cresceu com este problema aprende a conviver com esta condição.” Habitua-se, arranja estratégias, o impacto negativo não será tão severo. Outra coisa é uma cegueira facial adquirida. “Uma situação mais complexa, mais insidiosa, mais abrupta na perda, que traz dificuldades. A pessoa tem se adaptar a uma nova realidade.” Aí a ansiedade é maior, mais flagrante. Há a timidez, a fuga de determinadas situações, o autoconceito que esmorece, a sensação de incapacidade. “Perdem-se competências sociais e a capacidade de interagir e os outros são a maior fonte de conhecimento e de aprendizagem que temos”, repara Miguel Ricou, também presidente do conselho de especialidade de Psicologia Clínica e da Saúde dos Psicólogos Portugueses.

Se não se reconhece, não se lembra, não se recorda, não se chama pelo nome. E a angústia manifesta-se. “Pode ter resultados negativos no que é o autoconceito, como se olha para si próprio, sente-se menos capaz do que os outros”, adianta o psicólogo e professor. Inibem-se, sofrem, evitam certos ambientes, isolam-se. “Defendem-se de contextos em que se sentem ameaçados, acabam por fugir, acabam por perder episódios e acontecimentos sociais”, verifica Miguel Ricou.

Há algumas maneiras de contornar esta cegueira que não está nos olhos, mas acontece no cérebro. Reconhecer pessoas pela voz, pelo cheiro, pelo penteado, pelos trejeitos, pelas roupas, por outros aspetos não visuais, por algumas circunstâncias. Estratégias para diminuir o impacto e a tristeza de uma cegueira pouco comum.

Dados

  • Há estudos que indicam que uma em cada 50 pessoas pode ter prosopagnosia.
  • Há dois tipos de prosopagnosia: a de desenvolvimento e a adquirida por danos cerebrais. Há ainda casos descritos como resultado de uma mutação ou exclusão genética.
  • É uma doença que afeta homens e mulheres de qualquer idade. Acidentes vasculares cerebrais, lesões numa zona específica do cérebro, doenças neurodegenerativas e tumores são as origens mais comuns.
  • A cegueira facial tem uma componente genética. Há casos relatados de parentes em primeiro grau com o mesmo problema neurológico.
  • Há pessoas que têm dificuldade ou não se apercebem dessa condição de não reconhecerem rostos familiares ou conhecidos.