Carlos Tê: “Rui Veloso? Há parcerias únicas. Mas as relações também se gastam”

Romancista, contista, cronista, escreveu para musicais e para teatro, colaborou com revistas de poesia, mas é como autor de algumas das letras mais entoadas da música popular portuguesa que o conhecemos. Não se importa que assim seja. Até gosta. A história, com mais de quatro décadas, começa com a devoção às canções, a descoberta das palavras e uma sátira que ficaria para sempre.

Marcámos encontro para as três da tarde porque no Porto, em outubro, já a luz declina cedo, “bela e sombria”, perfeita para a sessão fotográfica. Começamos por aí, no bar do Hotel InterContinental, o bar das Cardosas, nome herdado do palácio do século XIX que antes fora o convento dos Lóios do Porto.

Pedidos cafés, e ainda sem gravador, falou-se dos temas do dia. A disputa eleitoral no Brasil, o avanço dos populismos, os receios e medos de um “progressista libertário, mais preocupado em levantar questões do que em encontrar soluções”. Nas duas horas que se seguiram, igual franqueza e um presente. A gravação artesanal, cantada pelo próprio, de um quase segredo. Começa assim: “Fui levar ao menino Jesus da Cartolinha/um capote com capuz e divisas da Marinha/bordadas a ponto de cruz/ Um bom agasalho para a morrinha/que esta vida faz pingar/sempre que o menino quer brincar”. Tomem nota.

A 14 de junho de 1955, nascia o Carlos Alberto Gomes Monteiro. Nessa altura, uma das músicas mais tocadas, se não a mais tocada, no Mundo era “Rock around the clock”. Puro acaso ou explica alguma coisa?
Acaso feliz, o que só mais tarde percebi. Nasci no auge de uma época que mudou a história e os costumes. A música popular, que começa a difundir-se fortemente a partir dos anos 1950, com o rock ‘n roll, vai ter uma importância fundamental nos anos 1960 e 1970, obrigando a uma mudança de costumes, sobretudo no mundo ocidental. Um mundo novo.

“Tê” de tarado por música, “petit nom” por que é conhecido desde miúdo. Fale-me da música da sua infância. O que se ouvia em casa dos pais?
Nada a não ser os discos pedidos e o que passava na rádio em onda média. Para ouvir os programas icónicos da época, como o Em Órbita, ia com frequência a casa de um amigo que tinha frequência modelada. Era já uma espécie de pequeno culto a nascer.

Portugal vivia em ditadura. Quando é que começa a perceber que há outro mundo lá fora?
Com a música. A música funciona para mim como um postigo aberto sobre o Mundo. Um mundo sobretudo anglo-saxónico que comecei a idealizar excessivamente, sem ter consciência disso, ouvindo Beatles, Rolling Stones e os grandes hits que passavam. A chamada invasão britânica, que derrotou o rock francês e italiano, foi um choque tão grande, tão avassalador. Eu vivi isso na adolescência.

Tinha 15 anos. E que expectativas?
Fuga. Sentia-se um forte sentimento de fuga. Por causa da Guerra Colonial, que tinha impactado tão violentamente na geração anterior, mas não só. Sabia que alguma coisa não estava bem. “Há aqui qualquer coisa de errado.”

A música deu-lhe consciência política?
Mais pelo lado da necessidade de fuga do que pelo lado da resistência. Nunca tive esse lado porque havia muito medo e eu tinha bem noção dele. As pessoas não falavam. Falar era um upgrade de classe. Falavam as pessoas que tinham conhecimento, as que andavam na faculdade, as que pertenciam a famílias que sabiam o que se passava. A minha mãe era operária têxtil e o meu pai trabalhava na indústria automóvel. Nas classes operárias, havia medo.

Quais são as memórias mais antigas desses anos?
A tremenda ressaca e o anticlímax que foi a derrota de Humberto Delgado.

Essa é mesmo muito antiga. Em 1958 tinha apenas três anos.
Mas lembro-me muito bem da onda de expectativa e de grande esperança, das vagas de multidão no Porto que a candidatura congregava. As pessoas andavam profundamente animadas, crentes de que ia mudar qualquer coisa. E também me lembro do tremendo balde de água fria que foi a derrota de Humberto Delgado, e o seu peso duplo: significaria também o início da guerra em Angola. Parece que estou a ouvir o rufar sinistro: “Angola é nossa”, “Angola é nossa”. Tinha seis anos e sentia aquilo como sendo uma coisa apocalíptica.

Apesar de tão novo, sentia já ter nascido no país errado?
Essa sensação vem da escola primária, onde me ensinavam a experiência imperial, o Portugal do Minho a Timor. Mas depois olhava para o lado e via uma criança descalça. Já então me perguntava “que raio de grandeza é esta”?

Um Porto muito pobre. Onde morava?
Primeiro em Cedofeita, depois na Pasteleira. Foi na Pasteleira, com a minha tribo, que comecei a perceber que essa apregoada grandeza era patética, não batia certo com o que se via na rua.

Era um miúdo da rua?
Brincava sobretudo com carros, conhecia todas as marcas. Era aquele tipo de menino-prodígio, com uma memória prodigiosa, o que deixava o meu pai com um orgulho tremendo. Tudo na minha vida indiciava, portanto, que iria para os carros. E até fui, mas para os escritórios da oficina. Livrei-me da ferrugem.

Começou com 14 anos.
Entrei no mundo do amanuense, pequeno burguês, em que havia já dicionários e quem lesse um Balzac e um Tolstoi.

A música também se dança. Dançou muito rock ‘n roll?
A música era uma cápsula de liberdade. Agora, dançar não dançava. Nem pensar. Os meus amigos levavam tampa num baile e vinham como se tivessem ido jogar futebol. Eu temia a rejeição. Não arriscava.

Porque temia tanto a rejeição?
Era uma espécie de príncipe dos pobres, filho único, muito apaparicado pela minha mãe, pela minha avó e pela minha tia. Imagine três mulheres a disputarem o carinho de um pequeno príncipe: marca. Aliás, o universo feminino reflete-se em todas as coisas que escrevi. Ora, chegado ao mundo real, percebo que era muito diferente. Foi um caminho duro. (ri)

Diz em entrevistas que descobriu Pessoa só depois do 25 de Abril. Até onde foi tocado na juventude pela poesia?
A descoberta deu-se com a minha segunda tribo, a do Piolho (café). Uma tribo mais intelectual, de atores, em contraste com a da Pasteleira. O 25 de Abril proporcionou isso. Passámos a ser outro país. As tribos começaram a misturar-se alegremente. Os pobres queriam ser ricos e os ricos vestiam camisas de flanela para parecerem proletários. Foi o sinal dos tempos. E a perceção de que afinal era possível mudar isto.

(Foto: DR)

Desde logo passa a ser possível a uma pessoa de 20 anos ter passaporte.
E isso era tudo um mundo de diferença. O meu primeiro ato político e libertário foi precisamente pedir o passaporte. Para ir a Londres. Quinze dias, em setembro. Fui ver se conferia. (ri)

Então?
Rigorosamente. Londres era como achava que era – as lojas de discos, Covent Garden, Piccadilly. Foi muito curioso, porque percebi que Londres era a minha segunda pátria. A minha família identitária.

O que trouxe de lá?
Nunca mais me esqueci. Um casaco de ganga forrado a pelo, muito Woodstock – como se se tivesse estado em Woodstock -, e que dava muito sainete.

E que o protegia do medo da rejeição…
Muito. O casaco já falava por mim. “Vem aí alguém.” Esses sinais diziam muito de onde nós vínhamos. E isso era importante.

Entretanto, o que achavam os pais do filho apaixonado pela música?
Com alguma angústia, que era um rapaz completamente sem futuro. Que o filho não estava destinado a ter um emprego honrado, baixinho, a ficar metido num canto, cumpridor, sem grandes desejos e grandes sonhos. Isso tinha piada. Até nos sonhos as pessoas eram parcimoniosas. Queriam evitar as quedas. “Não saias daí que vais sofrer.” O 25 de Abril alterou isso. De repente havia um mundo de possíveis, sem limite. Caramba, posso ler livros, escrever poemas. Fiz parte de uma revista literária, uma revista do meu bairro, em que um eletricista escrevia poemas. Maravilha. Isto era utopia. Eu posso fazer. “Posso escrever canções.” Isto foi absolutamente feliz e radical. Hoje, com tudo muito democraticamente instalado, sinto em muita gente uma certa letargia. É mau.

Quando foi tocado pela palavra cantada em português?
Em dois momentos muito precisos: Com “Romance de um dia na estrada”, de Sérgio Godinho, salvo erro de 1971, e com “Queixa das almas jovens censuradas”, poema de Natália Correia cantado pelo Zé Mário Branco, julgo que em 1972. Ouvi-os no Página Um do José Manuel Nunes e a sensação foi “Espera lá, alguém me está a falar de um sítio qualquer e na minha própria língua”. Foi um sinal.

E que vai andando de boca em boca.
Esse é o esplendor da música popular. É a resposta para a grande força e para o grande alcance que alcançou no Mundo todo. Haverá sempre alguém, em qualquer parte do Mundo, que nunca tendo lido um livro será alcançado por um bocadinho de poesia que a canção traz. Uma arma invencível e por isso planetária. Fui tocado várias vezes. Ouvir as coisas do (Leonard) Cohen, “Songs of love and hate”, por exemplo, e sem perceber exatamente o que estava em causa ou o que ele queria dizer com aquilo, saber que estava ali poesia. Que a canção entrava pela poesia e que a poesia entrava pela canção.

Anos mais tarde, passaria para o outro lado. Alguns dos seus versos são dos mais cantados da música portuguesa.
Isso foi choque. Nunca me passou pela cabeça. Antes de escrever as letras do primeiro disco do Rui Veloso limitei-me a pensar “porque não”?

Embora já houvesse uma canção prévia a esse disco, ainda que desconhecida do público: Chico Fininho.
Escrevi esse tema, letra e música, em 1977, ainda antes de conhecer o Rui. Tocava-o em festas de amigos e foi um enorme divertimento. Quando conheci o Rui, entre 20 letras que lhe entreguei em inglês, ia essa, em português. Ele faz então uma versão a sério, bem tocada e bem cantada e é essa versão que chega à Valentim de Carvalho. Que nos disse: “Façam nove iguais a esta e temos um disco”.

Ainda trabalhava no escritório.
Quando escrevi Chico Fininho trabalhava numa loja de interruptores e lâmpadas. Pouco depois, entrei para o Banco de Portugal, um pequeno upgrade. (ri) Trabalhos para sobreviver que me pagavam o meu luxo que era escrever.

Chico Fininho tem um texto satírico. De onde veio a inspiração?
Conhecia a sátira das coisas do Frank Zappa e, em Portugal, dos trabalhos do António Mafra. A certa altura achei que podia funcionar entre o Frank Zappa e o António Mafra, sentia-me no meio de ambos. O Chico Fininho caçoa, de certa maneira, da possibilidade de escrever em português. Daí ter uma coleção de palavras impronunciáveis. Nunca percebi por que fez tanto sucesso. Que tinha um apelo qualquer, tinha, mas que achei não ser mais do que um tiro de principiante.

Mas foi mais.
Foi. E perante isso colocou-se a questão “e agora o que é que eu faço”. No segundo disco já não houve tanto tempo para ser irresponsável. Procuramos tentar aguentar e manter o que se tinha feito.

Quando escreve, escreve sem medo de rejeição?
Aí tenho uma espécie de filtro. Se o resultado me agrada e tem algum interesse, então há a probabilidade de mais pessoas gostarem. Mas, para isto funcionar, tem de haver a honestidade de dizermos a nós e aos envolvidos, numa relação de cumplicidade, que está mal sempre que achamos que está mal.

Quem é, no Porto de hoje, Chico Fininho?
Essa foi outra surpresa: o poder de ficção. A quantidade de pessoas que diziam que conheciam o Chico Fininho. Achava isso mirabolante. O Chico Fininho é do tempo em que as drogas pesadas ainda não tinham entrado em força nos bairros. Sabia quem era Lou Reed, usava sapatos bicudos, enfim, era um freak com alguma dignidade. Dez anos depois, o Chico Fininho era um arrumador completamente arrasado, sem noção alguma. A chegada da droga pesada, sobretudo da heroína, aos bairros foi devastadora. No Porto, foi brutal.

O Rui Veloso não era da tribo da Pasteleira. Conhecem-se exclusivamente pela música? Conhecem-se com a música.
Ele era da Boavista. Conhecemo-nos das canções e dos discos, do universo típico dos colecionadores de discos.

Que primeira impressão lhe causou?
Um músico incrível, com uma guitarra elétrica Gibson, que uma tia lhe tinha trazido dos EUA. Não conhecia ninguém que tivesse uma. Era aquele tipo de guitarras dos grandes músicos, coisa mítica. Aquilo era um sonho.

O Carlos tocava?
Mal. Mas dá para distinguir uma boa de uma má guitarra.

E que acha da sua voz?
Não sou grande cantor, mas gosto de cantar.

Nunca pensou: e se fizesse isto sozinho?
Hum, não. Vendo que há quem faz melhor, sou muito pragmático. E, depois, ser cantor implica um nível de exposição que nunca me agradou. Para ser cantor é preciso ter uma certa dose de narcisismo, coisa que nunca tive. Subir a um palco exige muita lata. Nunca tive essa lata. E também exige saber as letras de cor (ri). Ora eu nem as minhas.

25 anos de parceria com Rui Veloso. E muito sucesso. Gosta da palavra?
É perigosa. Sempre achei que quando não se tem sucesso é uma chatice. Quando se tem é outra chatice. Na verdade, nunca pensei que iria tão longe. Mas, a partir do momento em que se verificou, achei estar a viver um enorme privilégio. Compor, ir para estúdio e gravar era o prolongamento da caixa da infância. Era mais do que algum dia esperara. Ainda hoje: se me perguntar a melhor maneira de passar um domingo direi que é no estúdio.

O que faz de uma canção um fenómeno duradouro?
As canções não existem por si. As canções são possibilidades. Chegam apenas até onde o cantor as deixar chegar. Só existem com o cantor, com os bons cantores, os que percebam o que as canções pedem, os que não se sobrepõem às canções com o seu virtuosismo, os que as deixam crescer com espaço. Isso é muito difícil. A maior parte dos cantores põe-se à frente da canção, subjuga-a com o seu virtuosismo, querem para eles a luz toda. Esses cantores dizem-me muito pouco.

O que gostaria que se dissesse da sua contribuição para essas músicas?
A minha contribuição foi sempre tudo fazer para que as canções fossem respeitadas. Esta canção pode ser isso, vamos dar-lhe uma oportunidade. A canção tem vida própria, mas enquanto vinheta ou pequena narrativa é muitas vezes menosprezada.

Carlos Tê com Rui Veloso – uma parceria “única”, mas “irrepetível” – e a passear na Praça da Liberdade, junto ao Palácio das Cardosas, onde, algumas décadas depois, conversou com a NM
(Foto: Arquivo/Global Imagens)

A voz de Rui Veloso é facilmente identificável. Pode dizer-se o mesmo das letras do Carlos?
Talvez. Quando comecei a escrever canções perguntei-me sobre o que iria escrever. Tentei imitar os meus ídolos, os velhos dos blues, as pessoas que contam histórias do dia a dia. Porque essa é a essência da música popular. Está nas canções do António Mafra que ouvi às dúzias e que ainda muita gente conhece.

Pode matar-se uma letra com uma palavra a mais?
Se pode. Não por acaso, normalmente, começo pela letra. Depois, quando a música se instala, passa a ser uma canção. Não quer dizer que não consiga fazer o contrário, mas quando começo a atamancar palavras em melodias a coisa não fica tão bem. O grande desafio? Conseguir provocar alguma perplexidade, nem que seja numa pequena dose de poesia.

As suas letras são poemas?
Algumas. Outras andam por ali, algures. Considero que uma letra fica ganha quando se consegue “meter” um bocadinho de poesia lá pelo meio.

Numa entrevista afirmou: “Não raras vezes salvei um tema”. Já lhe estragaram algumas letras?
Foi por isso que comecei a ir para estúdio. Não queria correr o risco de acontecerem na minha ausência situações do tipo “isto não cabe, corta”. Houve um tempo em que cantores e músicos em geral não eram muito sensíveis às letras. As letras não passavam de uma necessidade. A partir do momento em que a letra ganha um papel, as canções começaram a ser muito respeitadas. “Estes tipos querem dizer qualquer coisa.”

Como reage em situações de “isto não cabe, corta”?
Raras vezes isso aconteceu, porque as parcerias que tenho tido são e foram de cumplicidade. E a cumplicidade serve para dizer não. Quando não existe, tudo fica mais difícil. Há um constrangimento: “Isto não está grande coisa, mas como não conheço a pessoa deixa ir”.

Não me parece que esteja a falar de si. Contenta-se com o razoável e o bonitinho?
Nunca. Quando está mal digo que está mal. Funciono sempre em prol de um bem maior que é a canção.

Alguma vez se surpreendeu no processo de escrita?
Quantas vezes. Aponto para um lado e a canção vai para o outro. Isso é maravilhoso.

Por exemplo:
Aconteceu com uma canção emblemática, “Porto sentido”. Aí está um caso em que a música foi fundamental. A certa altura, pensei fazer uma canção sobre o Porto. “Lisboa tem canções, gaivotas no Tejo, isto e aquilo e o Porto nada. Vou fazer uma.” Foi um desafio académico. Um dia, estou no Parque Biológico de Gaia com o meu filho e vejo um milhafre a ser tratado. Um tiro atingira-lhe uma asa. E vi ali o Porto. O Porto sempre ressentido, sempre a resmungar, mas sempre com aquele orgulho, de nariz empinado. Fiz o primeiro “draft” em cima disto. Mas quando o Rui faz a música e começa a cantar percebi que a letra tinha de ser muito mais. Perante aquela música, a ideia tinha de ser desenvolvida. E seguiu-se então muito tempo de grande carpintaria, à procura da palavra certa. O que é raro, nas minhas letras.

Nunca escreve poemas abstratos. As letras são o que vê nas coisas, nas pessoas?
Aprendi com letristas brasileiros e anglo-saxónicos a partir do particular para o universal. As pessoas acham que escrevo sobre o Porto porque tenho com a cidade uma relação forte. Também é por isso. Mas é, sobretudo, porque me dá jeito partir de um ponto que conheço bem. Da mesma maneira que Springsteen escreve sobre Filadélfia, Neil Young sobre Ontário ou o Chico Buarque sobre o Rio de Janeiro. Porque não? É material possível de usar. Lá está: se os outros fazem também posso fazer.

Quem hoje compõe com esmero e qualidade? Rima-se demasiado amor com dor, há demasiados nhe-nhe-nhens cantados?
A música avançou para várias gavetas. As pessoas com maior ligação à palavra, apesar de ser um estilo que não cultivo muito, são os tipos do hip-hop e do rap. A Capicua é alguém que trabalha a palavra com uma mestria incrível. Usam a palavra porque precisam dela para dizerem coisas. Usam-nas porque têm coisas importantes para dizer. O formato da canção que eu gostava está a levar com muitos embates, fruto do tempo fragmentário que vivemos. A canção, hoje, não é a canção dos anos 1980. Atirou-se para muitas zonas e é fruto do tempo que vivemos. A canção emana da necessidade do tempo que se vive. A música deriva daí. Na palavra talvez haja um certo declínio. Porque a própria palavra vive um certo declínio.

Tem saudade de escrever para canções com frequência?
Antigamente havia uma coisa chamada indústria musical. Hoje, em contrapartida, a indústria dos festivais cresceu muito. Tudo se transferiu para os concertos ao vivo e para os spotifies. O disco em si ficou amputado do valor comercial. Se fosse artista de palco continuaria a escrever e a compor. No meu caso, sinto-me alguém que o processo foi eliminando. Há alguma prescindibilidade. Seja como for, se tiver uma boa ideia aponto. Logo se verá. Fazer uma canção ainda é uma coisa importante para mim. Sou filho das canções.

Incomoda-o ser mais conhecido como letrista de que como escritor?
Não me incomoda nada. Corresponde à verdade. Tenho muitas letras e apenas dois livros.

Lançou em agosto “Arquibaldo”. Um livro sobre a importância da memória e da procura das raízes.
É um livro que demorou bastante tempo a escrever. Dez anos. Não porque tenha passado todo esse tempo a escrevê-lo, mas porque parei várias vezes, é um livro que foi tomando várias direções.

Falemos do prosador.
A prosa é um longo fôlego, um processo solitário. Nas canções, há pequenas e grandes cumplicidades. Na prosa, a solidão é absoluta. Nunca fui o tipo de pessoa que escreve cinco páginas e vai mostrar aos amigos.

Onde escreve?
No computador que está sobre uma secretária caótica. Livros com notas que eu próprio já não consigo ler, livros esquecidos, faturas de gás.

Vive com a mãe.
A minha mãe sempre lidou muito mal com a minha desarrumação. Ainda hoje me chateia com isso. Não há volta a dar. Mas já vivi sozinho. Tenho uma tendência solitária. Não me incomoda nada a solidão. Perco-me na leitura, a ver cinema e futebol compulsivamente. Sou capaz de estar doze horas consecutivas ocupado com isso. A atividade criativa não e “compaginável” com pessoas. Passa por saber estar consigo próprio. Sempre tive grupos e amigos, pequenas e grandes afinidades, mas nunca me lamentei por estar sozinho.

Diz que as letras que escreve não são autobiográficas. Vamos a “Do meu vagar” para ver se se trata de um autorretrato: é um homem de vagares?
Sou.

Não tem trilho que o prenda?
Trilhos afetivos, sim. Trilhos no sentido de certezas, não. Sempre duvidei. E sempre estive preparado para desfazer as pequenas certezas que possa ter.

É um otimista?
Controlado.

Não faz nada num só dia?
É verdade. Sou muito dado à procrastinação.

Não corta o fio da meta?
Essa foi sempre uma característica minha. Sou muito parecido com a tartaruga da fábula. Nunca fui de me chegar à frente. Há qualquer coisa em mim que me diz “tu vais chegar e provavelmente por cima dos que cortaram a meta primeiro”. A não ser no bilhar e no futebol, detesto competição. Nos grandes objetivos nunca tive ânsias de alcançar.

Nunca há de chegar longe?
Aquilo a que a maior parte chama longe, nunca.

Como define longe?
Aos 67 anos, das coisas que mais temo é a misantropia. Vir a ser um velho rezingão. É das poucas coisas que peço para não ser. Não que queira ser um velhinho muito alegre. Não é isso. Mas gostava muito de manter o equilíbrio. O equilíbrio que tenho desde os meus 15, 20 anos. É esse o meu longe.

Ainda do poema “Do meu vagar”: Em busca do tempo perdido?
Não sou muito saudoso. Até das situações em que estive e podia não ter estado tirei sempre ensinamentos. Nem os 16 meses que passei na tropa foram uma perda completa. Caramba, basta pensar que dois anos antes teria ido bater com os costados no Ultramar. Eu não iria, mas os amigos que foram regressaram muito desacrescentados, se é que a palavra existe. E para sempre.

Vale mais uma palavra de que mil imagens por segundo?
É verdade. Apesar do total predomínio da imagem. Nada que não estivesse previsto desde “Vídeo killed the radio star”.

Conversar tornou-se um capricho, escreveu. Como sobrevive alguém que é do tempo dos cafés e das conversas vagarosas?
Fiz parte da minha vida em café, estudei em cafés, li quilómetros de livros em cafés, mesmo com o barulho das pessoas. Ainda tenho dois ou três amigos com quem estou por vezes duas horas ao telefone. A divagar.

Ainda vai ao café?
É um ritual absolutamente sagrado, desde que me conheço. Comprar o jornal e tomar um café, todos os dias. É impensável não o fazer. Fico uma hora a ler o jornal.

As pessoas trocam emojis. Utiliza-os?
Isso é espuma.

Quer com isso dizer que a moda vai passar depressa?
Gostaria de pensar que sim, mas não tenho certeza. A tecnologia, com tudo de bom que tem, trouxe coisas más. A incomunicabilidade é uma delas. As pessoas pensam que estão a comunicar, mas estão a enfiar-se em becos.

E um homem de emoções?
Refreio.

Também no Estádio do Dragão?
Por isso é que evito ir lá. Tenho medo de figuras tristes (ri). Nesse aspeto sou como o meu pai. A minha ira nunca se vira contra o adversário. Para esse estou-me nas tintas. Sempre contra a minha equipa. A equipa tem obrigação de redimir tudo. Tem de ser a melhor. Jogou bem e perdeu? Mas deu o que tinha. Jogou bem e ganhou? Fico feliz, mas também penso “não fizeste mais de que a tua obrigação”. Sou o portista mal-habituado. Tenho essa noção.

Grande rival?
O Benfica.

Gostava de ser presidente?
Detestava. É um mundo que gosto de ver do lado de cá.

Que presidente gostava de ver?
Boa pergunta. Rui Moreira ou Villas-Boas. Um deles. Acho que dariam bons presidentes. Até porque não vejo outros.

O maior desgosto que lhe deu a equipa?
Sempre que a equipa joga para não perder dá-me um grande desgosto. Para mim, é a negação daquilo a que o F. C. Porto nos habitou, de passar o Rubicão, aquele período em que perdia sempre. Mas também entendo que por vezes a equipa fraqueja porque é muito sangrada.

Conceição é a cara do F. C. Porto?
Acho que sim. É um back to basics depois de ficar provado que um treinador meramente técnico, que chega sem conhecer a mística, não serve. Ainda mais numa altura em que só se vende, vende, vende. Sérgio Conceição tem sido capaz de segurar o barco.

Colocou Jardel ao alto, “entre os centrais”. Viu-o no “Big Brother”?
Não, mas entendo a pergunta. Há períodos que passam e nem sempre as pessoas sabem lidar com o rasto que deixaram.

Porque escolheu Jardel?
Já nem me lembro. Mas lembro-me, isso sim, de uma vez, num programa de televisão, em que me puseram em contacto com ele. Estava em Fortaleza e começou a chorar quando lhe disse que me lembrava de um golo que ele marcou ao Farense. Um golo do meio-campo que nunca se esquece.

Tem ídolos?
Tenho tantos. Na música, Elvis Costello. Um grande músico, um grande letrista. Um exemplo de perseverança. Alguém que vem da música pop e acaba a escrever arranjos para cordas. Admiro a capacidade de continuar a ter dúvidas, de crescer, de nunca desistir.

O que há em si do rapaz de 20 anos?
Sempre que estou tentado a fazer uma cedência sinto o rapaz de 20 anos a olhar por cima do ombro. “Meu, esquece. Tem cuidado.” Tenho sempre essa melga nos ouvidos, a chatear-me e eu gosto.

E muito tentado a fazer cedências?
Muito, não. Por vezes, sim. Aí aparece o miúdo de 20 anos, a melga intransigente.

E ouve-o?
Bastantes vezes. Corresponde à criança curiosa que eu era, muitas vezes derrotada pelas circunstâncias, porque ser adolescente antes do 25 de Abril, saber que nada vai mudar, é uma coisa terrível.

Empenhar o anel de rubi para a levar ao cinema, roubar a gargantilha para ela usar ao domingo. Já amou desse modo?
Não. O meu modo de amar foi sempre muito razoável. Duvido muito da paixão. A paixão leva-nos às figuras tristes.

Uma figura triste da paixão?
Perder o respeito por nós mesmos. Esperar por quem sabemos que não está na nossa onda. Já me aconteceu, mas a certa altura fiz o luto. Há pessoas que ficam ali para sempre. Aprender a desconfiar da paixão, perceber que o amor tem outros caminhos é um sinal da maturidade.

Nunca teve um gesto romântico?
Acho que uma vez mandei flores a alguém pelo correio. Mas mesmo assim sempre autovigiado por um superego qualquer. Só que dessa vez, fiz. Estive-me nas tintas.

“Não há relações felizes”, afirmou em tempos. Não há?
Há. Desde que se façam arranjos constantes e reavaliações do que é ser feliz. Quando esses arranjos e reavaliações levam a acordos complicados, mais vale deixar cair a relação.

A declaração foi feita a propósito de uma pergunta sobre a relação com Rui Veloso. Não sente falta dele?
Há coisas irrepetíveis e parcerias únicas. Mas as relações também se gastam. E desgastam.

Profissionalmente. Mas e a amizade? Não se diria que ficaram amigos.
Não é costume falarmos.

*A realização da entrevista a Carlos Tê contou com a colaboração do hotel InterContinental Porto – Palácio das Cardosas.