Catarina Furtado: “Gostava de adotar uma criança”

As três décadas de percurso não saciam a avidez com que inicia os dias. E o cinquentenário, cumprido em agosto, não esfria a vontade de ter mais filhos. Catarina Furtado teme a finitude e a morte, mas não porque aceite mal o esquecimento. O que a assusta muito é não poder fazer mais coisas. E outras mais. Muito sensata, metade dela é pura intuição. À ânsia de viver que diz sentir chama irrequietude.

Sabes que há aqui um espólio feminista da Maria Antónia Palla? Olha a coincidência. Só podia ser vizinha de um espólio feminista.” Catarina Furtado recebe-nos na Corações com Coroa, cuja sede é a casa do antigo porteiro da biblioteca de Belém.

Estamos no início da tarde e o sol forte não ajuda à sessão fotográfica. ”Transpirei imenso.” Pede uma limonada. Tenho à minha frente a vedeta televisiva que é a presidente dessa ONG, a embaixadora de Boa Vontade do Fundo das Nações Unidas para a População e a mãe da Beatriz e do João. Sempre com a genuinidade que os portugueses lhe reconhecem. Sem vergonha de recorrer vezes sem conta à palavra felicidade. De afirmar o otimismo militante. Das pessoas felizes não reza a história? Será outro preconceito que lamenta. “Sei bem que a tristeza e a miséria são mais fotogénicas”, diz. Não no caso dela. É uma das portuguesas mais amadas pelas câmaras.

Pouco antes de completar 50 anos fez um retiro no Equador. Escreveu no Instagram: “Mochila às costas para me conhecer ainda melhor. Para tentar potenciar o que sou e o que gostaria ainda de conquistar. Para abraçar mais pessoas e o Planeta. Para continuar a acreditar nesta nossa humanidade. Tão bom”. O que aprendeu de si que não sabia?
Mais do que ir à procura de aprender sobre mim, levei comigo alguns assuntos que quero trabalhar. Numa tribo, sozinha e sem comodidades, testei o meu desapego e ganhei tempo para me ouvir. Em tantos anos de vida e 31 de profissão, num meio em que essa possibilidade é muito escassa e facilmente atropelada pelas inúmeras solicitações, tentei sempre ouvir-me. Cedo percebi que vale de nada ter um corpo muito perfeitinho se a cabeça estiver desorientada. Achei que meio século de vida era uma boa altura para esta viagem. A família ficou um pouco apreensiva, mas foi uma experiência muito interessante e sincera. As pessoas nem sempre são sinceras consigo mesmas.

Por que razão acha que é assim?
Porque também não o são com os outros. Porque estando preocupadas com a imagem que transmitem, falta-lhes disponibilidade para aquele tempo cruel em que dizemos que temos de nos ouvir. A minha intuição sempre me disse “ouve-te”. Sempre me perguntei se determinado convite me traria mais audiências, reconhecimento ou mais ansiedade. Este tempo no Equador foi para isso – ouvir-me e tentar resolver alguns assuntos.

Fale-me deles.
O maior deles: a morte. Desde sempre que a aproximação da morte e ideia de finitude me provocam uma angústia enorme. Angústia que ao longo dos tempos tenho tentado apaziguar sem sucesso. Não consigo aceitar o fim como natural. A finitude não é natural. (pausa) Curioso: estando eu tão bem resolvida em tantos aspetos, ter esta questão pendente é muito significativo.

Percebo que não a trouxe resolvida.
De maneira alguma. Regressei mais calma e mais serena, mas a questão está longe de estar resolvida. Nem em relação à minha morte, nem à dos meus.

De onde vem esse medo da morte?
Da ansiedade de viver, e de amar tanto. Amo andar cá. Amo a vida e as minhas pessoas. Perdê-las é assustador. E também não me imagino a acabar.

Há quem julgue que a maternidade garante a eternidade.
Não é o meu caso. Porque não me sinto nem uma marca nem um património. De resto, os filhos não são meus. Estão apenas ao meu cuidado.

Nem na medida em que falarão da mãe aos filhos deles e assim sucessivamente?
O que me assusta na finitude não é o que ficará ou não ficará de mim. O que me assusta muito é não poder fazer mais coisas. O meu pai tem uma palavra muito bonita, que me define muito bem: irrequietude. É assim que acordo todos os dias, com uma enorme avidez de fazer coisas. Com uma imensa vontade de começar. Porquê? Porque através das minhas escolhas, o meu caminho traz-me felicidade. Há, claro, muitas situações que nos ultrapassam, causam dor, abalam a estrutura, mas também há uma responsabilidade pessoal gigante na nossa felicidade do dia a dia. Lamentavelmente, muitos creem que não. Aos 50 anos, digo sem falsa modéstia que estou muito orgulhosa das minhas escolhas. “Parabéns, Catarina, porque assumiste bem. Porque não ouviste os que te diziam ‘vai por ali, vai pelo sucesso, pelas audiências, pelo dinheiro’.”

De onde vem essa sensatez, num meio tão efémero e voraz?
Vem desde sempre e os meus pais falam muito nisso. Percebi muito cedo que a minha felicidade também estava na marca que deixava na vida dos outros. Sou um bicho do mato, embora não o pareça, sou muito independente, muito rebelde, mas sou também muito cuidadora. Tinha nove anos quando comecei a fazer voluntariado. O que não faz de mim melhor ou pior, superior ou inferior pessoa. Diz apenas da minha curiosidade em relação ao outro.

Numa escola de ensino especial.
Onde a minha mãe ensinava artes. Eram meninos diferentes, mais velhos de que eu. Fiz bons amigos.

Por causa de um deles cuspiu numa pessoa.
Numa mulher que, referindo-se a um menino, disse “tire-me isto daqui”. Com nove anos não conhecia a palavra discriminação nem a palavra preconceito, mas sabia que o meu amigo não era uma coisa.

Há quem saiba dar e não saiba receber. Como reage ao mimo?
Sempre tive muito. Só agora, aos 50 anos, é que a minha mãe me contou que fui o primeiro bebé recém-nascido a ficar um mês no Hospital Militar, onde a minha mãe teve de ficar internada. Era um corrupio, médicos, enfermeiros, todos queriam ver o anjo, a princesinha, a nossa senhorinha. Contei isto aos meus amigos, na festa dos 50 anos. É verdade: acredito que nasci com um depósito de mimo e amor que quero distribuir. Claro que eu fiz por isso e, volto a dizer, as minhas escolhas foram determinantes, mas sinto-me verdadeiramente amada.

O mimo também pode estragar. Acha que escapou?
Cedo percebi que para ser feliz precisava dos outros. Como embaixadora de Boa Vontade do Fundo das Nações Unidas para a População conheci pessoas pelo Mundo inteiro, pessoas em situações de vulnerabilidade extrema, raparigas e mulheres admiráveis. A certa altura percebi que são elas que me alimentam. A partir do momento em que me proponho ajudar a melhorar as condições de pessoas que estão pobres, não nasceram pobres, coloco-me no lugar delas. Isso é-me automático, desde sempre. A minha realização pessoal e profissional depende da forma como utilizo a vida. Quero utilizar a vida, não quero que a vida me utilize.

Diga-me um contributo dessas mulheres e raparigas à vida da Catarina?
Equilíbrio. À medida que fui trabalhando nestas áreas, e já lá vão 22 anos, percebi que a solidariedade é horizontal. Se solidariedade significasse estar cá em cima a entregar aos de baixo os meus privilégios nunca tinha descentralizado do meu umbigo. O equilíbrio vem de não nos acharmos maiores ou menores do que somos. Há muita gente que por falta de autoestima e excesso de insegurança, está cheia de ego. No meu caso, descentrar-me, sair do meu umbigo, foi essencial. E quando falamos de igualdade falamos de um direito.

Igualdade, desde logo para sermos livres?
Absolutamente. Aquilo que mais prezo é a minha liberdade.

Apresentadora, atriz, documentarista, autora, embaixadora de Boa Vontade do Fundo das Nações Unidas para a População. Pergunta de guiché: que profissão é que ponho?
Comunicadora.

Aos 50 anos, a questão da identidade ainda é um problema?
Nada, zero. Sou livre. Não represento as mulheres, mas tenho em mim várias. Sou uma mulher que gosta de se arranjar, de ser mãe, mas que não sente necessidade de se definir. Libertei-me disso.

Se se libertou é porque já foi um problema.
Foi uma das coisas mais difíceis do início minha carreira. Tive muitas angústias e inseguranças. No jornalismo e no meio televisivo obrigavam-me a ser uma coisa. “A Catarina é diplomada em dança, fez jornalismo no Cenjor, depois foi estudar teatro e cinema em Inglaterra e quer ser atriz, fez rádio, apresenta, afinal, o que é que é?” Isto era muito ofensivo. E violento. O que estavam a dizer era que eu não podia ser tudo, que se fosse tudo fraquejaria em tudo. Modéstia à parte, saí-me bem em tudo o que me meti. Porque sempre fui muito perfecionista e trabalhadora. Naqueles primeiros anos, a minha única preocupação era oferecer aos meus pais uma profissional de que eles se orgulhassem.

Furtado não é um apelido leve.
Foi muito difícil. Eu sabia que o meu pai iria ser exigente comigo. Uma das coisas que me fez sofrer foi terem dito que entrei para a televisão por causa do meu nome. Devo dizer que concorri ao Cenjor sem o conhecimento do meu pai e como Catarina Cardoso.

Acabou por ser muitas coisas. Que imagem acha que tem de si o público?
É muito provável que a imagem varie conforme a geração. Mas creio que todos têm uma imagem, o que me deixa muito contente. Sou transversal a várias gerações porque consegui fazer, ao longo de 31 anos, formatos que tocaram diferentes faixas etárias. Respondendo à pergunta, só posso basear-me no que me dão. Não querendo desvalorizar cada abraço, entendo que há um deslumbramento em relação às figuras públicas. Sei bem que alguns vêm para o beijinho, para a fotografia e para o carinho. Tiro essa percentagem. Depois, há os que me dizem que me acompanham desde sempre, elogiando a minha coerência. Agora, nos meus 50 anos, foi um pouco diferente. Recebi milhares de mensagens que são autênticos testamentos. Maioritariamente de mulheres, a darem conta de como ajudei a transformar a vida delas. Fico muito feliz e com responsabilidade acrescida.

“Direi que será até me dar prazer. E até me quererem. Vejo-me aos 60 anos a fazer documentários e coreografias”

Desde os 19 anos que é vista como um exemplo. Já deixou de fazer o que lhe apetecia por causa desse fardo?
No início da carreira tinha algum cuidado e preocupação com a família. Não queria ferir ninguém. A viragem dá-se com o referendo ao aborto de 1998. Nessa altura, li muita coisa sobre a matéria, conheci muitas mulheres vítimas dos abortos de vão de escada, conheci outras, de enorme coragem. E pensei: é agora. Sabia que seria difícil dada a minha popularidade. Tinha 26 anos, da minha idade era a única. Era “A menina”. A menina de ar clássico. Resultado: noites sem dormir, muitas inquietações, muitas dores de crescimento, mas sabia que estava a fazer certo. Chorei muito, mas estava convicta.

Insultos, ameaças?
Naqueles anos, o acesso a figuras públicas era limitado. À SIC chegavam imensas cartas muito violentas. Desejavam-me a morte. Não esqueci uma delas: “Alguém que quer matar crianças merece morrer”. Magoa muito, ainda mais porque o meu maior sonho era ser, para além de coreógrafa, mãe. É um cliché verdadeiro: o sofrimento tornou-me mais forte. Fiquei com as garras de fora porque conheci do outro lado de barricada muita hipocrisia. Mulheres que tinham ido a Espanha abortar, entretanto disponíveis para condenar outras mulheres, as mais pobres, ao vão de escada. Nessa altura libertei-me do peso de ser “exemplo”. Não faço nada a pensar nos meus seguidores. Pelo contrário, utilizo as plataformas para dizer o que tenho a dizer. O que penso e como sou. Respeito-os, mas se gostam, gostam, se não gostam, paciência. Engraçadas, as voltas da vida. Nas Nações Unidas estou no organismo que trata da saúde sexual e reprodutiva das mulheres. Tenho relatos lindos de mulheres que se sentem ajudadas. E muitas outras, muito novas, que também querem ter causas. O que me dá muita esperança. Sororidade: não sendo bonita é uma das minhas palavras preferidas.

E os seus pares, que imagem terão de si?
Não quero que ninguém se sinta beliscado, mas sei que há uma fatia grande que não é o que parece, ou não está como diz que está, assim tão feliz e realizada. E quem me parece pior é quem se deslumbra. Quem julga que ser famoso é a salvação, está enganado. É um deslumbramento que traz insegurança e mais inquietações, porque há o medo da perda. Tenho alguns pares com quem me dou lindamente, sei o que eles pensam e é recíproco. O Malato (José Carlos), o Vasco Palmeirim, a Tânia (Ribas de Oliveira), e mais alguns colegas, não muitos, mas também de outros canais, são meus companheiros. Desejo-lhes o melhor, sei que me desejam o melhor. Do resto, sei pouco. Também porque sou um bicho do mato. Há pessoas muito importantes para mim, o Diogo Infante é uma dessas pessoas, mas como se viu na minha festa dos 50 anos, amigos do meio profissional são muito poucos.

Qual é o seu lugar no meio audiovisual.
Na verdade, acho tudo muito passageiro. Não tenho ilusões nem grandes ambições. Estou mesmo a ser sincera. Sei lá se daqui a 40 anos alguém se vai lembrar de mim. Tenho uma certeza: há pessoas a quem ajudei a ter uma vida melhor e isso é visível no meu trabalho social e na televisão. Porque sempre quis levar as minhas causas para o meu trabalho.

No seu percurso tudo parece fácil. Há uma tendência para que tudo lhe corra bem. Concorda?
Não posso dizer que não. Tive momentos de tristeza, é evidente, mas poucos.

Fala-me de um deles?
Tirando a morte das minhas avós, e que falta me fazem, das minhas mudanças de estação, tive as angústias e inquietações normais. Os episódios do referendo ao aborto foram os momentos mais violentos. De facto, nunca tive um grande problema na vida, não tive. A minha irmã diz sempre que olho para os problemas à procura da solução. Creio que é verdade. Tenho uma amiga que fez um curso de astrologia. Contou-me que o Paulo Cardoso utilizava o meu mapa astral como exemplo de alguém que nasceu com o rabinho virado para a lua. E que isso explicava o meu percurso. Confesso, fiquei um pouco irritada.

Porque escolher bem dá muito trabalho, é isso?
Muito trabalho e muita solidão. E haverá outras razões. Por exemplo, sempre trabalhei com as mesmas pessoas. E isso ajuda muito. Toda a vida tive o mesmo agente, a mesma maquilhadora, o cabeleireiro vai mudando, mas o local é sempre o mesmo. Duvido que haja mais casos destes. Saber escolher pessoas é capaz de ser o meu maior talento.

Ao fim de 31 anos já consegue dizer qual o momento decisivo na sua vida profissional?
Foram vários. O momento em que fui para a SIC fazer o “MTV”, a convite da Maria Elisa, o regresso à RTP, um abanão na minha carreira com os primeiros programas de autor. “Os príncipes do nada” fizeram crescer a minha consciência cívica e ajudaram a encontrar o meu papel neste mundo tão desajustado. Partilhando histórias de vida transformadoras fui chamando às causas muitos voluntários.

O que lhe falta fazer?
Para além de ter muitos mais filhos? (ri) Gostava de adotar uma criança. Não por caridade, mas para dar mais uma oportunidade. De resto, não tenho grandes ambições. A ambição desmedida mata. Traz tristeza. Provoca insatisfação permanente. O meu grande segredo é propor-me fazer projetos alcançáveis. O caso desta associação: quando com a minha amiga Ana Magalhães fiz o desenho e o business plan deste café, pioneiro e que reverte na íntegra para os quatro empregos e para a sede, houve quem achasse uma loucura. Nós sabíamos que era difícil, mas também sabíamos que era possível. Nunca projetei ir à Lua ou outras megalomanias, e por isso não lido com a frustração. Dito isto, o que gostava ainda de fazer: uma coreografia e continuar a trabalhar na área dos direitos humanos.

Até quando?
Essa era a pergunta que não queria. Não sei a resposta. Direi que será até me dar prazer. E até me quererem. Vejo-me aos 60 a fazer documentários e coreografias.

Podia ter sido uma grande bailarina?
Bailarina, não. Mas poderia ter sido uma grande coreógrafa. E quero que isso faça parte do meu percurso cá. Que funcione como um “statement”. Gosto de fazer círculos. Seria regressar ao início.

Fale-me do sucesso. E da fama.
A certa altura fui obrigada pelo Rangel (Emídio) – que tinha a capacidade de nos obrigar sem que ficássemos zangados – a dar uma disciplina de Apresentação no curso que ele inventou. E foi muito difícil por duas razões: primeiro, porque não queria ser apresentadora; segundo, porque quando alguns dos alunos me diziam que queriam ser famosos e, por isso, que valia tudo, senti que não falávamos a mesma língua.

Mas era reconhecida na rua, procurada, entrava na casa de todos.
Sentia olhares, evitava ir a sítios onde ficasse muito exposta, como a praia – hoje estou-me nas tintas, é verdade. Mas também era ativista, curiosa das pessoas, amante das mulheres. E esse caminho fez-me perceber que não sou nem mais nem menos. Posso ser mais popular, mais conhecida, mas não sou superior. Isto não é conversa da tanga. Está interiorizado desde sempre. Com a família que tenho, não podia ser uma deslumbrada. Há deslumbramentos que me deixam com tristeza e vergonhas alheias.

Recentemente denunciou episódios de assédio sexual de que foi vítima. O que tem a dizer a quem a acusou de falar “só agora, que tens poder”.
Ouvi isso sobretudo de mulheres. Mas não as julgo. Provavelmente desconhecem os direitos delas, vivem aprisionadas naquilo que acham que é ser mulher. No meu trabalho voluntário nas escolas, em palestras de empoderamento, verifico com muita pena e preocupação que há muitos jovens que desconhecem os direitos deles.

Acha que se falava tanto dos 50 anos se fosse homem?
Não, não falava, mas também fiz por que falassem. Durante estes últimos cinco anos, o que mais tenho ouvido é “ai Catariana, estás ótima, dava-te 35 anos”. Detesto esta condescendência, este paternalismo. Sabe-me a insulto, como se devesse estar velha e de algália. E, portanto, comecei a pensar que era bom desmistificar isto e a ideia de que os 50 são os novos 30. É mentira. E por isso escrevi um longo texto no Instagram em que digo que trabalhei desde sempre para estar bem em qualquer idade, e crescer com qualidade de vida. Para dizer que estou vivinha da silva, que promovo a minha autoestima, a minha sexualidade, que me cuido imenso, que me dou muito mimo.

A maturidade pode não ser um presente horrível?
Madura com uma consciência de pegada muito grande. Sou muito responsável, mas tenho um lado rebelde, imprevisível. Arrisco, nunca deixo nada por fazer ou dizer. Digo-o de forma agradável, diplomaticamente, com jogo de cintura, mas digo. O que de mal deixamos cá dentro só traz doenças.

A passagem do tempo à frente de todos é mais dolorosa?
Sim, necessariamente. Não seria se fosse homem. Se fosse homem estaria provavelmente cheio de charme. Por isso, foi uma questão pessoal de mim para comigo fazer a aceitação da gravidade através de um trabalho interior longo. Apesar de saber que tenho menos tempo – e essa é a maior tristeza, o medo de isto acabar mais cedo.

Nunca teve uma depressão?
Nunca tive uma depressão, nunca tomei aditivos. Nunca tive tendência. Nunca tive necessidade de muito álcool ou de drogas. Sou assim. Provei, provei quase tudo, porque sabia que não tenho tendência para a adição. Não tenho tendência para me tratar mal e sei que isso me trata mal. Sempre fui assim. O que ajudou muito a chegar aqui em boa forma.

Quando se vê na televisão continua a gostar do que vê?
Às vezes gosto mais, de outras vezes menos. Sou muito perfeccionista, mas não tenho má relação com a minha imagem. Mesmo sabendo que estou sempre a dar de caras com a Catarina de 20 anos.

Qual é a pior parte desses reencontros?
Há um sentimento contraditório: por um lado, nunca me senti tão bem, tão segura e tão confiante, do ponto de vista físico e íntimo, quanto agora. Posso dizer que me estou nas tintas para os que os outros pensam. Tenho respeito pelas pessoas que me seguem, mas nenhuma escravidão em relação ao que pensam. Por outro, olho para trás, e vejo que já lá vão 30 anos quando me parece que comecei anteontem. E lá está a sensação de que tenho pouco tempo.

“Amo a vida e as minhas pessoas. Perdê-las é assustador. E também não me imagino a acabar”

Uma parte do sucesso tem que ver com a juventude, ou já não?
Já não vivo disso. A imagem ajuda, não vou ser mal-agradecida, mas, francamente, perante as centenas de mensagens que recebi agora, percebi que já não é isso. Todas relevam as questões dos direitos humanos e da igualdade de género.

Diz frequentemente que sempre escolheu os programas que apresentou, e que os nãos que deu foram essenciais à liberdade em que hoje vive. Que linhas vermelhas impõe?
Os nãos ao assédio sexual foram determinantes. Os restantes foram a projetos em que não acreditava. Nunca me vi como uma comunicadora, ponto. Como alguém que faz o que for preciso fazer. Não, não funciono assim. Queria e consegui levar para a televisão a minha pegada cívica. Utilizei a televisão em vez de ser utilizada por ela. Quis que os meus programas acrescentassem qualquer coisa de positivo a mim e aos outros. Que não fossem nocivos. Os reality shows, por exemplo, destroem as pessoas.

Recentemente, comentou a relação de um casal concorrente do Big Brother. Houve quem entendesse essas críticas como dirigidas a Cristina Ferreira. Como é a vossa relação?
As críticas nada tiveram a ver com a Cristina Ferreira. Ainda ela não apresentava os reality shows e já eu criticava o modelo. Seja em Portugal seja no estrangeiro. Mas como Portugal é um país com uma massa crítica pouco homogénea, temo que por cá a pegada seja ainda mais nociva. Em relação à Cristina: foi minha aluna, excelente aluna, nasceu para ser apresentadora e comunicadora. É uma mulher de garra, com uma capacidade de trabalho fora do normal. Espero que ela seja mesmo feliz porque pode influenciar outros e outras a seguirem os respetivos sonhos.

Nunca se arrependeu de um não?
Nunca. As minhas recusas foram sempre feitas com muita diplomacia, a medir as palavras. E a verdade é que nunca ninguém ficou zangado comigo.

É fácil trabalhar com a Catarina?
Modéstia à parte, acredito que é muito fácil. Sou muito exigente, é certo, mas cada pessoa da minha equipa sabe que a considero preciosa para o resultado. Faço-o sentir a todos. E saber que as minhas equipas têm gosto em trabalhar comigo, comove-me.

O que não tolera?
Falta de educação, de respeito, discriminação, violência física ou verbal, homofobia, preguiça. E ganância. Ego trip não aguento. Não aguento pessoas cheias de si próprias.

Como lida com os inimigos?
Quem são? Não os conheço. Pelo menos não se aproximam.

E com a violência das redes sociais?
Um dos segredos da minha sanidade mental são os travões que uso nas redes sociais. Há um reservatório de intimidade intocável. Os meus filhos não aparecem porque não são meus. Estão ao meu cuidado. Não posso nem devo confundir a minha fama e popularidade através das fotografias dos meus filhos. As pessoas vivem embriagadas pelas redes.

Há pouco falava do gosto pelo risco.
Arrisco porque sou realista, mas otimista. Acredito na intuição e em que vai correr tudo bem.

Como pode ser otimista alguém que presencia tanta miséria e vulnerabilidade, tanta injustiça?
Porque me foco na solução, nas inúmeras pessoas capazes de transformar, pessoas que ninguém conhece e que eu tenho o privilégio de ver atuar no terreno. Pessoas que dão aos outros e que a mim dão-me fé.

Acredita na política?
Tenho de acreditar. Não quer dizer que tenha partido, mas se não acreditasse no exercício da política não podia ser embaixadora da Boa Vontade. E sempre que vou às escolas peço aos jovens que combatam a ideia de que os políticos são todos iguais, todos corruptos. Porque não é verdade.

E em Deus?
Em relação a Deus estou mais descrente.

O que a tem afastado?
A Igreja. Sei bem que deveria separar o trigo do joio. Há padres e freiras que fazem um trabalho extraordinário em muitos países, verdadeiros mandatários de Deus. Mas ainda não consegui separar as águas completamente.

Acha-se uma mulher poderosa, na medida em que políticos e empresários a atendem?
Nessa medida sou uma mulher poderosa e esse é o poder que me agrada muito ter. O único que quero, aliás.

Vai muito entre atenderem o telefone e darem o donativo?
O caminho está a ser feito. Há dez anos era mais difícil. Claro que ainda há os que me recebem, pedem a fotografia e depois se esquecem do donativo. Há os que contribuem para arranjar um T2 no céu. Mas são cada vez menos. Há uma consciência maior das empresas. Este é o meu voluntariado, mas a Corações com Coroa é de toda a sociedade. De quem quiser ser sócio, pagando 30 euros por ano. Tão pouco. Damos bolsas de estudo: há 34 meninas formadas por causa da Corações com Coroa. Porque ainda há muita ignorância e preconceito sobre as pessoas que ajudamos. Pois já vi aqui volte-faces de vida arrebatadores. Gostava que ficasse registado: ao longo destes dez anos, as pessoas que foram apoiadas deram reviravoltas totais na vida e são elas que estão hoje a apoiar. Não venham com paternalismos ou esmolinhas.

Qual é o cenário pós-pandemia?
A pandemia veio acentuar as desigualdades sociais e de género. Temos muitos pedidos de mulheres sozinhas, com filhos, novos pobres que não sabem estender a mão. Por isso, não deixámos que venham cá de saquinho. Vamos entregar-lhes comida nos nossos carros de forma completamente anónima. Chegam-nos pessoas a precisar de apoio psicológico, com problemas nos arrendamentos e em situação de desemprego. Mulheres grávidas que ao arrepio a lei foram despedidas.

A sua maior desilusão?
Ver que há pessoas que apoiam, mas querem ficar na história. E perceber que há pessoas que empoderamos que acabam por tomar decisões que achámos erradas. Mas é preciso aprender a viver com a liberdade do outro.

Como é como mãe?
Um bocadinho exigente. Tenho tentado disciplinar-me para distribuir a exigência entre o rapaz e a rapariga. As mães tendem a “abebezar” mais o rapaz, apesar de no meu caso terem apenas 17 meses de diferença. Sou muito exigente com os valores e um bocadinho exigente com as notas, embora me irrite a preguiça. Nunca fui preguiçosa. Mas também penso que, tirando os mais velhos, foram eles os mais penalizados pela pandemia. Não quero imaginar o que é estar dois anos sem beijar. Da idade deles adorava beijar.

Os filhos chamam-lhe mãe-galinha?
O rapaz sim, e sou, de facto. Mas quando estão doentes tanto ouvimos mãe como pai. O que diz muito de como se vive lá em casa.

Ponto forte de mãe, para os filhos.
Receio que pensem que sou super forte. Que achem que estou à prova de tudo. Não quero isso. Porque não sou nem estou.

Dezassete anos de casamento: não é normal no meio em que trabalham.
Muito longo, demasiado longo, se pensarmos no meio. Sermos muito diferentes ajuda, se a coisa for bem gerida, claro. Somos muito, muito opostos, mas encontramos um propósito que nos liga. Nem sempre foi fácil, não é sempre fácil, no meu caso foi muito importante ter sabido lidar muito bem, ajudada pelas mães deles, com os meus enteados. Mais uma vez funcionou a minha intuição. Grande parte de mim é mesmo intuição. O João e eu respeitamo-nos e admiramo-nos muito. O que mais gosto nele? É um homem sem medo. Gosto tanto de pessoas que não tenham medo.

Como é apaixonada?
Avassaladora. Não sou muito possessiva, mas sou muita intensa e nada me trava. Se quero muito, nada me trava. Sou construtiva, imaginativa, recorro à poesia, à coragem, ao amor-próprio. Recorro a dar. Quando dou nunca acho que estou a perder. Muita gente acha que sim.

A paixão acentua o medo, a perda?
Sou muito otimista. Acho sempre que não vai acontecer nada de mau.

Uma pessoa com medo da morte não pensa nisso?
Não projeto. Só penso na morte quando alguém me fala da morte. Leio muita poesia e a poesia fala muito da morte. Mas só penso nela quando o exterior ma traz.

Dizia no princípio que gosta de fechar círculos. É muito arrumada em tudo?
Super arrumada e organizada. Em casa só não cozinho. Gosto imenso de comer, mas nem entro na cozinha. O João pai e o João filho cozinham e muito bem. Aliás, todos os namorados que tive cozinhavam e muito bem. No início da relação com o João ainda fiz alguma coisa, mas vi pela cara dele que era melhor parar.

Falou de namorados e eu lembrei-me de que a certa altura não havia mãe que não gostasse de ver a Catarina casada com o filho.
Mães e avós. Há uma história maravilhosa. Conheço o João (Reis) na série “A Ferreirinha”. Ele fazia de Camilo (Castelo Branco), eu de Ana Plácido. Mas, no início, estava previsto que eu contracenaria com o Ivo Canelas, plano alterado porque ele foi para os Estados Unidos. Soube então que iria ser substituído por um ator que conhecia mal e que me parecia ser muito sisudo e metido para dentro – estava certa. (ri) Não fiquei feliz. Aconteceu o que aconteceu. Conta o Ivo que um dia lhe telefonou a avó, muito pesarosa para os EUA: “Oh, meu filho, que pena. É que bem podias ser tu a estares casado com a Catarina Furtado”.

Por que acha que isso acontecia?
Vou ser muito cagona: há verdade na minha maneira de estar. Sou genuína. E as pessoas topam isso. Depois, gosto muito de pessoas e isso nota-se e ajuda à minha felicidade.

Tem noção de que as pessoas muito felizes são consideradas levezinhas?
Sei muito bem, esse é um tremendo preconceito. Pois eu estou cá para o desmentir.